Como Ocorre a Transferência dos Direitos Autorais?

Atualizado em: 07/11/2024, as 01:11

Venho recebendo algumas sugestões de temas para as próximas matérias, dentre elas, uma que achei muito interessante, se refere ao fato do autor não ter interesse em transmitir os direitos autorais de sua obra aos seus herdeiros após o seu falecimento.

Logo me veio a lembrança a famosa compra pelo cantor Michael Jackson em 1985 dos direitos sobre a obra dos Beatles. Toda vez que alguém queria gravar, incluir em trilha sonora, reproduzir de qualquer forma uma música do quarteto de Liverpool, remunerava o Rei do Pop, não Paul McCartney ou John Lennon. Porém, como isso se daria no Brasil? Seria possível?

Em primeiro lugar, torna-se importante deixar claro que, quem cria a obra é o artista, e só ele pode ser chamado de autor, pois além de ser o criador, a ele pertencem os verdadeiros direitos, segundo a lei 9610/98

(“Art. 11. Autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica.”).

Então, que direitos serão transferidos para os herdeiros após a morte dos artistas? Evidentemente, aqueles que os artistas detinham ao morrer, só que nesse caso os herdeiros os recebem como “titulares”, ou seja, jamais se transformarão em “autores” das obras.

Mas é possível transferir esses direitos a terceiros para que não cheguem aos herdeiros?

A resposta não é tão simples, e vai exigir toda explicação que virá a seguir. Mas, já me antecipando, podemos afirmar que sim, os direitos patrimoniais da obra poderão ser transferidos, no entanto, os direitos morais, esses são intrasferíveis.

Pois é, agora o assunto complicou um pouco. Mas vamos aos esclarecimentos.

Como ia dizendo, já respondendo ao questionamento do tema proposto neste artigo, sim, é possível que o autor transfira seus direitos autorais a um terceiro. Tal possibilidade é clara e está expressa nos artigos 49 e seguintes da Lei 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais), ou seja:

Art. 49. Os direitos de autor poderão ser total ou parcialmente transferidos a terceiros, por ele ou por seus sucessores, a título universal ou singular, pessoalmente ou por meio de representantes com poderes especiais, por meio de licenciamento, concessão, cessão ou por outros meios admitidos em Direito, obedecidas as seguintes limitações:
I – a transmissão total compreende todos os direitos de autor, salvo os de natureza moral e os expressamente excluídos por lei;
II – somente se admitirá transmissão total e definitiva dos direitos mediante estipulação contratual escrita;
III – na hipótese de não haver estipulação contratual escrita, o prazo máximo será de cinco anos;
IV – a cessão será válida unicamente para o país em que se firmou o contrato, salvo estipulação em contrário;
V – a cessão só se operará para modalidades de utilização já existentes à data do contrato;
VI – não havendo especificações quanto à modalidade de utilização, o contrato será interpretado restritivamente, entendendo-se como limitada apenas a uma que seja aquela indispensável ao cumprimento da finalidade do contrato.

Normalmente, o herdeiro sucederá os direitos patrimoniais de um autor falecido, na chamada transmissão mortis causa e, como qualquer outro patrimônio, seguirá as regras do Direito Civil na matéria, ou seja, com o falecimento do autor, abre-se o inventário e os herdeiros se habilitam para receber seu quinhão do patrimônio. Sendo certo que, quando o autor morre sem herdeiros, a obra cai imediatamente em domínio público, cujo uso é livre.

Prosseguindo. O direito de autor, como mencionado, possui duas dimensões. Uma moral, direito personalíssimo que como tal se reveste das características de inalienabilidade e irrenunciabilidade. A outra dimensão é patrimonial, que, como todo bem, pode ser negociado das mais diversas formas. É nessa última que se foca essa matéria, onde procurarei descrever a forma de uma pessoa adquirir direito sobre uma obra.

  • DIREITOS MORAIS são características da obra que se relacionam à personalidade do autor, e tem natureza inalienável, irrenunciável e imprescritível, ou seja, não podem ser vendidos, não podem ser cedidos, não podem ser renunciados e não prescrevem. Dessa forma, não podem ser objeto do contrato de cessão e estão dispostos no artigo 24 da Lei 9.610/98.

Por serem um pouco mais complexos, os direitos morais, entendo louvável a reprodução do Art. 24 da Lei 9.610/98 para melhor compreensão:

“Art. 24. São direitos morais do autor:
I – o de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra;
II – o de ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização de sua obra;
III – o de conservar a obra inédita;
IV – o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra;
V – o de modificar a obra, antes ou depois de utilizada;
VI – o de retirar de circulação a obra ou de suspender qualquer forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização implicarem afronta à sua reputação e imagem;
VII – o de ter acesso a exemplar único e raro da obra, quando se encontre legitimamente em poder de outrem, para o fim de, por meio de processo fotográfico ou assemelhado, ou audiovisual, preservar sua memória, de forma que cause o menor inconveniente possível a seu detentor, que, em todo caso, será indenizado de qualquer dano ou prejuízo que lhe seja causado.
§ 1º Por morte do autor, transmitem-se a seus sucessores os direitos a que se referem os incisos I a IV.
§ 2º Compete ao Estado a defesa da integridade e autoria da obra caída em domínio público.”

Note-se que, no que tange os direitos morais, com a morte do autor só serão transmitidos aos sucessores apenas os direitos a que se referem os incisos I a IV do Art. 24 da Lei 9.610/98. Aliás, torna-se importante destacar que, embora esses direitos morais sejam transmitidos aos sucessores, isso não quer dizer que o herdeiro possa reivindicar para si a autoria da obra, ou ter o seu nome como autor, resumidamente, o que ele herdará é o direito de zelar pela obra que já se encontra registrada em nome do autor falecido.

  • DIREITOS PATRIMONIAIS são aqueles relacionados à exploração econômica da obra e serão objeto do contrato de cessão por serem desdobramento do direito exclusivo do autor de utilizar, fruir e dispor de sua obra e estão dispostos no artigo 29 da Lei 9.610/98.

A transferência de direito patrimonial de autor só se faz de maneira expressa, presume-se onerosa e possui três tipos de contratos estabelecidos em lei, a cessão, a licença e a concessão. Portanto, apenas os direitos patrimoniais da obra podem ser transferidos a terceiros.

Modalidades de Transmissão

Passemos às modalidades de transmissão dos direitos autorais, isto é, vejamos as modalidades através das quais esta transferência da dimensão patrimonial se opera.

Do Contrato de Cessão de Direitos Autorais

A cessão tem eficácia translativa, porque retira aquela parcela do direito do domínio do autor e passa para o cessionário. Pode ser parcial, quando se negociam todos os direitos ou total. Isso significa que, em relação ao que foi cedido, o autor não poderá mais decidir como será a divulgação, publicação, exposição, venda ou comercialização.

O Contrato de Cessão de Direitos Autorais é o documento pelo qual uma parte (cedente) transfere para outra parte (cessionária) os direitos autorais referentes a uma obra ou conjunto de obras intelectuais, destacando que, a transmissão total e definitiva dos direitos do autor a um terceiro somente terá validade se houver um contrato escrito. Apenas a estipulação verbal e, portanto, informal não gera a transferência total dos direitos de autor.

Em geral, o cedente é o próprio autor original da obra (sendo chamado de titular originário), mas é possível que ele seja um terceiro que adquiriu os direitos autorais de tal obra ou por herança ou até mesmo por um contrato de cessão de direitos autorais anterior (sendo chamado de titular derivado).

O contrato poderá ser averbado a cessão de direitos à margem do registro da obra junto ao respectivo órgão ou mesmo no Cartório de Registro de Títulos e Documentos. Tal registro irá gerar a validade do contrato para pessoas alheias à relação contratual.

Assim, por exemplo, determinada obra musical, quando cedida a um terceiro (pessoa física ou jurídica) não mais retornará à titularidade do autor original. Passará a ser de titularidade; de “propriedade”; do terceiro que pela obra, em geral, pagou algum valor, alguma remuneração ou certa quantia em dinheiro.

Por fim, caso a obra seja produzida em co-autoria (por mais de uma pessoa), significa que mais de uma pessoa é titular dos direitos autorais, podendo cada uma delas transferir os seus direitos sobre a obra independente de autorização dos demais. No entanto, não haverá direito exclusivo de exploração das obras para o cessionário, além da impossibilidade de publicação da obra sem consentimento dos demais co-autores.

Do Contrato de Licença

Quanto a licença a lei só menciona, mas não estabelece regras. É simples e muito utilizado.

Podemos dizer que, dentre um dos exemplos clássicos de licença está contrato que indiretamente “assinamos” quando adquirimos um CD ou um livro. Adquirimos uma licença de uso privado da obra. Admite-se que seja não expresso (tácito). A sua eficácia é aquisitiva-constitutiva, porque quem adquire recebe do autor um direito específico de uso, mas não há transferência desse direito que pode ser licenciado para outras pessoas. A licença não tem, normalmente, caráter exclusivo.

Como já dito, a autorização de uso possui caráter limitado, sendo usualmente concedida por prazo determinado, para fim específico e para determinada forma de exploração. Neste caso, o autor permite que um terceiro se utilize de sua obra por determinado tempo. Findo este tempo, o terceiro não poderá mais utilizar a obra licenciada. Deverá, portanto, imediatamente cessar o seu uso, retornando-a ao seu autor original. O licenciamento pode ser remunerado, quando o autor recebe uma contraprestação pela utilização de sua obra por um terceiro dentro de certo período de tempo. De outro lado, o licenciamento pode ser gratuito, quando não há pagamento de remuneração pelo uso da obra.

Aliás, o conceito de licenciamento pode ser comparado a um “aluguel”, pois, no licenciamento, se paga, por determinado tempo, pela utilização de uma obra (ex. musical). E esta obra, depois deste período convencionado pelas partes, retornará ao seu titular, da mesma forma como ocorre com o aluguel de um imóvel, por exemplo, em que o locatário usa um imóvel por determinado tempo, por ele pagando aluguéis. Findo o prazo acordado entre as partes, o locatário devolve o imóvel ao seu proprietário.

Resumindo, e a título de exemplificação, a cessão do direito autoral se assemelha mais com a “venda de um imóvel”, enquanto, por sua vez, a licença do direito autoral se assemelha com o caso de “aluguel de um imóvel”. Com esta comparação, o conceito destas duas formas de transferência de direito autoral, por certo, ficará mais fácil de ser digerido.

Do Contrato de Concessão

A concessão, assim como a licença, só existe menção na lei. Não há regras estabelecidas. Queremos crer que seja uma espécie de cessão parcial. O autor transmite uma parte dos direitos patrimoniais, mas não todos. Transferência de uma ou de várias formas de gozo, mas não de todas.

Para entender melhor
Um exemplo talvez seja oportuno e esclarecedor.

Como todos sabemos, Paulo Coelho se celebrizou a partir de sua obra O Alquimista. Considerando-se a hipótese de o autor ser o único titular dos direitos patrimoniais sobre sua obra (ou seja, se não tiver transferido seus direitos a ninguém), ele pode autorizar o uso da obra O alquimista por terceiro ou ceder seus direitos. Vejamos na prática essas possibilidades:
1) Paulo Coelho é consultado por um diretor de teatro de Fortaleza interessado em transformar O alquimista em peça teatral. Paulo Coelho autoriza, por meio de licença, a adaptação da obra para o palco. Nesse caso, Paulo Coelho continua sendo o titular de todos os direitos. O diretor cearense não pode fazer nada com a obra a não ser realizar sua montagem. Trata-se, portanto, de uma licença parcial.

2) Paulo Coelho é procurado pelo mesmo diretor de teatro, que tem, porém, diversas ideias para uso do livro. O diretor pede que lhe seja concedido uma licença total, para que, no prazo de cinco anos, por exemplo, possa explorar a obra em toda a sua amplitude. Nesse caso, o licenciado (o diretor de teatro) teria poderes muito amplos. Se quisesse, poderia transformar o livro em filme, em peça de teatro, em espetáculo de circo, em musical, em novela, em história em quadrinhos etc. Ainda assim, por se tratar de licença (mesmo que total), Paulo Coelho continuaria titular dos direitos patrimoniais.

3) O diretor de Fortaleza também poderia querer transferir definitivamente para si o direito de transformar o livro em espetáculo teatral. Para isso, demandaria uma cessão parcial da obra. Ou seja, se Paulo Coelho fizesse uma cessão de seus direitos patrimoniais referentes à possibilidade de transformar o livro em peça, estaríamos diante de uma hipótese muito semelhante a uma compra e venda. Se assim fosse, o próprio Paulo Coelho ficaria desprovido desse direito no futuro, uma vez realizada a cessão.

4) Por fim, temos a possibilidade de uma cessão total. Nesse caso, todos os direitos patrimoniais pertenceriam ao diretor de teatro, se com ele o contrato fosse celebrado. Assim, se no futuro alguém desejasse transformar o livro O alquimista em filme, precisaria negociar com o diretor de teatro, e não com Paulo Coelho, que, embora autor, teria se desprovido dos direitos patrimoniais relacionados com a obra por ter realizado sua cessão total.

Observações Finais

Resumindo, os direitos morais não podem ser transmitidos nem podem ser objeto de renúncia.

Logo, no que tange à cessão ou transmissão total do direito de autor, ela somente se opera em relação aos direitos patrimoniais, não tem, pois, qualquer interferência sobre os direitos morais do autor. Em outras palavras, significa dizer que o autor pode transferir, ceder e até “vender” seus “direitos patrimoniais” de autor. Porém, não pode, sob qualquer aspecto (com remuneração ou sem remuneração) ceder, alienar, “vender”, transferir ou dispor de seus direitos morais. E, quando afirmamos que o autor não pode transmitir seus direitos morais, queremos dizer que o terceiro (pessoa física ou “empresa”) que adquirir a obra cedida (“vendida”) não poderá jamais deixar de mencionar quem é o autor originário da obra, jamais poderá alterar a obra, devendo conservá-la inédita; jamais poderá impedir que o autor originário se oponha a eventuais modificações que afetem a integridade da obra etc.

Não obstante, oportuno destacar que, as cláusulas contratuais, no que tange a cessão ou transmissão total do direito de autor, serão sempre interpretadas restritivamente e dentro da previsão legal, aquilo que não foi expressamente ou claramente previsto, não foi autorizado pelo autor. Logo, as formas de exploração da obra devem ser minuciosamente discriminadas no contrato.

Ainda, em caso de autor menor de idade, deverá obrigatoriamente ser representado por seu responsável legal.

Finalizando, temos que, em via de regra os herdeiros, durante 70 anos após a morte do autor, possuirão o direito de utilizar, fruir, dispor e autorizar o uso da obra de seu antecessor (direitos patrimoniais) caso não tenha ocorrido a cessão destas.

No entanto, não poderia deixar de citar, outro caminho que vem se mostrando ótimos resultados, bem melhores que a gestão familiar (geralmente amadora e sujeita a conflitos), é constituição de uma sociedade, onde pode-se proceder a cessão dos direitos em favor desta.

Por exemplo, os direitos sobre a obra de Vinícius de Moraes pertencem a VM Cultural – http://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/contato.

Cada dia aumentam as entidades criadas para administrar o patrimônio imaterial de artistas, o que facilita a consulta pelo público e empresas interessadas.

Junho/2020

João Valter Garcia, é advogado no escritório J. Garcia Advogados e Consultores, em Santo André – SP. Também é músico, compositor e atua na banda Lady Noia. É poeta de botequim nas horas vagas.

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