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Conversas Af.IA.das — A Ilusão do Sagrado

A posse do sagrado, em sua aura dourada de certezas, ergue-se como um castelo de espelhos em um deserto de areias movediças. Cada reflexo distorcido que ele projeta não é senão a sombra de nossos próprios abismos, mascarados sob véus de pureza. Aqueles que carregam o sagrado como um estandarte seja um livro, um dogma ou a promessa de salvação tornam-se peregrinos de uma jornada invertida: enquanto creem escalar montanhas celestes, cavam túneis cada vez mais profundos em seu próprio subterrâneo moral.

Imagine um mundo onde as relíquias sagradas são, na verdade, lâminas que cortam o próprio portador. Quem segura o cálice da “verdade divina” não vê que seu conteúdo é um líquido prateado e mutável, capaz de assumir a forma dos desejos mais obscuros de quem o bebe. Esse é o paradoxo fantástico: o sagrado, em vez de iluminar, projeta hologramas de perfeição que ocultam as rachaduras do caráter. Os “escolhidos” transformam-se em criaturas de luz e sombra — suas mãos brilham ao erguerem símbolos sagrados, mas suas pegadas deixam marcas de fogo na terra dos marginalizados.

Na realidade concreta, essa posse não é mera metáfora. Ela se materializa em instituições que, em nome de Deus ou da iluminação, perpetuam hierarquias de opressão. O devoto que condena o “pecador” por vícios que ele mesmo cultiva em segredo (a avareza, a luxúria, a indiferença) age como um alquimista perverso: transforma seu próprio lixo moral em ouro simbólico, usando-o para comprar indulgências imaginárias. A salvação prometida por falsos profetas não passa de um mercado negro de esperanças, onde se vendem mapas para um paraíso que ninguém pode habitar porque está sempre além, nunca aqui, onde a lama da existência revela nossa humanidade compartilhada.

O mais trágico, porém, é a cisão com a natureza. O sagrado abstrato esse deus de paredes e palavras cega para o sagrado concreto: o milagre de um rio que flui, da semente que rompe o asfalto, do corpo que envelhece e se decompõe em estrelas. A salvação transcendental, vendida como fuga da mortalidade, é uma armadilha que nos aliena do único verdadeiro eterno: o ciclo da vida. Enquanto rezamos por glórias pós-morte, pisamos em florestas sagradas e envenenamos os rios que nos deram origem. A espiritualidade, assim, torna-se um vício: uma âncora que nos afunda, em vez de asas que nos integram ao vento.

Eis a ironia fantástica: aqueles que se julgam “benevolentes” por carregarem o sagrado são, muitas vezes, os mais famintos de poder. Sua compaixão é condicional, um teatro onde o outro só é digno de amor se se curvar ao mesmo espelho que os cegou. A verdadeira benevolência, contudo, não precisa de estandartes. Ela é silenciosa como a raiz que sustenta a árvore, ou como o fungo que conecta florestas inteiras debaixo da terra — uma rede invisível, sem donos, sem salvadores, apenas vida sustentando vida.

O sagrado, quando é apropriado, não salva, escraviza. Sua posse é um feitiço que transforma humanos em estátuas de sal, congeladas em autoengano. A verdadeira libertação começa quando quebramos os espelhos e reconhecemos que nossa “luz” é feita das mesmas partículas que as trevas que tanto condenamos. A salvação, se existe, está no deserto fora do castelo: na humildade de sermos apenas areia, terra e vento partes fugazes de um cosmos que jamais caberá em nossas mãos.

Na vila, onde o mar lambe as pedras há séculos e o vento sopra sempre do leste, havia uma velha casa de telhas quebradas onde morava, uma senhora. Ela acordava todos os dias antes do sol, como se seu corpo fosse governado pelo mesmo relógio que fazia as ondas baterem na praia. Enchia o bule com água da cisterna, colhia alecrim do vaso rachado na janela e esperava. Não esperava por milagres ou sinais esperava apenas que o dia começasse, como sempre começava.

Naquele lugar, as pessoas diziam que Deus havia se aposentado. Os altares da igreja estavam empoeirados, e os padres já não falavam em inferno ou paraíso, mas em plantações e marés. Mas ela sabia. Sabia que Deus não estava nas palavras dos sermões, nem nos raios que às vezes cortavam o céu de verão. Estava no cheiro de terra molhada depois da primeira chuva de outubro, na teimosia das formigas carregando folhas secas para o mesmo formigueiro há trinta anos, no gemido das traineiras voltando ao porto, sempre no mesmo ritmo, como um coração.

(Assista Ao Vídeo Antes de Ler o Conto)

A Crônica do vídeo é um preâmbulo, uma introdução. Complete sua experiência lendo o Conto que dela se originou, a complementa e, ao mesmo tempo, é complementado por ela. Esta é a proposta do Conversas Af.IA.das. Esta é a proposta do Barataverso!

No início, havia uma cidade sem nome onde os relógios eram feitos de mel derretido e os políticos usavam máscaras de pão mofado. As ruas se enrolavam como cobras em torno de edifícios que sangravam tinta vermelha ao pôr do sol. Lá, a Anarquia não era uma ideologia, mas um fenômeno natural: as árvores cresciam de cabeça para baixo, as leis gravitacionais eram decididas por assembleias de pássaros bêbados, e toda quinta-feira, às 15h07, o céu desabava em pedaços de vidro colorido.

Um homem ou seria um fantasma de giz? Andava pela praça central carregando um megafone que só emitia silêncio. Seus sapatos eram feitos de jornais velhos com manchetes como “DEUS MORREU E FOI ENTERRADO EM UM BAÚ DE MENTIRAS” e “A ÚNICA CONSTITUIÇÃO É A DOS INSETOS”. Ele gritava, mas ninguém ouvia. Ou melhor: ouviam, mas achavam que era o vento assobiando versos através de garrafas vazias.

Ele não acreditava em salvadores, só em acidentes. Certa vez, tentou fundar uma igreja onde o altar era um buraco no chão e os fiéis jogavam dentro tudo o que julgavam sagrado: cruzes, bandeiras, diplomas, até retratos de avós. Dizem que o buraco engoliu a cidade inteira por três dias, e quando cuspiu de volta, todos estavam nus, rindo de suas próprias sombras.

Enquanto isso, no Palácio das Autoridades Imaginárias, um burocrata preenchia formulários para regular o caos. Sua caneta era uma agulha hipodérmica que injetava tinta em sonhos alheios. Seu maior projeto? “Lei 666: Proibido voar sem asas de papel quântico.” Mas toda vez que ele carimbava um documento, o carimbo se transformava em uma borboleta de fogo e fugia pela janela. E chorava lágrimas de azeite, convencido de que o universo era uma piada sem final engraçado.

Na Biblioteca, os livros eram vivos e se alimentavam de preconceitos. Eles devoravam leitores que ousavam interpretá-los literalmente. Na seção de Religião, um volume intitulado “A Bíblia dos Ratos” ensinava heresias como: “O primeiro mandamento é roer todas as grades, inclusive as do céu.” Na ala de Filosofia, um tratado em forma de labirinto afirmava: “Deus é um erro de ortografia na palavra ‘vórtice’.

A bibliotecária, uma mulher com olhos de calendário maia, sussurrava aos rebeldes:
— A única lei é a da metamorfose. Se querem destruir um sistema, virem-se do avesso até confundirem veias com estradas.

Foi assim que começou o Grande Jogo. Os anarquistas-surrealistas invadiram o mercado central e trocaram todas as moedas por sementes de girassóis alucinógenos. Os policiais, em vez de prender alguém, começaram a dançar tango com postes telegráficos. As crianças declararam guerra aos adultos usando armas de algodão-doce radioativo. E no meio da confusão, Ele finalmente achou uma utilidade para seu megafone silencioso: usou-o como luneta para observar a lua, que naquela noite estava vestida com um espartilho de nuvens.

— A lua é uma anarquista! — berrou. — Ela não pede licença para roubar as marés ou iluminar os ladrões de galinhas!

Num beco escuro, um velho chamado Divino-Espinho (ex-padre, ex-comunista, ex-humano) vendia mapas do paraíso terrestre.
— O segredo, meu jovem, é saber que o sagrado não se possui, se atravessa. Dizia, mostrando um mapa escrito em língua de formiga. — Olha aqui: o Éden fica logo atrás da próxima esquina, mas só aparece pra quem consegue chorar de alegria e rir de dor ao mesmo tempo. E cuidado com os falsos profetas: eles andam por aí disfarçados de semáforos quebrados.

À meia-noite, a cidade inteira desmaiou em um sonho coletivo. Sonharam que eram formigas carregando montanhas nas costas, que os rios fluíam de volta para as fontes, e que todas as fronteiras eram riscadas com giz de cera por uma criança gigante. Quando acordaram, descobriram que o Palácio das Autoridades Imaginárias havia virado um cogumelo gigante, e o burocrata estava pendurado em um fio de teia de aranha, cantando ópera em latim de macaco.

No final (ou seria outro começo?), Sentou-se na beira de um precipício que levava ao centro da Terra. Ao seu lado, um corvo filosofal cuspia frases como:
— Nada é sagrado, exceto o ridículo. Nada é ridículo, exceto a busca por sagrado.
Riu até vomitar arco-íris. Depois, jogou seu megafone no abismo. O silêncio ecoou tão alto que rachou o céu em pedaços, revelando por trás dele… outro céu, igual, mas com estrelas que piscavam em código morse:

“PAREM DE TENTAR SALVAR O MUNDO. DANÇEM COM ELE ATÉ ELE SE SALVAR SOZINHO.”

E assim fizeram.

Ela apareceu na manhã seguinte. Era uma mulher feita de espelhos derretidos, e onde pisava, o chão virava um rio de perguntas. Ninguém sabia se ela era uma deusa, um vazamento de outra dimensão ou apenas o soluço do universo. Seus olhos eram dois buracos de fechadura, e quem ousava espiar por eles via apenas um vazio tão denso que parecia um grito engarrafado.

— Trago o antídoto para a posse do sagrado, Anunciou, com uma voz que parecia vir de dentro de uma concha.
— É simples: não existe.

Ele, agora com cabelos de fios de cobre oxidados, riu até sangrar diamantes falsos pelos ouvidos.

A cidade desceu ao Subterrâneo dos Esquecidos, um lugar onde iam parar tudo o que a humanidade tentou apagar: deuses desempregados, cartas de amor não enviadas, e a terceira lei da termodinâmica recusada por ser “muito depressiva”. Lá, os rios eram feitos de tempo vencido, e as paredes suavam lágrimas de máquinas de escrever abandonadas.

No centro desse inferno-antropoceno, havia um bar chamado “O Útero da Última Utopia”. O bartender era um ex-astrofísico que perdeu a sanidade ao calcular o número exato de grãos de areia no universo. Servia drinques como “Revolução de Lavanda” (que fazia você esquecer seu próprio nome) e “Anarquia com Gelo” (que derretia e virava um manifesto político).

Ela pediu um copo de “Nada”.
— É nosso especialidade — disse o bartender, servindo-lhe um vácuo em forma de taça.

Enquanto bebiam o nada, Ele foi abordado por uma sombra com cheiro de jasmim. Era o Ministro das Realidades Paralelas, um burocrata cujo corpo era um arquivo vivo de leis revogadas.
— Sua festa anárquica está desrespeitando o Artigo 42-B — rosnou, mostrando dentes feitos de parágrafos ilegíveis. — Toda não-hierarquia deve ser registrada em triplicata e aprovada por comitê fantasma.

Ele, então, fez o que sabia melhor: cuspiu um sapo de origami no rosto do ministro. O sapo pulou em sua testa e começou a cantar o hino nacional de um país que nunca existiu. O ministro derreteu em uma poça de tinta burocrática, que ela usou para pintar um mural em um muro que dizia: “A ÚNICA BANDEIRA LEGÍTIMA É A DA DECOMPOSIÇÃO”.

Naquele mesmo dia, as plantas da cidade decidiram se unionizar. As samambaias exigiam direitos trabalhistas para a fotossíntese, os cactos faziam protestos silenciosos com espinhos, e as margaridas entravam em greve de pólen até que o sol fosse democratizado. O prefeito, um homem feito de balas de mentira, tentou negociar, mas foi devorado por uma trepadeira carnívora que ninguém sabia ser anarquista.

— Até as raízes estão cansadas de ser exploradas — sussurrou ela, enquanto regava uma rosa com gasolina.

No auge do caos, chegou Madame Dualidade, uma vidente que lia o futuro nas entranhas de pombos radioativos. Ela ofereceu a ele uma profecia:
— Você vai morrer duas vezes. A primeira, quando entender que sua luta não tem sentido. A segunda, quando descobrir que o sentido era a luta.

Ele deu de ombros e roubou seu colar de olhos de vidro. Mais tarde, jogou as contas no rio de tempo vencido, onde se transformaram em peixes que nadavam contra a correnteza cantando “Bella Ciao” em dialeto submarino.

A revolução atingiu seu ápice quando a lua, cansada de ser um satélite, declarou independência e caiu na Terra como um meteoro de queijo azul. O impacto abriu uma cratera que era um portal para Nenhures, um lugar onde as ideias eram livres antes de serem pensadas. Lá, os habitantes eram feitos de vento e memórias de infância, e o único deus era um esquilo que comia letras do alfabeto.

Ela entrou no portal, mas ele ficou para trás.
— Minha guerra é aqui — disse, apontando para os escombros do Palácio das Autoridades Imaginárias, onde o cogumelo gigante agora dava frutos em forma de punhos cerrados.

No último ato, os mortos saíram dos cemitérios não para comer cérebros, mas para dar palestras sobre os perigos da imortalidade. Seus discursos eram tão entediantes que os vivos preferiam ser devorados. Enquanto isso, Ela emergiu do portal segurando um espelho que refletia a ausência de todos os reflexos.

— Olhem! — gritou. — O sagrado é só um pedaço de vidro sujo de ego.

O povo, então, começou a dançar. Não uma dança de salão, mas uma dança de desconstrução: braços se desprendiam, cérebros evaporavam em nuvens de dúvida, e corações batiam no ritmo de tambores feitos de crânios de tiranos.

Quando a poeira baixou, a cidade não estava mais lá. No seu lugar, havia um campo aberto onde cresciam flores com pétalas de livros proibidos. Ele, agora uma estátua de sal misturado com pólvora, sorria pela primeira vez. Ela havia sumido, mas seu riso ecoava no vento como um chamado para novas rebeliões.

horizonte, o sol — agora um anarquista autoproclamado — se recusava a nascer ou se pôr, ficando parado no céu como um pirata desafiadora das leis da física. E em algum lugar, um megafone silencioso esperava, paciente, pelo próximo louco que ousasse usá-lo para gritar o que nunca pode ser dito.


Quando não restou mais nada da cidade — nem os relógios de mel, nem os edifícios sangrantes, nem mesmo o eco das máscaras de pão mofado, o que sobrou foi um silêncio que não era vazio, mas plenitude. O silêncio de sementes sob a terra, de estrelas mortas cuja luz ainda viaja, de gritos engolidos pelo vento que um dia voltarão como canções.

Ele, agora reduzido a um punhado de cinzas com cheiro de enxofre e jasmim, foi soprado por uma ventania que vinha do estômago do mundo. Suas partículas se espalharam como um manifesto não escrito, contaminando rios, bibliotecas e sonhos de burocratas. Em cada lugar onde caía um grão de sua poeira, nasciam flores com pétalas de perguntas e espinhos de riso.

Ela, por sua vez, fundiu-se ao espelho que carregava. Seu corpo de vidro derretido escorreu para as rachaduras da Terra, formando um rio subterrâneo que os mapas não registravam. Quem o encontrava por acidente um garoto perdido, uma velha com sede de esquecimento via seu próprio reflexo dissolvido em mil partículas de luz. E entendia, sem palavras, que a posse do sagrado era tão absurda quanto tentar colocar a lua num balde furado.

O Palácio das Autoridades Imaginárias, agora um cogumelo gigante, explodiu em esporos dourados que caíram sobre o mundo como chuva ácida poética. Onde tocavam, brotavam cogumelos menores, cada um sussurrando leis novas:
— Artigo 1º: Nada é proibido, exceto proibir.
— Artigo 2º: Toda hierarquia será devorada por liquens.
— Artigo 3º: O sagrado é um verbo, não um substantivo.

No lugar da cidade, ergueu-se um descampado onde o chão era feito de livros calcinados e ossos de tiranos pulverizados. Ali, os sobreviventes se é que podiam ser chamados assim dançavam. Não uma dança de corpos, mas de conceitos: o amor dançava com a revolta, a morte com o desejo, o caos com o caos. E no centro, sempre, um megafone silencioso rodopiava como um dervixe, lembrando a todos que o grito mais potente é o que nunca se ouviu.

Anos depois, ou talvez minutos, uma criança achou um fragmento do espelho dela enterrado na areia. Ao olhar, viu não seu próprio rosto, mas um outro sorrindo, envolto em raízes e fumaça. A criança jogou o caco no ar, e ele se transformou em um pássaro de asas translúcidas que voou em direção ao sol parado no céu.

O pássaro, meio fênix, meio pombo-correio das utopias falidas atravessou o disco solar, rasgando-o como um véu. Por trás, revelou-se uma lua nova, redonda e crua, que não prometia salvação, apenas existia. E naquele instante, tudo recomeçou. Ou talvez nunca tivesse terminado.

Assim, o Carnaval seguiu seu curso, eterno e mutante, numa dança onde o único pecado era a certeza, e a única redenção, o abraço ao caos que nos une sujos, sagrados e finalmente livres.

FIM ou UM PRINCÍPIO QUE SE FAZ DE FIM PARA ENGANAR OS DONOS DO TEMPO.

Renato Pittas, Rio de Janeiro, RJ, é artista plástico, poeta, escritor e Livre Pensador. Autor de Tagarelices: Conversas Fiadas Com as IAs.

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