Atualizado em 27/07/2024 as 19:51:54
Não existe brasileiro que não identifique o autor destas frases:
“Foi por medo de avião, que eu segurei pela primeira vez a tua mão. Um gole de conhaque, aquele toque em teu cetim. Que coisa adolescente; James Dean.”
“Eu sou apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes, e vindo do interior.”
“Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo, tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos, e vivemos (ainda somos os mesmos e vivemos) como os nossos pais.”
“No Corcovado, quem abre os braços sou eu. Copacabana, esta semana, o mar sou eu. Como é perversa a juventude do meu coração, que só entende o que é cruel, o que é paixão.”
“Você não sente nem vê, mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo, que uma nova mudança em breve vai acontecer. E o que há algum tempo era jovem e novo, hoje é antigo, e precisamos todos rejuvenescer.”
“Quero uma balada nova, falando de brotos, de coisas assim. De money, de banho de lua, de ti e de mim, um cara tão sentimental. Quero a sessão de cinema das cinco, pra beijar a menina e levar a saudade, na camisa toda suja de batom.”
Pois é. Sem surpresa nenhuma, todas são trechos de alguns dos clássicos do compositor, músico e cantor cearense Antônio Carlos Belchior. Nascido em 26 de Outubro de 1946, na cidade de Sobral, desde cedo mostrou-se inclinado a não ser uma daquelas “pessoa cinzas, normais” facilmente encontradas em qualquer esquina da vida. As circunstâncias culturais e históricas da música brasileira enfiaram Belchior no balaio do chamado Pessoal do Ceará, aquele criativo e promissor grupo de artistas que partiu rumo ao Sul do país no no início da década 1970 não só para conquistar corações e mentes, mas para inserir, a exemplo da Tropicália e do Clube da Esquina, um capítulo importante na história da música brasileira.
Como não poderia ser diferente, nada caiu do céu para Belchior. O ex-seminarista do Mosteiro de Guaramiranga, em Baturité, no Ceará, onde aprendeu a viver com o mínimo de conforto e sob uma rígida disciplina, fatores determinantes para sua invejável bagagem intelectual, que incluíam estudos de latim e canto gregoriano. Ele chegou a cursar medicina. Entretanto, um possível doutor Belchior, que iria curar dores e doenças, mas desistiu de tudo para ouvir um chamado mais forte que ele: a música, através da qual trataria de dores e doenças da alma e da existência. De fato, além de nada ter caído do céu, também nada lhe seria dado de mão beijada.
A música de Belchior me foi apresentada pela voz de terceiros. No caso, na de Elis Regina, nos idos dos anos 70, época em que cheguei à adolescência e meu interesse por música ficava cada vez mais evidente. O rádio tocava Como Nossos Pais e Velha Roupa Colorida. Obviamente, naquele momento, pouco importava saber o nome do compositor, a música por si só era o que bastava, assim como tantas outras que saíam pelos alto-falantes. O conflito geracional narrado em Como Nossos Pais chamava mais a minha atenção.
Os meus 13, 14, 15 anos não me permitiam explorar o real sentido de Como Nossos Pais com profundidade, mas eu sabia o que Elis queria dizer. O problema estava na forma como a musa transmitia a mensagem: em voz alta, gritada, dramática, desesperada – uma gralha emepebística. Eu pensava com meus botões: “Não precisa gritar, porra, eu ouvi!”. Sim, a minha costumeira ‘chatonildice’ já estava presente em mim, e ficaria cada vez mais evidente à medida que eu amadurecia, que caía em ciladas musicais e delas saía, cada vez mais um chatonildo que vê e entende o mundo conforme as observações, comparações e conclusões que faz.
Na mesma época, outra composição de Belchior saía pelos alto-falantes do rádio, também de forma terceirizada: Paralelas. Desta vez na voz da Vanusa. Neste caso, só elogios. A loira falou a mensagem no tom certo, agradável, quase íntimo. Mais uma vez, pouco importava naquele momento o nome do compositor. Por um tempo achei que a música fosse uma composição de Antônio Marcos, com o qual ela foi casada por alguns anos. Devo ter ouvido uma versão na voz do Erasmo Carlos, mas essa versão não pegou.
Ainda nos anos 70, outros sucessos de Belchior foram aparecendo no rádio, desta vez na voz do próprio. Por causa do sucesso, o cearense era presença constante nos programas de televisão populares. Apesar disso, a figura e a importância do bardo cearense só passaria a ter um lugar especial na minha galeria de artistas preferidos mais de trinta anos depois daquela década que foi tudo, menos esta terceira década do século 21 de avanços tecnológicos aliados a retrocessos de toda ordem, embrulhados em vistosos papéis de presente, palavras de ordem e uma sociedade doente, cada vez mais intolerante e intolerável.
A música e a genialidade de Belchior brotaram em um tempo em que a censura ditava as normas impostas pelo regime militar. Nessa condição, a criatividade artística exigia esforços e meio para driblar a vigilância do Estado sobre a cultura. O cearense, assim como outros compositores de seu tempo, tinha ciência desse grande obstáculo, e se valia de matáforas, figuras de linguagem e outros artifícios linguísticos para expressar seus sentimentos, fossem eles de natureza sentimental ou políticos. Belchior viveu o bastante para descrever o atual estado de coisas, entretanto, só não o fez porque estava ocupado demais em seu exílio voluntário, fugindo em círculos.
O exílio de Belchior está documentado no livro Viver é Melhor que Sonhar (título decalcado das letras de Como Nossos Pais), de Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti (Editora Sonora, 2021), o qual narra com notável precisão – ao menos com as informações que os autores conseguiram obter — os últimos 10 anos de vida do bardo cearense, no Uruguai e no estado do Rio Grande do Sul.
Ao contrário do bom Belchior: Apenas um Rapaz Latino-Americano, de Jotabê Medeiros (Editora Todavia, 2017), Viver é Melhor que Sonhar não é uma biografia do compositor, a sim, um trabalho de jornalismo investigativo que responde às muitas especulações a respeito de seu sumiço dos holofotes da mídia, bem como desfaz uma série de equívocos acerca dos motivos que levaram Belchior a jogar toda sua carreira para o alto, em troca de um período de afastamento da família e dos amigos, em busca de um novo norte criativo, não apenas na música, como também nas artes plásticas. Evidentemente, a imprensa sensacionalista nunca se esqueceu de Belchior, tantas foram as matérias especulativas veiculadas pela grande e pequena mídias. Lamentavelmente, o próprio Belchior ajudou a alimentar tais notícias, haja vista ele próprio ter se encarregado de derrubar as pontes que o ligavam ao mundo real.
Belchior achava que, abrindo mão de compromissos diversos ele seria deixado em paz. A Justiça, por exemplo, sempre lhe fez lembrar das suas obrigações com o pagamento de pensões alimentícias, trabalhistas, tributárias, entre tantas outras. Tais renúncias ocasionaram o bloqueio de bens e do pagamento de direitos autorais, que o lavariam a um beco sem saída. É óbvio que seu exílio não seria solitário. Belchior tinha uma companhia: o nome dela era Edna Prometheu, uma obscura produtora cultural que o compositor conheceu em 2005, no ateliê do artista plástico Aldemir Martins.
Edna Prometheu, uma fã incondicional, foi muito além dessa condição, passando a ser tudo para Belchior, inclusive, amante. Com a anuência dele, Edna passou a gerenciar sua vida, seus contatos, suas palavras. Nada acontecia com Belchior sem o aval de Edna. Um “não” dela era um ordem; um “sim”, uma dáviva. O livro descreve com constrangedora objetividade as situações em que o grande compositor se vê em circunstâncias humilhantes, da falta de dinheiro, da fome, das mentiras contadas para encobrir outras, dos calotes, das bagagens confiscadas, das fugas, das dormidas ao relento, dos abusos na hospitalidade de amigos e fãs. Enfim, um livro que daria um filme. Belchior e Edna eram cúmplices nas mesmas desventuras.
Belchior morreu em 30 de abril de 2017, aos 70 anos, no sofá de uma casa emprestada por um empresário em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul. O corpo foi levado para Fortaleza em um voo fretado pelo Governo do Estado do Ceará; Edna foi junto. Após algumas semanas do sepultamento, e também por sofrer uma forte e compreensível rejeição dos parentes do compositor, Edna partiu para São Paulo, praticamente sem deixar vestígios, passando a viver novamente no anonimato.
“Viver é Melhor que Sonhar” é um verdadeiro On the Road: sobre as desventuras de Belchior e Edna Prometheu em terras uruguaias e gaúchas, bem como sobre a determinação dos autores em investigar os rastros da dupla e as reais motivações por trás do exílio de Bel, como ele era conhecido em seu círculo mais íntimo. Evidentemente, ele não nos dá todas as respostas, porém, desfaz equívocos e especulações sobre o que de fato aconteceu ao grande compositor. O melhor a fazer é acompanhar os autores pelas estradas que são tudo, menos monótonas.
06/06/2021
Viver e Melhor Que Sonhar – Os Ultimos Caminhos de Belchior
Chris Fuscaldo, Marcelo Bortoloti
Sonora Editora, 2021
260 Páginas
14 X 21 X 1,8
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Genecy Souza, de Manaus, AM, é Livre Pensador.
Possui textos publicados na revista digital PI Ao Quadrado e na revista impressa Gatos & Alfaces.