Clair de Lune — Capítulo 17

Atualizado em 28/07/2024 as 11:48:30

Estavam no dia seis de agosto de mil novecentos e quarenta e quatro, não havia táxi na cidade, teriam que se locomover a pé, eles estavam na parte oeste da cidade, Jean conhecia muito bem o mapa de Londres então não teria problema algum em se locomover por lá, embora muitas das ruas que conhecia simplesmente foram varridas pela destruição, mas seu instinto de localização e direção o guia para o centro, onde vivia sua vida desde que se mudou para cá.

Charles o acompanha, fica impressionado com o grau de destruição e os sinais de calcinação provocados pelas bombas incendiárias, encontram vários componentes metálicos derretidos o que os faz imaginar as enormes temperaturas atingidas pelo incêndio, aquilo certamente havia se transformado num inferno.

Eles caminham por entre os escombros, a Defesa Civil estava fazendo um ótimo trabalho junto da população na limpeza das vias, para que a circulação voltasse à cidade, mas não conseguiam ver um prédio sequer que estivesse em pé por inteiro, passam numa rua onde Jean identifica onde ficava um mercado que ele vinha uma vez por semana para comprar algumas frutas, não havia nenhum sinal que ali um dia centenas de pessoas circulavam em busca de frutas frescas, isso faz com que a tristeza aumente muito em seu peito, os elementos que faziam parte de sua vida haviam sido destruídos, agora eram apenas lembranças em sua memória, havia destruição para todos os lados para o qual se olhasse.

Caminham mais um pouco e Jean reconhece o entreposto onde comprava os legumes, a placa que o identificava podia ser vista parcialmente em meio aos escombros, isso significava que estava chegando perto de onde morava e tinha seu restaurante, seu coração acelera, a sua respiração fica cada vez mais difícil, chega a duvidar se terá condições de prosseguir, o desespero se faz em pequena intensidade, Charles percebe isso, segura o amigo pelo braço e diz:
— Não quer descansar um pouco aqui antes de continuarmos?

Jean olha para o amigo com os olhos úmidos, balança a cabeça em sinal negativo e lhe responde:
— Tenho que ir até o fim preciso ver o meu prédio e meu restaurante mesmo que eles não existam mais, e pela minha vida, preciso ver minha esposa.

Após falar isso sente uma enorme fraqueza em suas pernas e cai de joelho, o amigo corre para ajudá-lo, caminha com ele até um pequeno monte de tijolos e ali senta, Jean estava exausto, não apenas fisicamente, mas principalmente em seu aspecto emocional, estava arrasado com tudo que estava vendo, e perceber que dificilmente conseguira encontrar o maior amor que teve com vida.

Charles tenta animá-lo, diz a ele:
— Meu amigo, o sistema de metro aqui é enorme e profundo, foram todos avisados com antecedência e se esconderam no metrô, nós iremos encontrar sua esposa e seus amigos, tenha fé.

Mas era difícil compreender e aceitar essa possibilidade tamanho grau de destruição com que se defrontam, mas Jean levanta e segue adiante, passa por uma rua a qual sabe que, em seu final, dará para a avenida onde tinha seu restaurante, esse seria o primeiro lugar dos dois que procurava depois de mais de um ano fora, e fica imaginando que não conseguirá distingui-lo dos demais escombros, mas segue adiante, estava a menos de um quarteirão do local, seu coração aumentava a frequência de batimento conforme avançava, ele olhava para todos os lados tentando encontrar algo que lhe fosse familiar, mas encontra pouca coisa dentro da destruição.

Chega ao final da rua e olha para a sua esquerda, a avenida estava completamente destruída, havia apenas um monte de escombros, ele caminha em direção ao local onde havia seu restaurante, ali havia alguns restos de parede e algumas pessoas ajudando na limpeza do entulho, de repente reconhece uma delas: era Gregory!

Sai voando na direção do amigo que assim que vê sua aproximação o reconhece de imediato e os dois se abraçam com muita força, o choro convulsivo se faz entre os dois grandes amigos, Charles observa tudo emocionado.

As forças de Jean estavam quase ao fim, então senta num monte de entulho, Gregory olha para o amigo e diz:
— Que Deus seja louvado por tê-lo trazido de volta para nós, não faz ideia do sofrimento e da dor que sentimos quando soubemos que o Exército Alemão havia invadido Paris, foi um choque, demoramos muito para poder assimilar essa notícia.

Jean quase não o ouvia, a emoção em vê-lo e a necessidade de saber sobre Evelyn o deixam surdo, então ele pega nas mãos do amigo olha para ele com profunda dor e faz a pergunta fatal:
— E Evelyn, pelo amor de Deus meu amigo, onde está Evelyn?

Gregory olha para ele, seu semblante muda completamente, senta ao lado dele e diz:
— Ficamos juntos em seu apartamento na esperança de receber uma ligação sua, depois ficamos sabendo que as linhas telefônicas haviam sido cortadas em Paris, ela entrou num desespero enorme por saber que você estaria lá sem poder falar com ela, ficamos dois dias sem saber o que fazer então ela decidiu voltar a trabalhar na Embaixada para tentar uma comunicação com você de lá, mas sem sucesso.
— Ela tentou utilizar de toda a força política do consulado para obter informações sobre você.
— Mas um dia sofremos um tremendo ataque alemão, era dia, eu estava no restaurante, arrumando as mesas, ouvi um ruído estridente e todos nós saímos do Restaurante e conseguimos ver no horizonte uma quantidade enorme de aviões, eram da cor diferente dos nossos aviões então gritei a todos e fomos ao abrigo antiaéreo, ali já havia várias pessoas e dentre elas meu pais, estávamos com muito medo, e logo vieram as explosões, o solo tremia com elas, isso tudo demorou cerca de duas horas, logo chegaram alguns soldados que nos disseram que devíamos voltar à superfície que o ataque havia sido terminado, quando subimos ficamos aterrorizados com tudo, a destruição tinha sido enorme, nosso restaurante tinha virado cinzas.
— Imediatamente pensei em Evelyn, mas não havia como andar de carro porque as ruas estavam todas cheias de entulho e escombros, fui a pé, corri como nunca em minha vida, passei em frente ao seu prédio, ele ainda estava parcialmente intacto, mas ela não estava lá, fui até o Consulado e não consegui chegar próximo a ele, a polícia havia feito um cordão de isolamento a cerca de duzentos metros do edifício, mesmo que você conseguisse passar pelos policiais teria que enfrentar inúmeros soldados norte-americanos os quais garantiam o isolamento do local, era impossível passar por eles, mas mesmo assim fui até eles e expliquei a situação, mas não me ouviram, simplesmente me mandaram embora, mesmo assim tentei passar por eles e acabei sendo preso por dois soldados que me levaram de lá quando, de repente, os aviões voltaram, fomos para um abrigo e o bombardeio continuou por mais de três horas, e quando subimos o prédio da embaixada estava completamente destruído.

Jean entra em desespero, chora igual a uma criança, o amigo tenta consola-lo e diz a ele:
— Eu continuei procurando por ela sem parar, fui a todos os hospitais, tendas de atendimento médico, tentei com o Consulado Geral dos Estados Unidos, que estava num dos poucos prédios que ainda estavam em pé, tentei junto à Polícia de Londres, mas nada, ninguém tinha nenhuma informação sobre ela.
— No auge de meu desespero em saber sobre ela fui procurar pelo nome dela na lista dos mortos, e o nome dela não estava lá, jamais deixei de procurá-la em nenhum instante, mas não consigo achá-la, a dois dias tive a informação de que a embaixada Norte-Americana foi mudada para Oxford temporariamente, é muito provável que lá saibamos de algo.

Jean continua desesperado, e diz a ele:
— Isso já faz muito tempo meu amigo, se ela estivesse bem ela já teria se comunicado com você, deve ter havido algo terrível com ela.

Gregory tenta acalmar o amigo:
— Não é verdade Jean, nós estamos em tempos de guerra, as coisas, mesmo as mais simples, são muito mais difíceis de conseguir, as comunicações estão em caos, vamos ter fé, nada de ruim aconteceu com nossa Evelyn e logo nós a encontraremos.

Gregory continua:
— Estou esperando um amigo que tem um caminhão de entregas, ele irá para Oxford hoje levar uma carga para lá, ele nos dará carona e poderemos conversar com o Embaixador, ele nos dirá sobre ela, vamos ter fé e buscar todos os recursos, vamos acreditar até o fim que tudo está bem.

Jean estava inconsolável, não sabia o que fazer, mas aceita a solução proposta pelo amigo, então se lembra de apresentar Charles a ele e o faz com atraso, a seguir diz que deseja ir até onde havia o prédio onde se localizava seu apartamento, e o amigo o leva até lá.

Aos poucos Jean vai se acalmando, então Gregory o ajuda a se levantar e dia ao amigo:
— Vamos até o seu prédio, e depois vamos para Oxford encontrar a sua esposa.

Assim os três se dirigem ao final do quarteirão, a destruição fora total, não sobrara nada do prédio onde um dia Jean morou e foi tão feliz, fica em pé olhando para o vazio.

Jean é tomado por uma emoção indescritível quando se recorda das vezes que entrou no prédio de braços dados com Evelyn, a emoção estava na pele por tudo o que estava passando, senta perto de onde era a entrada do edifício e fica imaginando os momentos que teve com ela, então se vira ao amigo e diz:
— Eu devia ter escutado os conselhos e não ter ido a Paris, eu devia ter ficado, cometi um grave erro, agora eu destruí minha vida toda.

Gregory o interrompe:
— Você não pode se culpar por tentar salvar seus pais, fez o que a sua consciência dizia ser o correto, isso não significava que você amasse a Evelyn menos, apenas que você agiu para salvar seus pais e esse é um ato nobre.

Jean é abraçado pelo amigo, Charles apenas observa, mas sente-se muito emocionado com a cena, percebe nitidamente o quanto aquele homem amava a sua esposa, e acaba se abraçando a eles na tentativa de lhe passar um pouco de ânimo.

De repente um rapaz grita pelo nome de Gregory, era o ajudante de caminhão do amigo dele que os levariam até Oxford, era hora de partirem, para Jean e Charles era apenas a continuação de uma viagem que teve início em Paris e dali para a Espanha, depois para o mar e finalmente o continente inglês.

Eles se dirigem até o caminhão, Gregory cumprimenta o amigo e pergunta se haveria problema em dar carona para três homens, seu amigo lhe responde que havia espaço suficiente para todos, ele irá levar alguns equipamentos para Oxford e com isso iria ganhar uma boa grana além do combustível, então seria um passeio grátis para todos, e assim todos eles se dirigem para o local onde o caminhão estava estacionado, pois não havia como o veículo chegar até ali.

Os três sobem na carroceria do caminhão onde dividiriam espaço com os equipamentos, o amigo de Gregory e seu ajudante entram na boléia, a viagem seria longa, as estradas estavam em péssimo estado, tinham uma pequena quantidade de comida com eles, talvez não fosse suficiente para comerem até saciar a fome, teriam que suportar isso, quanto à água essa não seria problemas, pois passariam próximos a vários rios onde podiam encher o barril que levava com água.

Jean senta na parte final da carroceria, fica olhando a cidade se afastar cada vez mais, ela não era nem sombra do que foi um dia, sente seu passado enterrado em meio a tanto entulho, quer encontrar Evelyn de qualquer jeito, não consegue ver seu futuro sem ela, as lágrimas escorrem de seus olhos, o rosto dela se faz cristalino em sua mente, e a saudade aperta, estava há mais de um ano longe dela, sentia muita falta de seu abraço e de seu beijo, a vida não era a mesma sem ela, o restaurante e seu apartamento destruídos podiam ser reconstruídos, ele queria o mesmo com sua vida junto a ela.

Conforme se afastam conseguem ver alguns focos de incêndio em outras partes da cidade e o grau de destruição que ela sofreu, a situação era desoladora, as pessoas caminhavam de forma automática pareciam ainda estar sob transe como que não acreditando no que havia acontecido, e Jean se encaixa perfeitamente nesse quadro, estava sem ação, perdido, desolado, olhava para tudo e seu olhar se perdia no horizonte.

A jornada até Oxford seria longa, então se encaixa ali mesmo e dorme um pouco, o corpo todo estava dolorido, o cansaço lhe tomava por inteiro, não sente animo para fazer nada, se deixa levar por isso e logo adormece, sua busca continuava.

Walter Possibom, São Paulo, SP é autor de Um Brilho nas Sombras e Quando os Ventos Sopram na Pradaria. É editor dos Blogs Planet Caravan e Walter Possibom Escritor, e além de músico, Livre Pensador.

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