Atualizado em 08/08/2024 as 01:53:28
De repente a água levou tudo ladeira abaixo: encostas, terra, mato, lixo, carros, ônibus, casas, móveis, eletrodomésticos, livros, muros, árvores, e tudo o mais que estivesse pela frente. A poderosa torrente também levou quase duas centenas de vidas – ainda há mais de 150 pessoas desaparecidas. Mais uma vez o triste quadro que exibe nossas desgraças foi pintado com cores carregadas, em pinceladas grossas e em tons lúgubres, funestos. É um quadro feio de se ver.
O quadro é sempre o mesmo. No caso específico da cidade imperial de Petrópolis, a tela é repintada a cada nova tragédia, cobrindo a pintura anterior, entretanto, o tema e a paisagem são sempre os mesmos. É assim desde o tempo do Imperador, com a diferença de que, naquela época, a cidade era menor. Está mal escrito nas estrelas: o Brasil não sabe lidar com suas tragédias.
Pior: O Brasil não aprende com suas tragédias e, quando o faz, é de maneira fugaz, improvisada, temporária.
Vou piorar a coisa: toda tragédia abre covas e, ao mesmo tempo, janelões de oportunidades — de todos os tipos, não importa a época em que ela ocorra — . A seca no Nordeste é um exemplo ensolarado, já que lá, de tempos em tempos, a escassez de água determinou a migração de miseráveis país a fora, mortes pela fome e por doenças decorrentes dela aos que ficaram. A chuva, que sempre representou a diferença entre a vida e morte, também representou, mais uma vez, essa diferença. Em uma região foi a falta dela; em outra, foi o excesso.
É evidente que, tanto na região Nordeste quanto na cidade de Petrópolis providências foram tomadas ao logo das décadas, mas não o bastante para evitar a repetição das tragédias de sempre. Foram ações pontuais, ora movidas pela comoção social, ora por interesses políticos disfarçados de bom mocismo patriótico, empatia ou qualquer outro gesto falsamente nobre. Nestes tempos pandêmicos, tudo é feito em “defesa da vida”. Sabe-se que isso é, em grande parte das vezes, puro papo furado. Há quem acredite, e há quem não. Eu não acredito. Na verdade, sou um incrédulo contumaz e irrecuperável.
Minha incredulidade é estrutural. Entendam como quiserem.
Moro na maior cidade amazônica e uma das maiores do Brasil. Há milhões de anos, o caudaloso rio que banha essa metrópole sofre o processo natural de enchente e vazante. É ciclo constante, previsível. A enchente ocorre de forma lenta e gradual. Já a vazante é um pouco mais acelerada. Todos os moradores sabem a época do ano em que o rio começa a encher, e quando começa a descer. Não obstante esses fatores, milhares de pessoas habitam as áreas inundáveis há mais de 150 anos, seja por mero oportunismo, seja pela falta de políticas de planejamento urbano. Não é por falta de terra firme, tampouco de dinheiro. Essa situação depõe contra a dignidade humana. Por pura dedução, a permanência de pessoas residentes nessas áreas garante a manutenção de interesses escusos, sobretudo, eleitorais e financeiros. A lógica é simples: mantenha as pessoas em permanente estado de dependência das ações governamentais e as terá sempre nas mãos. Protele os problemas pelo tempo que for necessário; faça boas ações aqui e ali, mas que tenha a “marca” do benfeitor, para que o povo ignorante e manipulável não o esqueça. O voto é líquido e certo, como as enchentes, a seca e os deslizamentos de terra, só para ficarmos neles.
Voltemos ao janelão de oportunidades, seção Petrópolis, Nova Friburgo e Teresópolis:
Recordar é viver:
“A tempestade que devastou Petrópolis nesta terça-feira trouxe à tona as memórias da tragédia de 2011, quando o município e as cidades vizinhas de Nova Friburgo e Teresópolis registraram mais de 900 mortes. Apesar da dura lembrança de um desastre de enormes proporções, faltaram ações que prevenissem novas tragédias. As diversas recomendações feitas pelo relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Região Serrana, finalizada em agosto de 2011 na Assembleia Legislativa do Estado do Rio (Alerj), até hoje não foram seguidas.
Na tragédia de 2011, no início do segundo mandato do ex-governador Sérgio Cabral, o prefeito de Petrópolis era Paulo Roberto Mustrangi (Solidariedade), atual vice-prefeito. Ele revezou a cadeira com o atual prefeito, Rubens Bomtempo (PSB), que teve outros três mandatos, dois anteriores à tragédia (2001 a 2004 e 2005 a 2008, sucedido por Mustrangi, que ficou de 2009 a 2012 no cargo) e um posterior, a partir de 2013. Dessa vez, Bomtempo assumiu o cargo em dezembro de 2021, após um imbróglio jurídico já que havia sido condenado por improbidade administrativa em 2019.
Durante seis meses, a CPI ouviu especialistas e governantes, analisou documentos e visitou os locais atingidos para apurar as causas naturais e humanas do desastre. A comissão apontou problemas estruturais e de planejamento – que contribuíram para a gravidade dos efeitos das chuvas.
O relatório final da CPI destacou problemas como a presença de casas irregulares em encostas, assim como nas margens de rios — o que revela a carência de um sistema mais eficiente de defesa civil e de políticas habitacionais. O colegiado também apontou falhas na ação do poder público na retirada da população das áreas de risco durante a tragédia de onze anos atrás e denunciou corrupção em contratos emergenciais para recuperar as cidades.
Presidente da CPI, o deputado Luiz Paulo destacou à época o planejamento de metas para que fossem construídas habitações para realocar as casas que estão em áreas de risco na região. Segundo ele, isso “foi efetivado durante um tempo, mas foi caindo no esquecimento”.
— Os programas de habitação e contenção de encostas fraquejaram e é preciso que isso seja reavivado. O relatório da CPI continua o mesmo — avaliou o parlamentar.
Na época da tragédia de 2011, o estado previu construir 7.235 casas nas cidades devastadas pela chuva. Até o ano passado, segundo dados informados pelo próprio governo em meio ao aniversário de dez anos do caso, haviam sido entregues cerca de 4.200.
O documento fez recomendações e sugestões a diferentes órgãos e ao próprio governo do estado, incluindo a continuidade das investigações sobre o mau uso dos recursos públicos, o mapeamento geológico-geotécnico de encostas e áreas de risco e a formulação de acordos com a União para a criação do Centro Nacional de Prevenção de Catástrofe com correspondências a níveis estaduais e municipais.
Resumo da ópera tétrica: O evento de 2011 produziu uma Comissão Parlamentar de Inquérito que revelou muito, fez apontamentos, recomendações. Foi uma montanha que pariu ratos, do quase nada que foi posto em prática.
Como se vê no texto, a tal CPI se propôs a criar mecanismos para que a tragédia de 2011 não se repetisse. Mas não. Evidentemente que, passados 11 anos, não há como impedir uma nova chuvarada. No entanto, se as recomendações feitas pela CPI tivessem sido levadas a cabo, entre elas, a punição dos gestores públicos arrolados nos inquéritos, no temporal do dia 08 de fevereiro de 2022 haveria danos, sim, só que em uma escala muito menor, e sem a necessidade da decretação de calamidade pública. Talvez houvesse pessoas feridas. Em poucos dias a rotina de Petrópolis voltaria ao normal. O que se vê nos dias que correm é um sentimento de desolação, desamparo e raiva. Raiva por terem acreditado nos gestores. Raiva por não terem feito cobranças. Raiva por terem votado sempre nas mesmas pessoas. Raiva por terem esquecido. Raiva por acharem que o desastre não voltaria a ocorrer. Raiva por terem se acomodado.
Foi isso. Ou será que não?
O janelão de oportunidades está escancarado. Louve-se as boas ações da sociedade no sentido de prestar ajuda aos atingidos pela forte tempestade; são anônimos que demonstram seus gestos de solidariedade sem pedir nada em troca. Nem likes nas redes sociais.
Paralelo a isso, oportunistas de sempre aproveitam o escancaramento do janelão de oportunidades:
“O governador do Rio, Cláudio Castro (PL), usou as suas redes sociais nesta sexta-feira para contestar a ida do deputado federal Marcelo Freixo (PSB) à cidade de Petrópolis, onde as fortes chuvas deixaram ao menos 122 mortos. No Twitter, Castro afirmou que freixo é “o maior oportunista que já conheceu” e o definiu como “uma espécie de Zé do Caixão da política”. Em seguida, o deputado rebateu: “uma pena que no momento em que a população tanto precisa, tenhamos um governador tão despreparado e desequilibrado”.
Os dois são pré-candidatos ao governo do Rio. Castro tenta se manter no cargo com o apoio do presidente Jair Bolsonaro, de quem é correligionário, enquanto Freixo tenta oficializar o apoio do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. (…)”
Em um ano em que a corrida eleitoral será a mais acirrada da história, Petrópolis é o palanque perfeito para oportunistas dos mais diversos perfis. Muitas promessas serão feitas. Só que desta vez, os sobreviventes aprendam a não esquecer de nada, pois muitos dos culpados pela calamidade atual, são os mesmos da calamidade anterior.
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/02/18/prefeito-petropolis-rio-chuvas.htm
Só para fechar: o nome do prefeito de Petrópolis (pela quarta vez) é Rubens Bomtempo.
Triste ironia, não?
20/02/2022
Genecy Souza, de Manaus, AM, é Livre Pensador.
Possui textos publicados na revista digital PI Ao Quadrado e na revista impressa Gatos & Alfaces.