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Conversas Af.IA.das — Deus Revela-se Pela Monotonia

Na vila, onde o mar lambe as pedras há séculos e o vento sopra sempre do leste, havia uma velha casa de telhas quebradas onde morava, uma senhora. Ela acordava todos os dias antes do sol, como se seu corpo fosse governado pelo mesmo relógio que fazia as ondas baterem na praia. Enchia o bule com água da cisterna, colhia alecrim do vaso rachado na janela e esperava. Não esperava por milagres ou sinais esperava apenas que o dia começasse, como sempre começava.

Naquele lugar, as pessoas diziam que Deus havia se aposentado. Os altares da igreja estavam empoeirados, e os padres já não falavam em inferno ou paraíso, mas em plantações e marés. Mas ela sabia. Sabia que Deus não estava nas palavras dos sermões, nem nos raios que às vezes cortavam o céu de verão. Estava no cheiro de terra molhada depois da primeira chuva de outubro, na teimosia das formigas carregando folhas secas para o mesmo formigueiro há trinta anos, no gemido das traineiras voltando ao porto, sempre no mesmo ritmo, como um coração.

(Assista Ao Vídeo Antes de Ler o Conto)

A Crônica do vídeo é um preâmbulo, uma introdução. Complete sua experiência lendo o Conto que dela se originou, a complementa e, ao mesmo tempo, é complementado por ela. Esta é a proposta do Conversas Af.IA.das. Esta é a proposta do Barataverso!

Uma vila onde o tempo respirava devagar. As casas de reboco descascado se agachavam diante do mar, e os pescadores ainda acreditavam que as redes tinham alma por isso as batizavam com nomes de santas esquecidas. Mas a verdadeira santa daquele lugar não estava nos altares; estava enterrada sob a amendoeira torta no quintal da última casa da rua da Praia.

A senhora, morreu em uma manhã de maio, enquanto colhia alecrim para o chá. Seu corpo caiu de leve, como uma folha seca, e quando a encontraram, seu rosto estava virado para a amendoeira que nunca dera frutos. Enterraram-na ali mesmo, como ela pedira em vida. “Quero ouvir o pulso da terra”, dizia, apontando para o chão rachado pelas raízes. Os homens riram, mas fizeram como ela queria. Na vila, até os ateus temiam desrespeitar as loucuras dos velhos.

Anos depois, sua neta, uma menina de doze anos com olhos de coruja, descobriu que a amendoeira cantava. Não era uma canção, mas um zumbido profundo, como o ronco de um animal adormecido sob o solo. Todas as tardes, depois da escola, ela se sentava com as costas coladas ao tronco e fingia ler livros. Na verdade, escutava.

— É a velha avó contando segredos — cochichavam os pescadores, jogando cartas no bar.
— Bobagem. É o vento nas raízes — retrucava o dono do bar, limpando um copo com a camisa.

A menina não se importava com as fofocas. Sabia que o som vinha de algum lugar entre a casca da árvore e o túmulo da avó. Uma tarde, enquanto desenhava borboletas no caderno, uma raiz fina emergiu do chão e tocou seu tornozelo. Não era assustador; parecia um dedo enrugado acariciando-a.

— Você quer algo? — perguntou, corajosa como só as crianças são.

A árvore não respondeu, mas naquela noite, sonhou com a avó. A velha estava sentada na praia, misturando sal e alecrim em uma tigela de madeira. Deus está com fome. Disse, sem virar o rosto. — Temos que alimentá-Lo com coisas que não mudam.

No dia seguinte, Levou para a escola um saquinho com coisas “imutáveis”: uma concha furada que achou na maré baixa, uma pedra lisa do rio e três grãos de arroz que sua avó guardava num pote desde 1964. Na hora do recreio, enterrou tudo sob a amendoeira.

Ninguém na vila notou quando as coisas começaram a mudar.

Primeiro, foi o mar. As redes que sempre voltavam cheias de tainhas e robalos começaram a trazer apenas algas e garrafas vazias. Depois, as plantações de mandioca murcharam sem explicação. Até o vento parou de soprar do leste, deixando o ar pesado como sopa fria. Os pescadores mais velhos cruzavam-se diante da igreja abandonada, mas as mulheres sussurravam outro nome:

— É a amendoeira. Está brava.

A menina ouviu os rumores e, naquela tarde, levou uma oferenda maior até a árvore: um vestido azul que pertencera à mãe, um novelo de linha vermelha e seu próprio diário, cheio de desenhos de ondas. Cavou um buraco raso e enterrou tudo com as mãos trêmulas.

— Toma — sussurrou. — É tudo que não muda.

Na manhã seguinte, o vento voltou a soprar. As redes trouxeram peixes tão grandes que quebraram os cestos, e a praia ficou coberta de conchas perfeitas, como se o mar as tivesse cuspido em agradecimento. Os homens se benzeram, as mulheres acenderam velas e o bar ficou lotado até de madrugada.

Apenas ela viu a amendoeira florescer.


Não eram flores comuns. Eram brancas, quase transparentes, e caíam no chão como lágrimas sólidas. Cada pétala tinha uma veia azul que pulsava ao ritmo das marés. Colheu uma e guardou-a no bolso, mas ao chegar em casa, a flor havia virado areia.

Naquela noite, um turista apareceu.

Ele chegou em um carro barulhento, com uma câmera pendurada no pescoço e um chapéu de palha ridículo.

— Ouvi dizer que há uma árvore milagrosa aqui. disse ao dono do bar, pedindo uma cerveja gelada. — Quero fotos para meu blog.

Ninguém respondeu. Os pescadores olharam para ela, que estava encostada na porta, mordiscando um pedaço de rapadura.

— Fica atrás da igreja — mentiu ela, apontando para as falésias.

Enquanto o homem seguia rumo ao penhasco, Ela correu até a amendoeira. As flores já estavam murchando, suas pétalas azuis agora marrons e quebradiças.

— Ele vai estragar tudo — disse, encostando a testa no tronco. — Você não pode mostrar isso pra ele.

A árvore emitiu um rangido longo, como um suspiro. Então, algo escuro começou a escorrer de sua casca rachada. Não era seiva, mas uma substância grossa e salgada que reconheceu pelo cheiro: lágrimas de mar.

Quando o turista voltou, frustrado por não encontrar nada “instagramável”, viu a menina sentada na sombra da amendoeira.

— Essa árvore velha é a tal maravilha? — zombou, levantando a câmera.

Ela não se moveu. — Tire a foto — disse.

O clique do obturador ecoou como um trovão. No mesmo instante, uma raiz surgiu do chão e envolveu o pé do homem. Ele gritou, tentando se libertar, mas a árvore o puxou para baixo com força suave e implacável. Em segundos, ele desapareceu, engolido pela terra sem deixar rastro — exceto pela câmera, que jazia no chão com a lente quebrada.

Na tela, a última foto mostrava apenas a menina sorrindo, com a amendoeira atrás dela… e centenas de mãos fantasmais saindo do tronco, como raízes de um deus adormecido.

Naquela noite, as ondas trouxeram à praia um chapéu de palha encharcado. Ela o enterrou sob a amendoeira, junto com um punhado de sal.

— Deus está satisfeito — sussurrou uma voz antiga em seu ouvido. Era a avó, ou o vento, ou ambas.

Assim a vila aprendeu: o divino não pede orações. Pede constância. Ofereça-Lhe o que nunca muda — uma pedra, um hábito, um segredo enterrado — e Ele devolverá a paz em troca.

A amendoeira nunca mais floresceu. Mas nas noites de lua cheia, suas raízes ainda emitem um zumbido baixo, igual ao ronco do mar. E se você encostar o ouvido, jurará que ouve duas velhas rindo, enquanto o vento leste sopra, sempre igual, sempre novo, trazendo o cheiro de alecrim e eternidade.

Os dias seguiram seu curso, como sempre. O turista desaparecido virou lenda, alguns diziam que ele fugira com uma sereia; outros, que enlouquecera e mergulhara no mar. A polícia da cidade chegou, revirou a areia com máquinas barulhentas, mas não encontrou nada além de conchas e restos de redes. Quando partiram, um dos agentes deixou cair um cigarro aceso na base da amendoeira. Clara apagou-o com o pé, murmurando um pedido de desculpas à terra.

A amendoeira, porém, começou a mudar.

Suas folhas, antes verde-escuras, ganharam bordas amareladas, como se o outono as tocasse antes da hora. As raízes expostas ressecaram, rachando a superfície como veias sem sangue. Até o zumbido noturno enfraqueceu, reduzindo-se a um sussurro rouco. Agora com dezesseis anos, sentia a mudança na pele. As noites estavam mais silenciosas, o mar mais ácido, e os pescadores reclamavam que as redes cheiravam a ferrugem.

— Ela está morrendo — disse o dono do bar, observando a menina encostar a mão no tronco rachado. — Até as árvores sagradas têm fim.

— Sagradas não morrem. Respondeu a menina, mas sua voz tremeu.

Naquela noite, sonhou com a avó pela primeira vez em anos. A velha estava de pé no meio do mar, vestida com um traje de renda desbotada, segurando uma cesta cheia de horas. Não horas de relógio, mas horas reais: gotas douradas que escorriam entre seus dedos e se dissolviam na água.

— Ele está esquecendo — disse a avó, sem olhar para a neta. As oferendas viraram ritual, não entendimento.

— Como salvá-La? — gritou, mas uma onda engoliu a velha antes que respondesse.

Na manhã seguinte, subiu até o penhasco onde o turista desaparecido tentara fotografar o “ponto místico”. Sentou-se na beirada, os pés balançando sobre o abismo, e observou a vila lá embaixo. As casas pareciam miniaturas, as traineiras formigas no oceano. Então, viu algo que a fez congelar: uma mancha escura se espalhando pelo mar, como óleo derramado. Não era poluição — era algo mais denso, quase vivo, engolindo as ondas em silêncio.

Quando desceu correndo para alertar os pescadores, todos riram.

— É só sombra das nuvens, menina — disse um deles, consertando uma rede.

Mas ela sabia. Era a mesma escuridão que vira escorrer da amendoeira anos atrás. A fome de Deus.

Decidiu fazer uma oferenda maior. Não objetos, mas algo que nunca muda: o medo.

Naquela tarde, invadiu a igreja abandonada. Arrancou uma telha solta do telhado e colocou-a em uma sacola, junto com o sino de bronze que jazia coberto de teias de aranha. Enterrou tudo sob a amendoeira, mas nada aconteceu. As folhas continuaram a cair.

Foi então que lembrou-se das palavras da avó, no sonho: “As oferendas viraram ritual, não entendimento.”

Sentou-se no chão, encarando a árvore agonizante.

— O que Você quer? — perguntou, desafiadora. — Já demos tudo! Pedras, memórias, até um homem inteiro!

Uma folha seca caiu em seu colo. Virou-a entre os dedos e viu que estava coberta de números — pequenos algarismos riscados a caneta, como os de um calendário. Não eram datas aleatórias. Eram aniversários, marés altas, dias de plantio. A monotonia escrita.

Correu para casa e voltou com o diário de sua avó, um caderno encardido onde ela anotara, por quarenta anos, a mesma coisa: “Sol, vento leste, peixes no porto.” Enterrou o diário ao lado das raízes.

Na manhã seguinte, a amendoeira tinha uma única flor branca brotando no galho mais alto. Ela sorriu, mas o alívio durou pouco.

O estrangeiro chegou três dias depois.

Não era turista. Vestia terno cinza e carregava uma pasta cheia de papéis.

— Sou da empresa Maralto — anunciou na praça. — Queremos construir um resort aqui. Haverá empregos, progresso.

Os pescadores trocaram olhos hesitantes. Ela, encostada na amendoeira, sentiu o tronco estremecer.

Naquela noite, a mancha no mar dobrou de tamanho.

Ela sabia o que fazer.

Invadiu o barracão onde o homem de terno guardava os projetos. Roubou plantas arquitetônicas, contratos, até um pen drive com o logo da empresa. Enterrou tudo sob a árvore, junto com um copo de cachaça e um pedaço de seu próprio cabelo.

— Toma — sussurrou. — É o que não muda: ganância.

Na manhã seguinte, o projeto do resort foi cancelado. Diziam que o executivo enlouquecera, gritando sobre “mãos saindo das paredes” antes de fugir para a cidade. A mancha no mar recuou, mas não desapareceu.

A amendoeira floresceu mais duas vezes.

Até que um dia, Ela encontrou uma criança de cinco anos sentada sob sua sombra. Era a, filha de uma pescadora, que balbuciava uma canção antiga enquanto brincava com areia.

— Ela fala com a árvore — disse a mãe, encolhendo os ombros. — Diz que ouve uma velha cantando.

Ela observou a pequena colocar uma concha furada em uma raiz. A amendoeira emitiu um rangido suave, quase um agradecimento.

Foi então que entendeu.

Deus não precisava de oferendas. Precisava de lembrança. Alguém que visse o sagrado na repetição, geração após geração.

Naquela noite, pegou o diário que começara aos doze anos — cheio de desenhos de ondas, ventos e raízes — e o amarrou ao galho mais baixo da amendoeira.

— É sua vez — disse, não à árvore, mas à menininha que brincava ao longe.

Quando a última folha caiu, a amendoeira secou por completo. Mas em seu lugar, uma muda brotou, reta e verde, alimentada pelo diário que apodrecia em suas raízes.

E assim, enquanto o vento leste soprava e as ondas insistiam em nascer e morrer, o divino seguiu seu ciclo.

Monótono.

Infinito.

Esquecido e lembrado, sempre igual, sempre novo.

A amendoeira morreu em um outono sem vento. Seus galhos secos quebraram-se um a um, e as raízes que outrora cantavam viraram pó sob o sol inclemente. Ela, agora com cabelos grisalhos e mãos marcadas pelo sal, assistiu ao último pedaço do tronco ser levado pela maré alta. Ninguém na vila chorou — afinal, árvores morrem, resorts surgem, crianças crescem.

Mas, a menina que brincava com conchas furadas, agora uma jovem de dezenove anos, encontrou o diário pendurado nos galhos de uma nova árvore. Não era uma amendoeira, mas um pequeno pé de ipê roxo que brotara no mesmo lugar, alimentado pelas páginas apodrecidas do caderno. Suas raízes eram finas, quase tímidas, mas quando encostou a orelha no tronco, ouviu o mesmo zumbido antigo.

Naquela noite, enquanto os turistas do novo resort bebiam caipirinhas e postavam fotos do “pôr do sol místico de Salgada”, Enterrou sob o ipê um relógio de corda quebrado, encontrado nos escombros da casa da senhora ancestral. Não por ritual, mas por instinto.

Na manhã seguinte, o mar trouxe à praia uma única flor de amendoeira, branca e translúcida, que derreteu em areia ao ser tocada. Ninguém viu, exceto a neta, que sorriu da janela de seu quarto, onde o vento leste entrava sempre pela mesma fresta.

E assim, enquanto os hotéis cresciam e os barcos a motor rugiam, o ipê seguiu florescendo no ritmo das marés. Jovem, como ela um dia fizera, aprendera a escutar o silêncio entre as ondas.

Deus nunca mudou.

Revelou-se no balanço das redes sendo reparadas dia após dia, no cheiro de alecrim que ainda subia das xícaras trincadas, no vai e vem das crianças que, geração após geração, sentavam-se sob a árvore nova para contar segredos que já eram velhos quando o mundo começou.

“Deus revela-se pela monotonia”, sussurrou o vento, enquanto a última página do diário, agora comida pelas raízes do ipê, dissolvia-se em letras que o mar jamais saberia ler.

E as ondas, indiferentes, continuaram a chegar.

Renato Pittas, Rio de Janeiro, RJ, é artista plástico, poeta, escritor e Livre Pensador. Autor de Tagarelices: Conversas Fiadas Com as IAs.

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