Anos de Desbunde, Quando a MPB Era Hippie e Sensacional

Atualizado em 28/07/2024 as 22:24:51

Naquele turbilhão de acontecimentos que ocorreram no campo da cultura e com consequências na área sócio/comportamental entre as décadas de sessenta e setenta, a música popular brasileira também sofreu forte influência de tais aconte cimentos gerados.

Após décadas sem produzir grandes novidades estéticas, o grande diferencial na MPB havia sido a explosão da Bossa Nova no final dos anos cinquenta, e a música internacional parecia não incomodá-la, havendo grosso modo, uma convivência pacífica entre as duas correntes.

Mesmo porque, no caso da Bossa Nova, a raiz comum no Jazz como parâmetro, principalmente no tocante à composição e arranjos, privilegiando o uso de harmonia sofisticada, fazia com que a estrutura instrumental de ambos os estilos, fosse bem parecida.

Com exceção de artistas que usavam o violão como acompanhamento, era comum na Bossa Nova, a utilização de uma formação de piano, baixo acústico e bateria para acompanhar cantores dessa escola estética, repetindo o formato do combo clássico de Jazz Stand.

Mas houve um momento em que a nova música pop que vinha principalmente da Inglaterra, começou a incomodar os adeptos da MPB tradicional.

Garotos cabeludos e “barulhentos” tentando reproduzir o som de artistas negros americanos, e com raízes no Blues, entraram com força no imaginário popular, assustando os tradicionalistas com tantas mudanças , forçando-os a reagir da pior maneira possível.

Numa demonstração de incompreensão e ranço reacionário inadmissível por parte de alguns que nem tinham perfil para se portarem dessa forma, organizar a vergonhosa “Marcha Contra a Guitarra Elétrica”, como forma de “proteger” a pureza da MPB.

Como artistas de qualidade inquestionáveis, puderam participar de uma jornada lastimável dessa monta?

Não cabe julgamento, tampouco execração pública, no sentido de que todos estamos sujeitos a errar. Faz parte da vida, em qualquer área, a possibilidade de dar um passo errado e no cômputo geral, sábio é aquele que aproveita o momento de adversidade para crescer em cima de sua coragem de ter tentado, e humildade em reconhecer a falha.

Mas para efeito de história, essa tal “marcha” pode ser considerado um divisor de águas na MPB, que passaria por mudanças drásticas, doravante.

Logo na metade da década, ainda no calor da marcha reacionária e corporativista, começaram a pipocar festivais universitários de MPB, e logo, a ideia foi parar nos canais de televisão.

Nem preciso me alongar nesse parágrafo para exprimir o quanto os festivais da TV Record foram importantes para a MPB.

E dentro deles, a grande capacidade de transformação da MPB, já estava em curso, com jovens incorporando elementos do Rock internacional.

Guitarras, baixo elétrico e teclados eletrônicos entraram com tudo, subindo ao palco para interagir com os instrumentos tradicionais e até de orquestras que costumavam acompanhar cantores da velha guarda, usando smokings, com aquelas vozes empostadas e gestual formal.

Nessa altura, a Jovem Guarda já dava as cartas nas “jovens tardes de domingo”, e a consequente aceitação de cabeludos com guitarras na TV, já inevitável.

Mas a despeito de parecer algo revolucionário, a Jovem Guarda não era Rocker, 100% e nem MPB em sua essência.

Influenciada sim, pelo Pop Bubblegum internacional, via British Invasion, sua amálgama brasileira no entanto, flertava fortemente com o brega dos bairros suburbanos das grandes cidades, e sem muito quilate artístico para se sustentar como estética a entrar para a história, a não ser pelo hype midiático.

Portanto, salvo raras e boas exceções, não foi da Jovem Guarda que a MPB achou novos rumos, apesar de artistas Roberto Carlos terem se tornado mega populares (e para corroborar a minha tese, a carreira do Roberto, no pós anos sessenta, enveredou para o “romântico popular”, é um fato).

Por isso, a grande mudança começou para valer mesmo, dentro da explosão dos festivais, onde artistas antenados na modernidade e, sobretudo isentos de qualquer ranço reacionário, trouxeram o que havia de mais sensacional no Rock, Black Music, Jazz e experimentalismo para a nova MPB que se construía ali.

Outro ponto importantíssimo ocorreu ao final da década de sessenta e início dos anos setenta, quando a Black Music se fez presente na MPB, com muita força.

Além de uma safra sensacional de novos artistas surgidos nessa cena Black, com Tim Maia como “síndico desse condomínio”, é claro, alguns outros artistas se aproximaram dessa onda, com bastante inspiração. Foi o caso de Marcos Valle, outrora artista consagrado na cena do Samba-Jazz, e também de Elis Regina, cujo repertório base até então, privilegiava o samba em várias vertentes, mas depois de conhecer a Soul Music, abriu um novo horizonte na sua carreira, sem dúvida, abrindo-se até para o Rock, nos anos setenta.

E até o Roberto Carlos flertou (e muito bem), com a Black Music. Para quem é historiador da música, sabe bem que existiu um hiato na carreira dele, que é muito interessante entre a fase da Jovem Guarda e o mergulho no romântico-brega, onde ele teve um momento Soul, muito bom, com o apoio do Erasmo Carlos, que certamente já curtia essa onda, anteriormente.

Outra vertente que explodiu no início dos anos setenta, foi a de artistas que eram acintosamente influenciados por correntes do Rock internacional, como a psicodelia e o Rock Progressivo.

Nesse aspecto, a proximidade histórica do Progressivo com a música Folk europeia, naturalmente fez com que artistas de diferentes regiões do Brasil, fizessem a mesma associação.

Fato explicável com propriedade por qualquer musicólogo, a música folclórica, seja lá de que raiz ou nação represente, tem uma raiz comum e é base primordial da música erudita. Como o Rock Progressivo bebe na fonte da música erudita, sempre se casa com o Folk, de uma maneira harmônica.

Isso explica, portanto, a extrema felicidade com a qual os compositores mineiros egressos do movimento que entrou para a história como “Clube da Esquina”, entraram com tudo no mercado setentista, trazendo a música Folk das montanhas mineiras, com sonoridade de Rock progressivo e inquestionável quilate artístico.

O mesmo raciocínio se dá com alguns artistas nordestinos. A junção de suas raízes folclóricas multifacetadas com o Rock abriu caminho para uma série de artistas geniais, que uniram a psicodelia hippie, lisérgica e ufológica, ao som do agreste.

No meio da década de setenta, uma safra de artistas anteriormente relegados ao quase anonimato do underground, finalmente veio à tona, graças a um festival que tentava resgatar a aura dos festivais sessentistas. Era o Festival “Abertura”, da Rede Globo, realizado em 1975, e que se não conseguiu o mesmo glamour que pretendia repetir de 1967, ao menos teve o mérito de colocar artistas performáticos na crista da onda.

De minha parte, acrescentando agora a minha impressão pessoal de época, visto que nos anos setenta eu era adolescente e já acompanhava com total interesse tal cena artística, nem eu, nem meus amigos, fazíamos distinção entre o Rock e a MPB.

Nossa visão era de que as duas escolas caminhavam juntas, ideológica e esteticamente falando, diferenciando-se apenas em formatos, mas como falam os franceses, “Vive La diference”!

A essência era Hippie, mesmo para artistas que não se coadunavam abertamente em tal conceito.

Se o Walter Franco falava pausadamente em que “Tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo”, isso era coadunado com o Gilberto Gil dizendo: “Se Oriente rapaz, pela constelação”…

“Viva a Sociedade Alternativa”, poderia ter sido cantado pelo Country Joe McDonald em Woodstock ou ser palavra de ordem para enaltecer “Nutopia”…

Com os “cabelos ao vento, gente jovem colorida”, não queremos repetir os erros dos nossos pais. O negócio é tomar um “Táxi para uma estação lunar”, amiúde…

E quem sabe ir para o interior, se instalar numa “Casa no Campo, com meus discos, meus livros e nada mais”, porque “não dá para confiar em quem tem mais de trinta anos”…

Dá para fazer uma série de outras associações, mas a amálgama é sempre a raiz Hippie, com seus ideais de fraternidade, igualdade, amor à arte, liberdade, além de forte apelo espiritualista, com consequentes ligações com a ecologia, ambientalismo, sustentabilidade, anticonsumo, pacifista e uma série de outros atributos.

Uma frase da Gal Costa, publicada recentemente (2014), deu a letra: “A MPB era legal nos anos setenta quando virou Hippie”. Claro, Gal era legal, total e fatal…

De fato, considerando que naquela época, as novidades internacionais sempre chegavam com bastante atraso no Brasil, não é surpreendente constatar que o Flower Power que entrara em declínio no Pós-1969, chegasse ao Brasil, alguns anos depois.

Nesse contexto, a explosão Hippie no Brasil foi no início dos anos setenta e causou esse impacto na MPB, sem dúvida.

Citei poucos artistas e obras nesta matéria, propositalmente, porque esse tema, além de fascinante, gera desdobramentos.

Portanto, para não se tornar um ensaio gigantesco, paro por aqui, mas voltarei ao tema em matérias futuras, porque é um assunto vasto.

Por enquanto, deixo a constatação: A MPB quando era Hippie e desbundada, era sensacional!

Texto Publicado na 5ª edição da Revista “Gatos & Alfaces“, Março 2015

Luiz Domingues é músico desde 1976, tendo tocado nas bandas Língua de Trapo, A Chave do Sol, Patrulha do Espaço, etc. Atualmente com Kim Kehl & Os Kurandeiros. Como escritor, tem três livros publicados e outros no prelo. Escreve em diversos blogs e revistas impressas.
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Genecy de Souza
Genecy de Souza
23/06/2024 15:37

Graças aos deuses, a guitarra elétrica venceu a queixada de burro, estabelecendo um divisor de águas entre a velha e a moderna música brasileira. O instrumento “imperialista” era apenas um símbolo do ranço ideológico que já estava impregnado nas elites culturais brasileiras.
Certamente, a infame passeata foi um puta erro, o qual, se tivesse “dado certo”, muitos clássicos que seriam lançados após 1967 não existiriam (ou não seriam imaginados na forma como seriam conhecidos). Talvez a queixada de burro se fizesse presente em um álbum do Erasmo Carlos, Rita Lee, etc.
Outro fator a considerar é que, passados quase sessenta anos da tal marcha, o lema “defender o que é nosso” ganhou outro significado, nada edificante, pois, aquela elite tão aguerrida contra o “Sistema”, hoje é parte dele, de modo que o lema significa defender a grana que sai dos cofres do tal “Sistema”.
De resto, o tempos e os fatos falam por si.

Barata Cichetto
Administrador
Responder a  Genecy de Souza
23/06/2024 16:00

Completamente correta sua análise!

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