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A Obsolescência do Homem e o Templo do Tempo: Reflexões Sobre a Condição Humana

Atualizado em: 25/08/2024, as 06:08

— Ao entrar neste salão corre seu próprio risco porque ele o conduz ao futuro, não o futuro que será, mas sim um possível. Este não é um novo mundo, é simplesmente uma extensão do que começou no antigo. Foi feito à medida de cada ditador que alguma vez planejou em deixar a pegada da sua bota nas páginas da história, desde o princípio dos tempos. Tem avanços tecnológicos refinados e a mais sofisticada aproximação para a destruição da liberdade humana, mas como cada um dos superestados que o precederam tem uma regra férrea: A lógica é um inimigo, e a verdade é uma ameaça.
Este é o sr. Romney Wordsworth nas suas últimas 48 horas na Terra. É um cidadão do Estado, mas logo deverá ser eliminado. Porque é feito de carne e porque tem uma mente. Logo, o sr. Romney Wordsworth, exalará seu último suspiro.
Introdução de “O Homem Obsoleto”

No distante universo de The Twilight Zone, dois episódios ressoam como um aviso sombrio para o que vivemos hoje: “O Homem Obsoleto” e “Tempo Suficiente”. Ambos falam de homens à beira da irrelevância, esmagados por forças que não controlam. O bibliotecário Romney Wordsworth e o leitor voraz Henry Bemis nos mostram o que acontece quando a humanidade é relegada ao segundo plano, seja pela tirania ou pela simples indiferença de um mundo que não para de girar.

Vivemos em um tempo em que a obsolescência não se limita apenas aos objetos, mas atinge, de forma implacável, o próprio ser humano. No episódio “O Homem Obsoleto” da série The Twilight Zone, somos confrontados com a ideia de um bibliotecário, Romney Wordsworth, julgado e condenado à morte por ser considerado inútil em uma sociedade onde livros e religião foram banidos. O tribunal, símbolo máximo da autoridade estatal, decreta que Wordsworth não serve mais a nenhum propósito, pois, para o governo, as palavras e a fé são relíquias de um passado enterrado, sem lugar em um futuro supostamente iluminado pela razão e pelo controle absoluto. A escolha do sobrenome “Wordsworth” (que pode ser traduzido como “palavras que valem a pena”) não é casual, mas uma metáfora clara da importância que a palavra escrita tem na resistência ao totalitarismo.

O paralelo com “Tempo Suficiente” é evidente e doloroso. Nesse episódio, Burgess Meredith interpreta outro bibliotecário, Henry Bemis, que, após um holocausto nuclear, finalmente encontra tempo para ler todos os livros que sempre desejou. No entanto, a cruel ironia do destino se impõe quando seus óculos, essenciais para sua leitura, são destruídos. Bemis, agora cego para aquilo que mais ama, é uma vítima de uma catástrofe maior, mas que reflete a tragédia pessoal de cada um de nós: o tempo que nunca é suficiente, as oportunidades perdidas, a fragilidade de nossas paixões e, por fim, nossa própria obsolescência.

O Brasil, assim como o mundo, enfrenta hoje uma tirania diferente, mas não menos opressiva do que a retratada em The Twilight Zone. A censura, outrora uma ferramenta de regimes totalitários, ressurge camuflada sob a aparência de um poder judiciário que se posiciona como o guardião da moralidade e da verdade. Sob o pretexto de manter a ordem e a segurança, decisões judiciais censuram vozes dissonantes, abafam opiniões contrárias, e transformam o debate público em um monólogo estatal.

“O Homem Obsoleto” ressoa fortemente nesse contexto. Assim como o tribunal do episódio decreta a obsolescência de Wordsworth, nosso judiciário, em algumas de suas decisões mais controversas, tem marginalizado indivíduos e ideias, rotulando-os como irrelevantes, perigosos ou inadequados para o discurso público. A eliminação simbólica de figuras públicas através de decisões judiciais ou censura de conteúdos críticos é uma forma moderna de declarar obsolescência, não de profissões ou crenças, mas de pessoas e pensamentos.

O ponto culminante do episódio ocorre quando Wordsworth, em um ato de pura coragem, escolhe como será sua morte. Ele exige que o líder do tribunal, aquele que decretou sua obsolescência, esteja presente em seus últimos momentos. Ao trancar o juiz consigo em um quarto onde ambos aguardam a explosão de uma bomba, Wordsworth inverte os papéis: o juiz, símbolo de poder e autoridade, se vê impotente e desesperado, clamando por sua vida em nome de um Deus que ele mesmo havia declarado obsoleto.

Esta cena é uma metáfora pungente da luta contra a tirania. Quando a censura e a obsolescência são impostas de cima para baixo, a resistência se torna um ato de sobrevivência. Hoje, vemos cidadãos comuns, jornalistas, e até políticos sendo silenciados por tribunais que se julgam infalíveis. Mas, assim como Wordsworth, o verdadeiro poder reside na resistência contra essa tirania, na recusa em aceitar a obsolescência imposta, na defesa intransigente da liberdade de expressão e de pensamento.

Além do poder estatal, o avanço da tecnologia tem acelerado a obsolescência humana em níveis sem precedentes. Máquinas inteligentes substituem trabalhadores em ritmo acelerado; algoritmos decidem quais informações consumimos; a inteligência artificial ameaça até mesmo aqueles trabalhos outrora considerados inatingíveis pela automação. O ser humano, com toda sua complexidade e capacidade de criação, está sendo gradativamente empurrado para as margens, onde se encontra cada vez mais irrelevante.

Essa realidade evoca a angústia de Henry Bemis em “Tempo Suficiente”. Assim como Bemis perdeu a capacidade de ler justamente quando o mundo finalmente lhe deu tempo para isso, muitos de nós, hoje, enfrentamos o paradoxo de ter mais ferramentas e menos propósito. A tecnologia nos promete liberdade, mas frequentemente nos prende em uma teia de obsolescência programada, onde a próxima inovação é sempre mais valiosa do que o que veio antes, inclusive as pessoas.

A pergunta que surge, então, é: como escapar dessa obsolescência programada, tanto pela tecnologia quanto pelo poder estatal? A resposta não é simples, mas alguns caminhos podem ser traçados.

Primeiro, é essencial retomar o controle sobre a tecnologia. Isso significa usar a tecnologia como uma ferramenta, e não como um substituto para a humanidade. Devemos buscar um equilíbrio onde a inovação serve ao ser humano, e não o contrário. Isso implica em políticas que protejam empregos, invistam em educação e promovam o desenvolvimento humano em paralelo com o avanço tecnológico.

Segundo, é necessário uma vigilância constante contra a tirania, especialmente a que se disfarça de legalidade. O poder judiciário deve ser um guardião dos direitos e não um carrasco da liberdade. O fortalecimento da sociedade civil, da imprensa independente, e de instituições democráticas é crucial para garantir que o poder não se concentre a ponto de declarar obsoleta qualquer voz dissidente.

Finalmente, a resistência individual é fundamental. Assim como Wordsworth escolheu morrer com dignidade, recusando-se a aceitar a obsolescência imposta pelo Estado, cada um de nós deve se recusar a ser silenciado ou substituído. Isso significa valorizar nossas próprias habilidades, cultivar nossos talentos e lutar por um espaço onde nossas vozes possam ser ouvidas.

Em um mundo onde a obsolescência é cada vez mais programada e a censura, mais disfarçada, é urgente que resistamos. Resistamos à ideia de que somos apenas peças substituíveis em uma máquina. Resistamos à tirania de um Estado que quer controlar o que pensamos e dizemos. E, acima de tudo, resistamos à ideia de que o tempo é nosso inimigo. Como Wordsworth e Bemis, podemos encontrar força em nossas convicções, mesmo quando tudo parece perdido. Afinal, a verdadeira obsolescência só acontece quando desistimos de lutar pelo nosso lugar no mundo.

Escrito e Publicado em 21/08/2024

Barata Cichetto, Araraquara – SP, é o Criador e Editor do BarataVerso. Poeta e escritor, com mais de 30 livros publicados, também é artista multimídia e Filósofo de Pés Sujos. Um Livre Pensador

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