Clair de Lune — Capítulo 1

Atualizado em 28/07/2024 as 11:53:53

Londres, 1936.

A década de trinta estava sendo marcada pela Grande Depressão, a ela se associava graves tensões sociais e políticas, culminando com a ascensão de inúmeros regimes totalitários pelo mundo todo, mas especialmente em países europeus.

A Europa como um todo vivia uma efervescência política e esses regimes põem a pique o Capitalismo colocando o Socialismo como solução para os problemas.

Alguns países europeus mostram a possibilidade de revoltas internas, a Espanha inicia a sua Guerra Civil nesse mesmo ano liderada por Francisco Franco, nesse conflito há algo que incomoda a todos: a Alemanha de Hitler apoia os ideais de Franco e envia parte de suas tropas para treiná-las para novas táticas de batalha as quais poderiam ser utilizadas em futuros conflitos.

Jean Michel nasceu em Paris no seio de uma família de incontáveis gerações de Chefes de Cozinha, a culinária estava no sangue de todos em sua casa, seus pais eram exímios Chefes de Cozinha e cada um tinha o seu próprio Restaurante, os quais viviam sempre muito cheios de clientes.

Ele desde cedo aprendeu a arte da cozinha com seus pais, aos dezoito anos iniciou o curso de gastronomia na mais tradicional escola francesa, e aos vinte e seis anos, após ter terminado o curso, decidiu que iria montar seu próprio restaurante em Londres, longe da família, para poder expandir os conceitos que havia apreendido.

Chega a Londres em mil novecentos e trinta e um, era fluente no inglês, numa época em que a Europa estava sentindo os efeitos da quebra da Bolsa de Nova Iorque, mas ele traz consigo um bom dinheiro, e com isso consegue comprar um local no centro de Londres e montar o seu restaurante, e o faz de forma a honrar todas as tradições de sua família.

Seu restaurante, o Gouter Le Monde, não demora muito e começa a ser frequentado pela elite inglesa, o cardápio era sofisticado e inovador, os alimentos eram preparados com extremo esmero, atinge em cheio o gosto dessas pessoas, e logo seu restaurante passa a ser uma referência gastronômica em Londres, a ponto de pessoas importantes nos meios políticos e da alta sociedade londrina passarem a frequentá-lo com muita assiduidade.

Jean Michel e seu restaurante logo se tornam conhecidos na cidade, ele além de ser um excelente cozinheiro, era uma ótima pessoa, culta, de boas palavras, sempre se vestia de forma extremamente elegante, de um trato muito educado para com todas as pessoas, além da beleza pessoal, e esse ultimo detalhe faz com que as mulheres passem a assediá-lo sempre que vão ao seu estabelecimento, porém o jovem sempre se mantém discreto e extremamente respeitoso com elas, não queria confusões em seu trabalho.

Quanto ao lado sentimental ele confessa a Gregory, o Gerente do Restaurante e seu amigo antigo desde Paris:

— Tudo ao seu tempo, por enquanto me ocupo do estômago dos outros, depois irei me ocupar de meu coração.

Isso sempre causava enormes gargalhadas entre eles, quando esse assunto vinha à baila, normalmente nas rodas de amigos, ou quando ele saia à noite para uma aventura com alguma mulher atraente que o tinha fisgado.

No dia seguinte tudo voltava ao normal e a noite anterior era esquecida, ele não se relacionava com nenhuma mulher mais que uma noite, esses relacionamentos eram muito pouco frequentes em sua vida, ainda não havia encontrado a quem se dedicar de verdade.

Um de seus mais famosos clientes era o Embaixador Americano em Londres George Folmer, ele sempre ia ao seu restaurante aos finais de semana, porém de uns tempos para cá, em virtude da efervescência política, ele passa a ser visto com mais frequência durante a semana em almoços de trabalho, o restaurante tinha algumas mesas em locais estratégicos, distantes da maioria delas, o que causava extremo conforto e discrição, era o local mais apreciado para esses eventos, tanto é que Jean Michel teve que criar uma agenda para o almoço nessas mesas, tamanha procura, assim não haveria mais confusão e desencontros.

Os militares de Alta Patente do Exército Britânico também visitam com frequência seu restaurante, um desses ilustres visitantes era o General Fleming Courtney, ele sempre almoçava sozinho e sempre na mesma hora e, claro, sempre na mesma mesa, Jean já sabia disso então quando se aproximava a hora do General chegar ele já reservava essa mesa para ele com dois copos com Whisky Escocês de primeira linha que ele sempre degustava junto ao amigo antes do almoço.

Nesses momentos o General confidenciava coisas que eram discutidas no alto escalão, e numa dessas conversas ele confidencia a preocupação de toda a Força Armada com a criação do Exército Alemão, a Wermacht, e que isso poderia ser um sinal de que ela estaria se preparando para mais uma guerra, mas, dizia ele, o Primeiro Ministro Stanley Baldwin, pacifista por natureza, não acreditava que isso seria possível, e então a Inglaterra podia dormir sossegada que o mundo estava seguro, o contrário do que ele mesmo acreditava.

Então ele pergunta a Jean:

— O que você acha de Hitler?

Jean Michel era um homem muito inteligente, acompanhava de perto todas as notícias, estava preocupado com isso, pois sua família toda estava em Paris, e ele sabe do ódio que os alemães têm elos franceses, ele temia uma guerra, mas responde de forma a não alimentar discussões mais acaloradas, e diz ao militar:

— Caro General eu apenas acho que o Tratado de Versalhes, o qual os alemães foram obrigados a assinar em janeiro de mil novecentos e vinte, teve um caráter claramente punitivo e isso deve ter acirrado os ânimos para um revanchismo alemão, isso causou a queda da República de Weimar e acirrou o sentimento de nacionalismo do povo, o que propiciou a entrada no cenário alemão do Partido Nazista em mil novecentos e trinta, não é mesmo?

— Portanto acho que Hitler deva estar muito zangado com todos, mas não sei se a Alemanha tem dinheiro para poder se envolver numa nova guerra.

Jean Michel sabia que os alemães haviam recuperado as suas finanças e de que Adolf Hitler era um ditador que tinha por intenção recolocar a Alemanha em seu devido lugar, e que isso poderia desencadear outra guerra com resultados simplesmente imprevisíveis, mas esses eram assuntos militares, e ele fica quieto sobre isso, não queria expor todo seu conhecimento, pois não confiava que essa sua visão pudesse ser bem vista por um militar.

O General olha para ele e diz:

— Eu não tenho dúvidas de que aquele alemãozinho está se preparando para outra escala bélica, mas o nosso Primeiro Ministro não pensa assim, ele acha que tudo está muito bem e que viveremos felizes e em paz por toda a eternidade, então, paciência.

— Este Whisky realmente é muito bom, acho que vou querer outra dose antes de almoçar, me acompanha em mais uma dose?

Jean Michel sorri benevolamente ao amigo e acena positivamente com a cabeça, chama um Garçom e pede a este que traga mais dois copos com aquele Whisky.

Seu restaurante passa a receber cada vez mais pessoas ligadas às Forças Armadas, as pessoas intelectuais, artistas e agitadores culturais, e empresários, todos discutiam a situação financeira e política do mundo, o ambiente era acolhedor, a comida era de primeira linha, então o Gouter Le Monde se torna referência em Londres para o encontro dessas pessoas.

Conforme os dias iam passando a situação política da Europa fica mais tensa, o fato da Alemanha ter retomado o alistamento militar obrigatório no ano de 1935 deixou todos preocupados, isso significava que estaria remontando seu exército, e a sua renúncia ao Tratado de Versalhes em março deste ano e o anúncio de que havia remilitarizado a Renânia deixou mais ainda a certeza de que poderiam retomar as ações bélicas, Jean Michel fica muito preocupado com a possibilidade de uma nova guerra, afinal de contas a França, onde estava toda sua família, se encontrava ao lado da Alemanha, e essas duas nações decididamente se odiavam.

O final do mês de julho foi terrível para o povo espanhol, irrompe um conflito que incita uma revolta que culmina com a Guerra Civil Espanhola, o pai de Jean Michel liga para ele e relata como estavam as coisas naquela região:

— Meu filho eu acho que as coisas por esta região estão de tal forma preocupante que, se não se tiver o devido cuidado, deverá culminar com outra guerra que deverá envolver, novamente, todos os países europeus.

— As notícias que nos chegam pelas rádios daqui dão conta de que essa guerra na Espanha está sendo alimentada e apoiada pelos alemães e pelos italianos, causando verdadeiras devastações em território espanhol, dá-se conta de que muitos civis estão sendo mortos sem piedade.

Jean Michel fica inquieto e diz ao pai:

— Seria melhor você virem para cá, meu apartamento é amplo e poderá abrigar a todos, seria mais seguro, e eu ficaria mais tranquilo.

Mas seu pai era uma pessoa muito tradicionalista, havia lutado na Primeira Grande Guerra, e responde ao filho:

— A minha vida toda eu morei e trabalhei em nossa cidade, assim como fez meu pai, assim como fez meu avô, eu não irei sair daqui, além do que estamos seguros com a Linha Maginot, mesmo que haja algum conflito não seremos atingidos por ele, fique tranquilo.

Mas Jean não iria ficar sossegado, sabia do risco de um novo conflito e sabia que a França seria ameaçada por ele, mas não havia nada a ser feito, conhecia muito bem o seu pai, mais tarde tentaria convencer os irmãos, seria melhor ficarem um tempo em Londres.

O mês de novembro mal começa e a notícia de que houve a criação de uma aliança entre a Alemanha e a Itália chamada de Eixo Roma-Berlim pega todos de surpresa, os países europeus ficam preocupados com isso, e mais tarde, precisamente no dia vinte e cinco de novembro daquele ano a Alemanha e o Japão assinam o Pacto Anti Comunista, o que faz com que as preocupações se estendam para outros lados do mundo, havia um clima muito pesado, e essas alianças acabam trazendo um enorme desconforto para todos, com isso a Europa fica ainda mais agitada, não se sabia ao certo os objetivos dessas alianças, mas as suspeitas de suas intenções bélicas eram bastante claras.

O mês de dezembro corria sob esse impacto quando a Inglaterra é balançada em suas estruturas com a abdicação ao trono pelo Rei Eduardo VIII, ele queria casar-se com uma plebéia norte-americana, mas os Primeiros Ministros do Reino Unido eram contrários a esse casamento, diziam eles que o povo nunca aceitaria uma mulher divorciada com dois ex-maridos vivos como rainha.

Ele foi sucedido por seu irmão Alberto, que tomou o título de Jorge VI.

Assim o ano de mil novecentos e trinta e seis termina com uma crise institucional na Inglaterra e com a Europa em atenção devido a vários acontecimentos tal como a Guerra Civil Espanhola apoiada pelos italianos e pelos nazistas, assim como também pela mobilização alemã, tanto na reformulação de seu exército quanto na sua aliança com o Japão, os ingleses estavam especialmente preocupados com tudo, pois seu Primeiro Ministro Stanley Baldwin era pacifista e não acreditava que o mundo seria envolvido novamente numa outra guerra.

Algumas vozes se erguiam nos meios políticos contra essa morosidade e acomodação dele, dentre elas duras e insistentes críticas eram feitas por um membro da Câmara dos Comuns, de nome Winston Churchill, nas quais ele tecia duras críticas ao nazismo alemão e rogava ao governo britânico que fossem investidos recursos na militarização prevendo um possível ataque alemão num futuro próximo e temendo que o Reino Unido não estivesse preparado para resistir.

Aquele final de ano Jean volta à Paris para passar o Natal com seus familiares, mas fica no peito uma ponta de angustia pela situação que vivia a Europa, e que temia que piorasse e culminasse com um conflito de proporções maiores que as da Primeira Grande Guerra.

Walter Possibom, São Paulo, SP é autor de Um Brilho nas Sombras e Quando os Ventos Sopram na Pradaria. É editor dos Blogs Planet Caravan e Walter Possibom Escritor, e além de músico, Livre Pensador.

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