A Filosofia de Pés Sujos de Barata Cichetto

Atualizado em 29/12/2024 as 15:05:24

Ao terminar de ler a obra “Filosofia de Pés Sujos”, tive uma mistura de sentimentos e reflexões interessantes, impactantes, chocantes e gratificantes. Barata cria e vive sua Filosofia da mesma maneira que os filósofos da Grécia Antiga: como uma reflexão e um guia para a sua vida prática. Algo muito diferente do academicismo intelectual moderno e contemporâneo: discussões predominantemente teóricas e abstratas, totalmente desvinculadas com o ato de viver o aqui e agora. A versão “grega clássica” de Barata Cichetto, é sem sombra de dúvidas, o criador do Cinismo, Diógenes de Sinope (404-323 a.C.). Assim como Diógenes, Barata Cichetto não se importa com as convenções sociais, a religião, a política e todo o aparato social criado para manter o Homem “domesticado” e “nos trilhos” segundo a classe dominante do momento. Ele vive a vida conforme suas próprias referências do que é viver bem e de maneira verdadeira, sem modismos e crendices sociais. É impossível não associar os pés descalços e sujos na capa do livro com o estilo de vida de Diógenes, que vivia uma vida simplista num barril no meio da cidade, vivendo como um cão (kynismós significa “como os cães”) e também na companhia de cães (seria coincidência o Barata preferir a companhia de seus gatos a pessoas?). Da mesma forma que Diógenes saía pelas ruas de Atenas com uma lanterna acesa, em pleno dia, dizendo estar à procura de um homem realmente virtuoso e verdadeiro, sem as pomposidades e falsidades das convenções sociais arbitrárias, Barata parece questionar a tudo e a todos de maneira similar. O sarcasmo e a irreverência (que é também a origem do termo popular “cínico”) diogeniana e baratiana para com a sociedade e seus ideais, os torna irmãos gêmeos separados apenas pelo tempo.

Além disso, mesmo diante dos grandes filósofos da História, ele presta a irreverência de um Diógenes moderno: “Troco Platão, Nietzsche, e todos os grandes mestres pelos bêbados que contam piadas filosóficas sobre traídos e traidores, cornos e mansos, e depois entornam seus copos meio cheios e meio vazios goela abaixo para que a filosofia não os atormente tanto. (…) E eles sabem melhor sobre o que é a morte, diariamente ao olhar no espelho”. Aqui, fica claro a abordagem empirista, realista e intuicionista do autor em oposição ao abstratismo, idealismo e o racionalismo da tendência geral da maioria dos grandes filósofos. Ele considera os “grandes mestres” como seres tão humanos quanto é um bêbado do bar. A reverência às grandes obras escritas e o prestígio acadêmico e social, para a sua filosofia, não significam nada. Na verdade, são até um mal sinal para esse tipo de abordagem filosófica, porque facilmente podemos nos perder em abstrações e discursos complexos e bonitos e não ver a verdade nua e crua da vida diante de nós, que é exatamente o ponto central de sua filosofia.

Em suas poesias e textos, este tipo de questionamento e seu “cinismo” é muito claro, com direito ao uso de palavrões e termos pesados que poetas normalmente não utilizam, talvez apenas certos poetas esquerdistas, cujo objetivo não é questionar, mas destruir a sociedade, para então colocar em progresso seu projeto de poder totalitarista. E essa deve ser uma das razões de muitos do espectro direitista não quererem ao menos lê-lo: ao se depararem com palavrões, termos e temas pesados, já o taxam de esquerdista que deseja destruir os “bons costumes”. E por ser um ávido crítico da ditadura esquerdista em que vivemos e à própria ideologia de esquerda, que é “eugenista”, em suas palavras, ou seja, quer mudar a natureza humana, nenhum esquerdista também não passará das primeiras páginas. O que o faz um poeta e pensador “lobo solitário”, que apesar de ser um grande gênio com as palavras, perceber melhor do que ninguém que conheço as contradições, a desonestidade e a incoerência da sociedade e os tempos em que vivemos, o seu reconhecimento não chega aos pés de seu real valor como poeta e como pensador.

Apesar de eu não ser um bom conhecedor e muito menos um especialista em poesia (aliás sempre digo que ele é o único poeta que gosto, de verdade, de ler e que nunca fui chegado em poesia), gosto muito de Filosofia da Arte ou Estética (aisthésis, que significa sensação, percepção) e Barata, no sentido mais artístico, me lembra muito o extraordinário e polêmico pintor Caravaggio (aliás, ambos possuem o sangue passional italiano). A razão é que, apesar de ambos tratarem de coisas feias, sujas e que todos rejeitam e não querem chegar perto, muito menos apreciar artisticamente, eles conseguem de alguma maneira produzir obras belas através da maneira que tratam, retratam e percebem o que a sociedade rotula como feio e desagradável. Ambos os artistas tratam muito do tema da morte, talvez o tema mais odiado e evitado, por ser aquilo que a grande maioria mais teme e evita pensar ou falar.

Meu texto preferido de Barata Cichetto fala exatamente sobre esse tema, numa abordagem ainda mais polêmica, sobre a sua própria morte. “Opúsculo Sobre a (Minha) Morte” retrata a morte (e a questão do tempo) de maneira realista, como ela é de fato, sem fugas e ficções que buscam evitar a inevitável consequência da existência e da vida. Caravaggio faz a mesma coisa, mas com o pincel. Uma de suas pinturas ele pinta sua cabeça decepada e sendo segurada por Davi e ele como se fosse Golias. O que me impressiona nesse tipo de arte é que ambos conseguem me fazer sentir mais real, verdadeiro e me dão vontade de explorar filosoficamente e esteticamente essa parte de nossa natureza e realidade, que todos desejam negar ou ignorar, seja as religiões, as ideologias e a população em geral.

Em nota pessoal, acredito que somos muito parecidos em certos aspectos. Tivemos vidas bem sofridas e duras, e esse sofrimento excessivo, de alguma maneira nos acordou para a realidade e nos fez rejeitar convenções sociais, ideologias tribais e outras tantas baboseiras ilusórias e sem sentido que a grande maioria utiliza para se alienar da verdade dura e crua, que não tivemos escolha de evitar. Nietzsche diz que o que não nos mata, nos deixa mais forte. Acredito que uma grande quantidade de sofrimento intenso leva a pessoa a dois caminhos: não aguentar e morrer (não necessariamente no sentido literal, ela pode ficar apática, se corromper, sem propósitos e “morta por dentro” o resto de sua vida) ou ela revida, decide se opor a toda essa merda e acaba se tornando mais forte, independente e tendo uma perspectiva mais realista e ampla da vida. Mas, ao mesmo tempo, tanto sofrimento acaba que arrancando e destruindo parte de nossa alma, que simplesmente não volta mais: nosso lado criança, “soft” e otimista. Como aqueles que vão para a guerra e não voltam os mesmos. É aqui que surge o nosso pessimismo, que acredito que é justificável, diante de tanta merda que provém do declínio de nossa sociedade, que parece estar cada vez mais estúpida, doente e alienada.

Dito tudo isso, apesar de ser um termo um pouco que desgastado e óbvio, considero Barata Cichetto um “gênio incompreendido”. Aqui coloco gênio, em vários sentidos: pelo seu talento, por ver além da grande maioria, pela profundidade que vive e produz suas obras e pela honestidade de seu caráter e sua autenticidade. Este é um requisito de todo gênio, ser e defender o que acredita de maneira autêntica, mas não para agradar os outros e conseguir grandes riquezas materiais, mas para viver, reproduzir e defender aquilo que ele considera de mais belo e verdadeiro na existência. Há alguns anos, durante a pandemia (fr4udem1a), ele parou de escrever e acabou ficando muito mal. Eis outro ponto que temos em comum: possuímos um espírito de guerreiro, não conseguimos simplesmente aceitar tudo que vemos por simples conveniência e preguiça. Desejamos lutar e combater toda essa merda que se tornou o Ocidente Altruísta. Resumindo: Barata sente raiva, revolta e repulsa, e as expressa em seus escritos com sua marreta, como Nietzsche. Com a irreverência e simplicidade de um Diógenes. E como Caravaggio, pinta com palavras coisas escrotas, nuas e cruas, mas com inteligência e honestidade ímpar, o que acaba sendo uma experiência estética interessante, impactante, libertadora, autêntica e bela.

Filosofia de Pés Sujos
Barata Cichetto
Gênero: Poesia/Filosofia
Ano: 2024
Edição: 4ª 
Editora: BarataVerso
Páginas: 156
Tamanho: 16 X 23 X 1 cm
Peso: 0,3 kg
Prefácio: Eduardo Amaro

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Erick Takaki é professor. Um Livre Pensador!

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Genecy de Souza
Genecy de Souza
21/04/2024 13:53

Profunda e inteligente a sua análise.
Para quem conhece ao menos boa parte da obra literária de Barata Cichetto, bem como sua biografia, sabe que o Filósofo de Pés Sujos sempre apanhou feio da vida e, mesmo em situações de extrema fragilidade, ele nunca se rendeu às adversidades.
Barata é um resistente raiz, um casca-grossa genioso e genial.

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