A Vida de Brian e a dos “Brians” do Século 21

O ano é 1979. Chega às telas dos cinemas no mundo inteiro a comédia cuja proposta era única e brilhante, mas não inédita: fazer gargalhar e pensar. O título do filme é simples e direto: “A Vida de Brian”. Lamentavelmente, só tomei conhecimento dessa obra-prima cerca de 10 anos depois, graças a indicação de um grande amigo (hoje nem grande, nem amigo), o qual estava em um estágio mais avançado em matéria de assuntos relacionados à sétima arte. Na verdade, graças a ele passei a compreender o cinema com outros olhos e ouvidos. Ato contínuo, e após muitos dias de espera, aluguei uma fita VHS – selada! – em uma videolocadora, a qual possuía uma seção exclusiva para filmes, digamos, “de arte”. O videocassete era um dos símbolos da modernidade, bem aventurados aqueles que tinham um.

Naquela época pré-internet, as informações sobre o cinema eram obtidas em revistas especializadas e nos cadernos culturais dos jornais. Evidentemente, eu já havia assistido filmes marcantes, contudo, sem dedicar a eles um aprofundamento intelectual ou crítico. Essa qualidade fui adquirindo ao longo dos anos, muitas vezes de forma empírica, por meio das fitas alugadas, nos cinemas, nas revistas e nos cineclubes. Naturalmente, errei muito, mas isso faz parte do aprendizado.

Antes que A Vida de Brian chegasse ao meu videocassete JVC japonês da gema, outro nome veio ao meu conhecimento: o Monty Python (Graham Chapman, John Cleese, Terry Gilliam, Eric Idle, Terry Jones e Michael Palin), o fabuloso grupo de humoristas britânicos que revolucionou a forma de fazer comédia, cuja influência se fez notar também fora dos domínios do Império Britânico. Filha dileta dos anos 60, a anárquica trupe não tinha escrúpulos em expor ao ridículo as convenções sociais, políticas e culturais não apenas dos súditos da Rainha, mas de outras sociedades mundo a fora.

É óbvio que programas como Os Trapalhões, Casseta & Planeta Urgente e TV Pirata, entre outros, chuparam (no bom sentido do termo) a intrepidez e a irreverência do Monty Python. Não é à toa que fazer rir é, antes de tudo, um ato revolucionário. Ditadores (e aspirantes a) detestam a comédia e humoristas, a ponto de combatê-los por todos os meios. A Vida de Brian é uma comédia demolidora.

A premissa da saga do judeu Brian de Nazaré (ou Brian Cohen) fica evidente logo no início do filme. Ele teve a ‘sorte’ de nascer em um estábulo, no mesmo dia em que um outro menino, também judeu, nasceu. Tal como está descrito nos Evangelhos, três reais magos do oriente, sabedores da chegada de um messias há muito prometido, dirigem-se ao local para ofertar ao recém-nascido ouro, incenso e mirra. Por um lapso, os magos erram o endereço e vão à casa de Brian, no que são recebidos grosseiramente por sua mãe Mandy Cohen (Terry Jones, impagável). A arrogância da mulher desaparece quando ela ganha os presentes destinados ao Messias. Descoberto o equívoco, os reis magos tomam de volta os presentes e os entregam a quem de direito, no estábulo ao lado. O incidente é o que basta para dar a vida de Brian um novo destino. Corta.

Agora, Brian, já um jovem adulto começa a fazer questionamentos à mãe, entre eles, o nome do pai que não conhecera. Ao entrar em casa, há um soldado romano, esperando ser ‘atendido’. Incomodado, ele começar a fazer questionamentos à mãe. Após insistência do filho, Mandy revela que ele é filho de Nojentus Maximus, um centurião romano, que se aproveitou da ingenuidade da mulher em troca de falsas promessas. Brian, que já cultiva um sentimento antirromano, fica chocado com a revelação, pois, embora seja um judeu, corre sangue inimigo em suas veias e ele nada pode fazer. Nesse diálogo, não é difícil deduzir que, enquanto Jesus nasceu de uma virgem, Brian é o filho de uma puta.

À medida que o tempo passa, o pobre Brian se vê cada vez mais enredado em atividades de combate ao poderoso Império Romano. Envolvido com a Resistência, ele se apaixona por Judith, uma militante da Frente Popular da Judéia, que o deixará na mão quando as coisas começarem a ficar complicadas para o grupo, quando a mão pesada do regime se faz sentir mais intensamente. Em outras palavras, Brian acaba sendo transformado em mártir da causa.

Embora o filme explore a sátira a política e a religião, a figura de Jesus Cristo não é atingida diretamente, pois esse não é o objetivo dos idealizadores. A saga de Brian segue em paralelo a de Jesus. Na verdade, o alvo do filme não é o Filho de Deus, e sim as convenções e as contradições da época, as quais, propositais ou não, dão as mãos com a atualidade. Esse é o ponto que garante a atemporalidade do filme.

Dito isso, A Vida de Brian é um filme contestador na essência e anárquico por excelência. Não se trata daquelas comédias que provocam risadas escancaradas até o ponto de provocar o desejo de se mijar nas calças. O nonsense do Monty Python, aperfeiçoado na televisão britânica por meio do programa Monty Python’s Flying Circus, um grande sucesso de audiência. O diretor Terry Jones soube costurar em A Vida de Brian os sketches escritos pelos integrantes do grupo, resultando numa espécie de ‘ordem na bagunça’.

É possível, ainda que subliminarmente, dar ao espectador a oportunidade de observar, comparar e concluir, entre uma gargalhada e outra, que a aventura de Brian deixa claro o quão grave é seguir falsos líderes, defender causas questionáveis, ou deixar-se levar por promessas irrealizáveis. Embora combata o Império Romano, Brian milita na Frente Popular da Judeia só porque Judith também participa do grupo, o qual, por sua vez, é rival da Frente Popular Judaica. Seja como for, ambos os grupos não sabem porque se detestam, tampouco não entendem o real sentido de sua luta contra o opressor. Seguindo essa linha, a luta acaba perdendo o sentido. Alguma similaridade com as muitas Frentes Populares surgidas nos séculos 20 e 21? O que se deduz é que esses movimentos revolucionários cuja missão é libertar povos oprimidos, na verdade, muitas vezes assumem o papel de opressores conforme suas conveniências. Exemplos não faltam.

Entre uma trapalhada e outra, o rebelde Brian acaba sendo considerado um messias, sendo seguido por um número cada vez maior de pessoas, que o seguem aonde quer que ele vá. Esse messias involuntário não consegue escapar de seu trágico destino, ao passo que tudo que ele diz o populacho interpreta de maneira errada, reproduzindo esses equívocos ad infinitum. Ao cabo de tudo, Brian, que nasceu em circunstâncias análogas às de Jesus Cristo, acaba tendo o mesmo destino do Filho de Maria: a Cruz.

O filme provocou ruídos na época de seu lançamento. Segundo a Wikipedia,
“Os temas de sátira religiosa do filme eram controversos na época de seu lançamento, provocando acusações de blasfêmia e protestos de alguns grupos religiosos. Trinta e nove autoridades locais do Reino Unido impuseram uma proibição definitiva ou aplicaram uma “Certificação X” (tornando o filme recomendado para maiores de 18 anos no país) impedindo efetivamente a exibição da comédia, uma vez que os distribuidores disseram que A Vida de Brian não poderia ser exibido a menos que tivesse sido editado e tivesse pelo menos uma “Certificação AA” (para maiores de 14). Alguns países, incluindo a Irlanda e a Noruega, proibiram sua exibição, com algumas dessas proibições durando décadas. Os cineastas incrementaram essa notoriedade na campanha de marketing do filme, com pôsteres na Suécia dizendo: “Que engraçado, foi proibido na Noruega!””.

https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Vida_de_Brian

A grande piada, é que o filme foi censurado em democracias fortes e estáveis. Na verdade, a censura involuntariamente acabava trabalhando a favor do Monty Python, visto que tudo que é proibido desperta a curiosidade das pessoas. Obviamente, A Vida de Brian não é a primeira obra do MP a entrar no radar do censura, oficial ou não: “Uma obra pythonesca que entrou no index dos livros proibidões que incomodam a pessoas de bem, é o livro “The Brand New Monty Python Bok”. Publicado em 1973, esse livro do Monty Python sofreu censura e foi considerado sexualmente explícito, e agora faz parte de uma exposição de material censurado pela biblioteca da universidade de Oxford”.

https://andartolo.com/monty-python-livro-exposicao-censura-mulher-pelada/

Monty Python em 2015 (Foto: Stephen Lovekin / Getty Images for the 2015 Tribeca Film Festival)

A piada prossegue:
“Um grande clássico da comédia é o filme “A Vida de Brian”, de Monty Python. Apesar de fazer qualquer um rir do começo ao fim, ele não agradou a comunidade católica de Aberystwyth, que baniu a película em todo o País de Gales, com a alegação de que era uma blasfêmia. Apesar disso, a proibição foi retirada em 2009. O mais engraçado é que a proibição foi retirada por Sue Jones Davis, prefeita da cidade, que participou do filme fazendo o papel da namorada de Brian, Judith Iscariot”.

https://www.curtoecurioso.com/2015/02/as-7-coisas-mais-estranhas-e-bizarras.html

Esses insanos atos de censura não eram novidade para o Monty Python. Eles prosseguiram por muitos anos.

The Rolling Stones (Foto: Stuart C. Wilson/Getty Images)

Chegamos ao século 21. O Monty Python não existe mais. Os tempos de agora são absolutamente pythonescos. A sensação é de que a humanidade caminha no estilo silly walk (andar tolo). Há um império do politicamente correto que tenta – até com relativo sucesso – reformar o ser humano. A cada dia surgem novos centuriões a vigiar os passos daqueles Brians que se recusam a seguir ordens dadas por minorias barulhentas mas organizadas, capazes de submeter grandes empresas, organismos e artistas às suas vontades.

Um exemplo que ilustra bem esse estado de coisas: “Cada dia é mais difícil reconhecer os Rolling Stones. Depois da recente ausência pela morte de Charlie Watts, célebre baterista da banda e um de seus membros originais, agora o politicamente correto chega ao ponto de retirar de sua lista de músicas Brown Sugar, uma das composições mais famosas do grupo, emblema do som e da irreverência da formação de rock mais importante do planeta.

A notícia veio à tona por meio de uma entrevista com os integrantes dos Stones publicada pelo jornal Los Angeles Times. Quando lhes perguntaram por que deixaram de tocar Brown Sugar no repertório da atual turnê pelos Estados Unidos, Keith Richards não pôde evitar a resposta. “Vocês não perceberam que essa música fala dos horrores da escravidão? Estão tentando enterrá-la. Por enquanto, não quero ter problemas com toda essa merda, mas espero que possamos ressuscitar essa beleza em toda a sua glória nesta turnê”, disse o guitarrista, que não se mostrou muito de acordo com a decisão. Logo depois, Mick Jagger, sempre mais correto e com uma visão empresarial sobre o grupo acima da brejeira e despreocupada de Richards, afirmou: “Tocamos ‘Brown Sugar’ em todos os nossos shows desde 1970, e às vezes dizemos: ‘Vamos retirar [essa canção] e ver que acontece’. A lista de músicas para uma turnê em estádios é complicada.’”

https://brasil.elpais.com/cultura/2021-10-13/rolling-stones-deixam-de-tocar-brown-sugar-por-suas-referencias-a-escravidao.html

Não vou entrar no mérito da letra de Brown Sugar, um grande clássico dos Rolling Stones, uma banda que entrou para a história não apenas por causa de sua criatividade, também pela irreverência, pelo desafio às autoridades e às normas sociais. A banda a tudo se permitia; os escândalos não foram raros. Ela assumiu as consequências. Tudo muito rock and roll. Nada tão diferente da proposta do Monty Phyton. Até onde sei, os monstros da comédia nunca cederam a pressões – ao menos tão facilmente. Já a veterana banda mostra-se cada vez mais irreconhecível por ceder a essa nova forma de censura. O maior problema está no fato de Mick Jagger ter cedido muito facilmente à pressão. Ele bem que merece umas pedradas (virtuais, please) por sua demonstração de fraqueza. Parece que a irreverência tão característica de uma das mais emblemáticas bandas de rock da história perdeu todo o sentido. Na verdade, o medo do cancelamento equivale, guardadas as devidas proporções, à tão temida cruz para a qual o ingênuo Brian foi mandado.

Não se pode negar que todo esse circo alimentado pelas redes sociais muitas vezes provoca risos. Também, não se pode negar que há muito medo à solta. Por enquanto, não dá para cantar O Lado Bom da Vida, mas resistir é preciso.

11/11/2021

Genecy Souza, de Manaus, AM, é Livre Pensador.
Possui textos publicados na revista digital PI Ao Quadrado e na revista impressa Gatos & Alfaces.

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Vinnie Blues
Vinnie Blues
07/03/2024 23:13

Parabéns! Adorei o texto, os detalhes, a resenha. Assisti o filme numa época em que obviamente eu tinha uma outra visão sobre todas as coisas e confesso que não mais me recordava deste clássico. Ao ler toda matéria pude relembrar e atualizar a minha visão sobre as mensagens e sacadas sensacionais do filme. Claro que hoje com um conceito totalmente diferente e apurado em relação ao início dos 80s. Muito bom mesmo hein !

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