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A Jornada Interrompida (Talvez Nem Tanto) de Zémi Guél – Capítulo 1

Antes de começar meu relato, permita que eu me apresente: Sou um homem de fortuna e requinte, estou por aí já faz alguns anos… ops! Que distração a minha! Isso não é sobre mim, é o início de uma letra composta pelos Glimmer Twins. Perdão pelo lapso. Agora sim: meu nome é Mikael Liann, tenho meio século mais meia década de existência (que eu não chamo o que tenho de “vida”). Sou um escritor que desenha e um desenhista que escreve, modéstia à merda mando muito bem nas duas coisas, mas parece que as pessoas certas jamais acharam isso, pois continuo rigorosamente inédito, a não ser pelos textos publicados em colunas de pequenos jornais de pouca expressão.

Moro rigorosamente sozinho, a não ser pelas inevitáveis presenças invisíveis que habitam toda e qualquer casa. Vivo no limite de uma vida de monge, mas meu espírito sem dúvida nada tem de monacal, a não ser pela solitude por opção, e certamente nada de religiosidade(s).

Tenho pouquíssimos amigos. Nas duas mãos, dedos sobram para contá-los. Entre eles, o Zémi Guéu, nome artístico de um escritor tão fracassado e tão talentoso quanto eu, que nasceu José Miguel, mas isso era certinho demais para ele. Nunca vou entender o que a Stella, mulher rica desde sempre e dona de uma praticidade radical, viu nele. Os dois se conheceram, namoraram, foram morar juntos, sem papel passado, e isso durou duas décadas e meia. O casamento só acabou quando meu amigo também chegou ao fim.

Fiquei muito chateado por saber da morte dele por um outro amigo, e não pela viúva. Conversávamos via whatsApp dia sim dia não até mais ou menos um ano atrás, quando a depressão que o acometia desde sempre se acirrou. Mas pelo menos uma vez por semana meu amigo mandava alguma mensagem ou eu a ele, e encetávamos uma conversação breve.

Quando demorou mais que uma semana o silêncio dele, fiquei no dilema de enviar ou não uma mensagem? Que diabo de amigo eu sou, afinal?, perguntariam alguns. Respondo: um amigo que sabe respeitar o silêncio do outro, apesar da preocupação. Mas três dias depois de seu passamento um amigo em comum, Leocádio, comentou comigo. Ele também tinha ficado sabendo dias depois do ocorrido, por puro acaso, quando o advogado de Stella foi ao Cartório onde o Leo trabalha pra tirar a Certidão de Óbito.

Fiquei cerca de uma semana sem saber exatamente de que meu amigo tinha morrido. Minha mente de escritor-desenhista (ou desenhista-escritor) já começava a criar histórias dignas dos filmes noir, quando recebi uma mensagem uatizápica da viúva.

“Peguei seu número nas anotações do meu falecido marido. Quero que venha à minha casa, vou te passar alguns itens que foram do José Miguel. Venha com carro, são várias caixas. Mande mensagem avisando dia e horário.”

Nada de cumprimentos nem de despedidas. Formal, mas seca como a Miséria. Não sei se foi com propósito de humilhação a referência ao fato de eu não ter carro, mas logo decidi que não, afinal era uma questão prática: várias caixas. A curiosidade me tomou de assalto: que itens seriam? E que itens poderiam ser, além de livros? Depois de organizar o esquema do carro, respondi avisando que iria no dia seguinte, um sábado.

Para um cara que vive numa casa velha afastada da cidade, que me fora deixada pela mãe, falecida em igual estado de velhice, a simples viso da casa onde meu amigo morava era um tanto desconfortável. Uma mansão, imponente, enorme, capaz de meter medo. Leocádio, que tinha feito o favor de me conduzir em seu carro (e aproveitando para matar a própria curiosidade), comentou assim que paramos diante da residência:

— Zémi Guéu morava bem…

Minha resposta limitou-se a uma imitação de sorriso, cheio de mal disfarçado amargor.

Lembrei da única vez em que eu visitara meu amigo em seu lar, 25 anos antes, logo depois que ele e Stella juntaram as toalhas, e da sensação de deslocamento que senti. Pedi a ele que, se isso não o desagradasse, nossos próximos encontros fossem em locais menos suntuosos. Não sei se foi impressão minha, mas me pareceu que ele ficou aliviado com a sugestão. Relembrando o que eu sabia do casamento deles pelas nossas conversas, Stella fez o cara sofrer muito. Não que ela fosse ou seja uma filhadaputa, mas é uma mulher prática que nunca entendeu o amor do marido pelo exercício de uma literatura que jamais rendeu fama nem dinheiro.

Interfonei, o portão foi aberto remotamente, deixamos o carro no local indicado e subimos o morrinho cimentado até a porta da frente. Um tipo de mordomo nos recebeu, inevitável lembrar do Tropeço que servia aos Addams. Logo éramos recebidos, educada mas friamente, pela viúva, adequadamente trajando preto de cima abaixo. Novamente sem preâmbulos, e sem sequer nos convidar a sentar, ela foi direto ao ponto:

— Por uma questão que podemos chamar de afetiva, não tenho coragem de jogar fora as coisas mais pessoais que José Miguel deixou e que eram de algum modo importantes para ele, que realmente gostava da tranqueira toda. O que não tem essa ligação de pessoalidade terá um de dois destinos: venda ou incineração. Ele dedicou a vida inteira a isso em vez de procurar um trabalho de verdade. Fico irritada com tudo isso: ele fracassou porque quis, era inteligente, poderia ter se dado bem em qualquer trabalho de verdade”.

Fiquei torcendo para ela falar mais uma vez “trabalho de verdade”, para eu poder desfiar um rosário de ofensas ali mesmo, naquela sala rica de ornamentos e pobre de afetos. Mas ela não repetiu a expressão.

— E até mesmo a maneira que escolheu para se matar… homens se matam com um tiro na cabeça, não bebendo remédios pra dormir. E não foi por falta de arma, eu tenho uma Mauser 9 milímetros, que ele sabia onde estava!

E foi assim, com a sutileza de um elefante cocainômano em uma sala cheia de peças de cristal, que Stella me fez saber que a causa da morte do meu amigo foi suicídio. Acho que isso foi demais até para ela, que, talvez percebendo o que acabara de dizer como uma completa novidade para mim, ruborizou-se por um segundo, recuperando em seguida o autocontrole. Com a voz glacial de sempre, continuou:

— Peço desculpas, deveria ter lembrado que você ainda não sabia. José Miguel estava mais depressivo do que nunca e, apesar de eu ter gasto uma pequena fortuna com os melhores médicos e medicamentos, e não estou reclamando, dinheiro nunca foi problema aqui, ele resolveu partir pelos próprios meios, tomando todo o conteúdo de um frasco de soníferos. Pelo menos, aparentemente, ele não sofreu no processo da passagem autoinfligida…

Sem pausa, olhou de modo indisfarçado para o relógio, dando a entender que a reunião terminara.

— Meus funcionários já deixaram as caixas ao lado do carro do seu amigo. Novamente me desculpo, mas preciso sair neste momento. Lamento pela sua perda, sei como José Miguel e você eram amigos.

Quero reformular algo que disse antes: ela é, sim, uma filhadaputa. Como assim, “minha perda”? Ela falou como se ela mesma não tivesse perdido nada nem ninguém. E, talvez, o sentimento — ou a ausência dele — fosse esse mesmo… Olhei para o lado e Leo estava boquiaberto. Parecia não acreditar na cena surreal na qual estava inserido. Tive que chamá-lo pelo nome para despertar o sujeito do transe, pois é assim que defino a maneira como ele olhava para a mulher que acabava de nos despachar.

Colocamos as caixas (onze, ao todo) no veículo, e só depois de passarmos pelo portão e ganharmos a rua, meu motorista improvisado comentou:

— Aquilo é uma mulher ou um androide?

Limitei-me a dar de ombros, e percebi que meus lábios tremiam de pura raiva quando respondi:

— Creio que está mais para um demônio.

Chegamos à minha casa, descarregamos nossa carga, já começava a anoitecer. Depois que Leo foi embora, com os meus devidos agradecimentos e a total recusa em aceitar qualquer pagamento pelo combustível gasto, olhei para a onzena de caixas e, apesar da curiosidade, deixei para depois o ato de abri-las. Estava por demais agastado com a “conversa” (mais acertado seria dizer “monólogo”) com a viúva do meu amigo, e precisava processar a informação de que ele tirara a própria vida. Nunca pensei que ele fizesse algo assim. E talvez não tenha feito. Prefiro crer que a doença tomou o controle de seus atos e o matou. Olhei de novo para as caixas e lhes desejei boa-noite.

— Amanhã vejo o que vocês têm para mim.

SLMB, 10/09/2024, Terça-feira, 22h57.

Celso Moraes F., São Luís dos Montes Belos. Lecionou Literatura, Português e Redação por 17 anos, passando depois a trabalhar com Revisão Textual. É escritor, quadrinista, poeta e Livre Pensador.

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