Atualizado em: 03/11/2024, as 12:11
“Laranja Mecânica”, a obra-prima de Anthony Burgess e a adaptação cinematográfica de Stanley Kubrick, são dois mundos paralelos que convergem em uma interseção perturbadora e provocativa, desafiando nossas concepções sobre moralidade, violência e controle social. Embora sejam produtos de mídias diferentes, ambos exploram o tema da desumanização através da violência e da manipulação, embora cada um à sua maneira. A comparação entre o livro e o filme revela a genialidade de Burgess e a visão única de Kubrick, enquanto também ilustra as reações polarizadas que ambos provocaram.
O romance de Anthony Burgess, publicado em 1962, é um mergulho profundo no pesadelo distópico da violência juvenil e do controle social. Burgess cria um universo no qual a liberdade individual é esmagada pelo poder do estado, e o livre-arbítrio é substituído por uma moralidade imposta. Alex DeLarge, o protagonista, é um jovem delinquente com um gosto peculiar por ultraviolência e Beethoven. O livro é, ao mesmo tempo, um manifesto sobre a natureza do mal e uma crítica ao uso de técnicas comportamentais para a conformidade social. A inventiva linguagem, o Nadsat, uma mistura de russo e gírias, é uma ferramenta brilhante de Burgess para encapsular a alienação e a revolta da juventude, criando um espaço literário único e inquietante.
Quando Stanley Kubrick trouxe “Laranja Mecânica” para as telas em 1971, ele fez mais do que adaptar um livro; ele redefiniu a experiência cinematográfica e, ao mesmo tempo, provocou uma série de reações intensas. A interpretação de Kubrick é tanto uma homenagem quanto uma reinvenção da obra de Burgess. Enquanto Burgess usa o texto para explorar os temas da moralidade e da manipulação, Kubrick leva isso a um novo patamar com seu estilo visual perturbador e uma narrativa que não poupa o espectador. O filme de Kubrick é uma combinação de um mundo futurista e uma estética brutal, uma verdadeira obra de arte e uma declaração social.
As cenas de violência e sexo no filme, particularmente aquelas que envolvem a técnica de condicionamento aversivo de Ludovico, são um dos pontos mais controversos e discutidos. Kubrick não se esquiva de mostrar a violência de forma gráfica, o que gera uma sensação desconfortável de realismo e crueldade. A famosa cena de “Singin’ in the Rain”, que é simultaneamente cativante e perturbadora, exemplifica a habilidade de Kubrick em usar a música para criar um contraste chocante com a violência exibida. A tentativa de forçar Alex a associar a violência ao mal-estar físico é tanto uma crítica ao comportamento coercitivo quanto um reflexo sombrio das consequências desse controle.
A primeira exibição do filme no Brasil, em meados dos anos 1970, gerou uma reação inesperada e até cômica. Os círculos pretos que foram colocados sobre as genitálias nas cenas de sexo e violência causaram uma série de mal-entendidos e risos involuntários entre o público. Muitos espectadores, desavisados, interpretaram os círculos como “laranjas mecânicas” de fato, o que, embora cômico, também ressaltou a maneira como a censura e a interpretação cultural podem alterar o impacto de uma obra. Este detalhe curioso se tornou um símbolo de como as intenções do autor e a percepção pública podem divergir, especialmente quando mediadas por diferentes contextos culturais e históricos.
O que tanto o livro quanto o filme têm em comum é uma exploração incisiva dos limites da moralidade e do livre-arbítrio. Burgess utiliza sua narrativa para questionar até que ponto a sociedade pode e deve ir para controlar o comportamento individual. Kubrick, por sua vez, leva essa exploração ao extremo com sua abordagem visceral e estilizada. O filme e o livro discutem a tensão entre o bem e o mal, a liberdade e a opressão, mas fazem isso de formas que destacam suas respectivas mídias.
No livro, Burgess permite uma introspecção mais profunda na psique de Alex, revelando as complexidades de suas motivações e conflitos internos. A linguagem é um meio poderoso para transmitir o desespero e a alienação do protagonista, enquanto a estrutura do romance oferece uma visão mais complexa e multifacetada da natureza humana. O final original do livro, que foi suprimido na edição americana, fornece uma nota de redenção para Alex, o que acrescenta uma camada de esperança à narrativa, contrastando com o desfecho mais sombrio e definitivo do filme.
Kubrick, com sua marca registrada de direção e estética visual, toma uma abordagem mais imersiva e estilística. A violência é apresentada não apenas como um ato físico, mas como uma representação da desumanização e da alienação. A escolha de Kubrick de representar a violência com um toque de teatralidade e exagero é uma maneira de forçar o espectador a confrontar o absurdo da situação e a refletir sobre a natureza da violência e do controle.
O filme e o livro, cada um a seu modo, desafiam os limites do que é aceitável e questionam a natureza da moralidade e da liberdade individual. Kubrick pega a mensagem de Burgess e a amplifica, oferecendo uma experiência que é tanto fascinante quanto perturbadora. “Laranja Mecânica” continua a ser uma obra de discussão e análise, questionando o papel da violência na sociedade e o custo da conformidade forçada. Enquanto o livro oferece uma visão mais introspectiva e literária, o filme de Kubrick apresenta uma interpretação visual e visceral que provoca e desafia o espectador a refletir sobre as complexas questões de moralidade, controle e liberdade.
No final, tanto Burgess quanto Kubrick deixaram marcas indeléveis em suas respectivas mídias, criando um diálogo contínuo sobre a condição humana e o incômodo limite entre o bem e o mal. A influência de “Laranja Mecânica” persiste, não apenas por sua representação ousada e provocativa da violência, mas por sua capacidade de continuar desafiando nossas percepções e entendimentos sobre a natureza do comportamento humano e do controle social.
Escrito e Publicado em: 24/07/2024
Título e Revisão Ortográfica por ChatGPT
O Livro:
Laranja Mecânica
Autor: Anthony Burgess
Tradução: Fábio Fernandes
Editora: Aleph (352 Páginas)
Capa: Giovanna Cianelli
Acabamento: Brochura
Páginas: 288
Dimensões: 14x21x2cm
O Filme:
Laranja Mecânica
A Clockwork Orange
Reino Unido, Estados Unidos Estados Unidos
1971 • Cor • 136 Min
Direção: Stanley Kubrick
Produção: Stanley Kubrick
Roteiro: Stanley Kubrick
Baseado em: A Clockwork Orange, de Anthony Burgess
Elenco: Malcolm McDowell, Patrick Magee, Adrienne Corri
Música: Wendy Carlos[a]
Cinematografia: John Alcott
Edição: Bill Butler
Companhia Produtora: Polaris Productions, Hawk Films
Lançamento: 19 de Dezembro de 1971 (Nova Iorque)
Idiomas: Inglês, Nadsat
Barata Cichetto, Araraquara – SP, é o Criador e Editor do BarataVerso. Poeta e escritor, com mais de 30 livros publicados, também é artista multimídia e Filósofo de Pés Sujos. Um Livre Pensador.
[…] Leia Também:A Interseção do Perfeito e do Perturbador: “Laranja Mecânica” no Livro e no Cinema […]
Existem livros e filmes que são absolutos por serem resistentes a prova do tempo. Laranja Mecânica (filme e livro) ocupa um lugar de honra nessa categoria. Não tive a oportunidade de assistir a versão cinematográfica do livro, mas conhecia a fama dele desde sempre, embora eu não soubesse do que ele tratava exatamente, mas sabia que era algo muito forte e, por causa disso, restrito a poucos.
A oportunidade veio com o advento do videocassete. Aluguei uma fita VHS. O que ocorreu logo a seguir foi um grande choque, visual e sonoro, com direito a música de Beethoven, em contraponto às cenas de extrema violência, em meio a uma trama que, embora seja objeto de ficção, não se dissocia muito da realidade — no contexto de 1971 e nos 50 anos seguintes.
Laranja mecânica, por sua riqueza inteligentemente criada e explorada por Stanley Kubrik, permite ao espectador assisti-lo e reassisti-lo tantas vezes quanto sejam necessárias, e sempre tirar uma lição de quão forte o cinema pode ser quando vai além do mero entretenimento, para ser um grande indultor ao pensamento crítico. Devo muito a Kubrik por essa lição de realidade.
Laranja Mecânica decerto ainda será motivo de muitos estudos, futuro à fora. Assisti ainda nos idos anos 1970, e a história das bolas pretas… bem aquilo me fazia rir e ao mesmo achar que … Laranjas não são pretas… a censura da época poderia ter um pouco mais de criatividade… E até apassaria batido… Mas está iss um mote pro Samizdat: Censura & Criatividade.