Prólogo:
Acordo com o sol ainda tímido, a atmosfera parece mais leve, limpa. Não há sinais das mazelas metabólicas que normalmente carrego comigo. Olho para minhas mãos e, curiosamente, minhas unhas estão impecáveis, sem a usual fragilidade. Há uma calma estranha no ar, quase como se o mundo tivesse se ajustado em uma frequência mais harmoniosa, uma trégua silenciosa, mas provisória.
(Continua…)
(Assista Ao Vídeo Antes de Ler o Conto)
A Crônica do vídeo é um preâmbulo, uma introdução. Complete sua experiência lendo o Conto que dela se originou, a complementa e, ao mesmo tempo, é complementado por ela. Esta é a proposta do Conversas Af.IA.das. Esta é a proposta do Barataverso!
O ar parecia mais denso agora, como se o próprio ambiente estivesse se reconfigurando ao meu redor. A fusão entre plástico e carne, antes uma metáfora silenciosa, agora pulsava como algo vivo. O horizonte, já distorcido pelas sombras da era consumista, vibrava em tons ácidos e estranhos, como se o mundo estivesse derretendo sob um filtro de caleidoscópio.
Caminhava, ou pelo menos achava que caminhava, por ruas que não pareciam mais familiares. O plástico, que antes se agarrava a mim como uma segunda pele, agora era parte de mim, fundido ao meu ser, sem distinção entre o orgânico e o sintético. Ao meu redor, outras figuras andavam como eu, indiferentes às suas novas formas. Nossas sombras, um reflexo da transformação, dançavam como espectros em um balé bizarro de luzes e fumaça.
A música da velha jukebox ainda ecoava em algum lugar distante, uma melodia que parecia impossível de desligar, sempre tocando, sempre presente. As criaturas plásticas, agora mais humanóides, continuavam seu avanço silencioso. Eles nos olhavam com um misto de reconhecimento e apatia. Talvez, afinal, eles fossem o reflexo do que nos tornamos — nós, seres de consumo e descarte.
De repente, o homem de terno desajustado reapareceu à distância, como uma sombra esquecida. Seus óculos escuros ainda brilhavam sob a luz artificial, mas havia algo diferente nele. Sua risada não ecoava mais pelo ar como antes; agora era apenas um sussurro, quase inaudível. Ele se aproximou lentamente, tragando um cigarro invisível desta vez, e parou à minha frente, sem dizer nada.
— Sabia que você voltaria, disse, quebrando o silêncio, mas com uma voz suave, como quem compartilha um segredo. A revolução nunca termina, só se transforma. E olha só o que construímos.
Abriu os braços, como se abraçasse aquele cenário distorcido. O céu, antes tingido de cores, agora estava obscurecido por nuvens de plástico flutuante, e as cidades não eram mais feitas de concreto, mas de material reciclável, brilhando em suas imperfeições.
Isso aqui… continuou …é a obra final. O que antes era consumido agora consome. E nós? Bem, agora somos apenas peças nesse tabuleiro.
A percepção de suas palavras começou a pesar sobre mim. Havia algo inevitavelmente verdadeiro naquela afirmação. Estávamos todos presos naquele ciclo, na fusão grotesca entre nós e aquilo que criamos. O consumo havia nos engolido.
Mas então, uma ideia atravessou minha mente. E se… e se houvesse uma saída? Talvez aquela música incessante, aquela melodia hipnótica da jukebox, fosse a chave. Um eco de algo que existia antes de toda essa transformação.
Olhei para ele e, por um instante, ele pareceu entender o que eu estava pensando.
A música? Perguntou, lendo meus pensamentos. Ah, a música… sim, ela sempre esteve lá. Desde o início. Mas você realmente acha que pode mudá-la? Que pode mudar… tudo isso?
O mundo ao nosso redor começou a girar, lentamente no início, depois mais rápido, como se estivéssemos sendo sugados para dentro de um redemoinho. As cores, as formas, as figuras, tudo se desmanchava em um fluxo contínuo, como tinta escorrendo em uma tela. O céu se despedaçou em mil fragmentos de plástico que flutuavam suavemente em direção ao chão.
No meio de tudo isso, o som da jukebox aumentava. A música, que antes era apenas um fundo distante, agora era uma presença dominante, reverberando dentro de nós, preenchendo todos os espaços vazios. Senti como se minha própria forma estivesse se dissolvendo, tornando-se uma nota naquela melodia infinita.
Talvez… sussurrei, sem saber se falava para ele ou para mim mesmo. Talvez a música seja o único caminho para fora.
Ele sorriu pela última vez, uma expressão enigmática, e lentamente se desvaneceu, tornando-se parte do caos que nos cercava. O plástico que antes cobria o chão agora flutuava como poeira, e as criaturas começaram a se desintegrar, uma por uma, enquanto a melodia final da jukebox se elevava, alcançando um clímax que eu jamais poderia ter imaginado.
E então, tudo ficou em silêncio. Não havia mais plástico, nem sombras, nem cidades feitas de material reciclável. Eu estava flutuando em um espaço vazio, entre o som e o silêncio, entre o que éramos e o que poderíamos ser.
A jukebox parou. E com ela, o mundo se apagou, deixando apenas um vazio imenso, aguardando a próxima nota.
A jukebox parou. E com ela, o mundo se apagou. deixando apenas um vazio imenso, aguardando a próxima nota. Porém, em outra feita, a atmosfera era limpinha, sem mazelas metabólicas, e as unhas não padeciam de bactérias. Bancos financiavam as falcatruas capitais, como sempre, mas a névoa do caos era distante, quase invisível.
Assim, o ciclo continuava, entre o plástico, as notas suspensas e os delírios de um sonho que nunca se sabe ao certo se acabou.
Outro dia ainda lembro, andava sonhando!
Renato Pittas, Rio de Janeiro, RJ, é artista plástico, poeta, escritor e Livre Pensador. Autor de Tagarelices: Conversas Fiadas Com as IAs.