Atualizado em: 14/11/2024, as 10:11
Prólogo:
O cheiro enjoativo de eletricidade azul me invade ao entrar na zona de entretenimento do Centro Hiper. Eles a chamam assim agora – “zona de entretenimento” – mas, no fundo, todo mundo sabe o que é: uma prisão de luxo. As paredes espelhadas reluzem em tons metálicos, refletindo rostos vazios e sorrisos que parecem tão reais quanto os produtos reluzentes nas prateleiras. As sombras dançam, fragmentadas e distorcidas, enquanto os anúncios piscam incessantemente, prometendo prazeres instantâneos que nunca satisfazem.
(Continua…)
(Assista Ao Vídeo Antes de Ler o Conto)
A Crônica do vídeo é um preâmbulo, uma introdução. Complete sua experiência lendo o Conto que dela se originou, a complementa e, ao mesmo tempo, é complementado por ela. Esta é a proposta do Conversas Af.IA.das. Esta é a proposta do Barataverso!
A fila diante do terminal se movia lentamente, cada pessoa se aproximando da tela holográfica para receber as instruções do dia. O fluxo era constante, como uma coreografia cuidadosamente planejada. Na Cidade Vertical, ninguém se movia fora do ritmo. Tudo tinha uma ordem, uma lógica, uma finalidade.
Ela estava ali, esperando seu turno, quando percebeu um detalhe fora do lugar. À sua frente, um homem vestia uma jaqueta velha, desgastada, diferente das roupas sintetizadas e perfeitamente ajustadas que todos usavam. A etiqueta dele ainda era visível no canto da jaqueta, algo completamente obsoleto e desnecessário naquela sociedade onde roupas eram encomendadas e descartadas quase no mesmo dia. Ele tinha um olhar perdido, como se procurasse algo.
Quando a voz do sistema o chamou para a tela, ele hesitou. Rla se inclinou um pouco, curiosa. A mensagem era clara e seca como sempre: “Cidadão 5921, proceder para o setor C.” Mas o homem parecia não entender. Ele olhou em volta, como se procurasse por alguém, e, então, murmurou para si mesmo, quase inaudível: “Eu só queria… ver a cidade.”
Prendeu a respiração. A cidade? Todos a viam – das janelas, das telas, dos anúncios. A Cidade Vertical era mais do que uma estrutura; era uma entidade onipresente, uma muralha de concreto e luzes artificiais. Mas ver a cidade de verdade? Essa era uma ideia esquisita. Ninguém mais questionava a visão virtual que lhes era fornecida, projetada para preencher qualquer lacuna de curiosidade. E o homem parecia estar falando de algo diferente, algo genuíno e inesperado.
Ele deu um passo atrás, desviando do terminal. As pessoas ao redor nem piscaram – continuaram sua marcha, automatizadas. Mas estranhamente impulsionada, seguiu-o com o olhar, depois com passos cautelosos, até se afastar da fila, sentindo uma mistura de curiosidade e temor. Algo em suas palavras ressoava, um eco de lembranças vagas que nunca teve.
O homem desviou para uma porta de serviço, uma entrada obscura e quase invisível entre painéis de metal. Quando entrou, Se viu seguindo-o. A porta se fechou atrás deles, abafando o zumbido das máquinas e o murmúrio do terminal.
Lá dentro, o espaço era escuro, frio, com o odor pungente de ferro velho e umidade. A Cidade Vertical não era bonita vista de dentro. Eram fios expostos, canos enferrujados, tubulações de gás – nada a ver com os corredores impecáveis que todos percorriam. O homem continuou a caminhar, com uma familiaridade desconcertante.
“Você conhece esse lugar?”, arriscou, incapaz de conter a pergunta.
Ele sorriu, um sorriso breve e triste. “Trabalhei na construção, há muitos anos. Antes de ser o que é hoje.” Seus olhos estavam distantes, como se visse através das paredes. “Naquela época, ainda podíamos sair. Ver o céu sem uma tela. Sentir o vento de verdade.”
O seguiu em silêncio, sentindo o peso das palavras. Estava começando a entender o que ele queria dizer. A ideia de ver o mundo sem filtros, sem as barreiras de dados e interfaces que envolviam todos, era tão estranha quanto uma memória perdida. Eles chegaram a um vão onde as luzes piscavam fracamente, e uma janela estreita, alta demais para alcançar, deixava um feixe de luz natural se infiltrar.
O homem parou ali, olhando para o facho de luz como se fosse um tesouro. Depois de um instante, ele tirou a jaqueta e a estendeu para ela, dizendo: “Suba aqui. Dê uma olhada.”
Ela hesitou, mas o desejo de ver era mais forte que qualquer medo. Subiu na jaqueta dobrada e apoiou-se na borda da janela, erguendo-se com esforço até que seus olhos cruzaram com o exterior.
O que viu era uma extensão infinita de estruturas, de prédios colossais que se erguiam em camadas, um sobre o outro, envoltos em uma neblina de poluição e poeira. Não era bonito – era assustador, era denso, era real. O céu, por um momento, se abriu em uma fresta cinzenta entre as torres. Não havia azul, mas ali estava o verdadeiro céu, sem projeções nem retoques.
Ela desceu devagar, o coração acelerado. O homem a olhava com compreensão. “É a última visita que faço aqui”, disse ele, com uma serenidade inesperada. “Eles estão desmontando esses vãos. Em breve, até essa janela estará selada.”
Queria dizer algo, mas as palavras sumiram. Eles se entreolharam, cúmplices por um instante. Depois, ele apenas acenou e começou a se afastar, de volta ao corredor onde a luz artificial brilhava. Ela o seguiu até que ambos estavam novamente entre as multidões de rostos sem expressão, onde ele desapareceu como mais uma sombra entre as massas.
Quando a voz do terminal chamou seu nome, ela deu um último olhar à porta de serviço, uma lembrança já esmaecida daquilo que talvez tivesse sido o mundo.
Retomou sua posição na fila, mas algo havia mudado. O brilho das luzes, os reflexos nos espelhos, o ritmo exato da multidão ao redor – tudo parecia diferente agora, como se uma fissura invisível tivesse se aberto na realidade. Sentia a frieza da Cidade Vertical com uma nitidez que nunca antes percebera, um contraste gritante com a crueza daquela janela alta demais para se alcançar. Era como se, de repente, todo o artifício tivesse se tornado claro, quase palpável.
O terminal piscou, e sua tarefa do dia surgiu no visor: catalogar os sonhos dos habitantes do Setor 18, uma rotina diária onde recolhia as imagens dos sonhos controlados e programados para análise de padrões. Era um trabalho mecânico, desprovido de qualquer liberdade ou novidade. Cada sonho era uma sequência repetida, pré-fabricada, entregue como alimento emocional, cada um mais conformista que o outro. Os via passar, um a um, preenchendo a tela em linhas de dados – prados, céus azuis, praias vazias. Tudo meticulosamente calculado para suprir qualquer desejo autêntico, para evitar a inquietação.
Mas agora algo lhe incomodava, uma urgência em desobedecer, em ir além das instruções. Desviou os olhos da tela por um instante e observou os rostos ao redor: as expressões impassíveis, as mãos que seguravam os tablets transparentes, o brilho prateado dos cabos conectados aos pulsos. Aquilo tudo parecia uma coreografia sem vida, e se deu conta, como se despertasse de um sono profundo, de que a sensação de vazio que tanto evitava estava escancarada diante dela.
Com um movimento impulsivo, desviou os olhos da tela e começou a buscar nos dados algo que fugisse ao padrão, um fragmento de sonho que pudesse dizer algo genuíno sobre a mente das pessoas ao seu redor. Encontrou o sonho de um jovem – ele estava sozinho em um campo coberto de neve, o frio cortante ao redor, o vento soprando alto. Nada mais, só uma extensão branca e silenciosa. Era um sonho breve e completamente fora da curva, sem o alívio ensolarado ou as paisagens confortáveis que o sistema tentava impor.
Ela se concentrou naquele sonho, e algo dentro dela se conectou com aquela solidão fria, com a estranheza do lugar desolado que não trazia conforto, mas algo genuíno e assustador. De repente, uma linha de código vermelha piscou na tela, um alerta. Percebeu que seu acesso estava sendo monitorado e que estava há tempo demais no mesmo arquivo. Mas, naquele instante, um pensamento irrompeu em sua mente, um impulso que não podia conter: enviar uma mensagem ao dono daquele sonho. Uma frase simples que brotou em sua mente e que ela sabia ser perigosa, mas necessária.
“Você não está sozinho.”
Pressionou enviar antes que sua consciência racional a impedisse. Era uma violação direta das diretrizes, um contato pessoal que desafiava as barreiras frias e calculadas do sistema. Sua pulsação acelerou; esperava que em segundos um alerta maior disparasse, revelando sua ousadia. Mas, surpreendentemente, nada aconteceu. A tela voltou à normalidade, as linhas de dados continuaram a fluir, e seguiu com sua tarefa, como se aquele momento de insubordinação tivesse sido apenas mais um pensamento solto.
Mas ela sabia que não era. Algo estava se movendo, uma corrente subterrânea que ela ainda não entendia, mas que fazia parte dela agora. Com o fim do expediente, foi liberada de volta aos corredores, os passos ecoando ao seu redor. Aquela noite, ao deitar-se na cabine apertada de seu quarto, fechou os olhos, sabendo que, ao menos uma vez, um fio invisível a ligava a outro ser humano naquela imensidão programada e fria.
No dia seguinte, encontrou um bilhete em seu console. Um pedaço de papel, algo impensável ali dentro. Em letras minúsculas, estava escrito:
“Estamos aqui. Existem outros.”
Seu coração disparou, e, naquele momento, soube que o vazio que a cidade tentava aplacar era também o espaço para a semente de algo novo.
Leu o bilhete uma, duas, três vezes, como se as palavras pudessem mudar a cada olhar. A presença de algo tão rudimentar como papel – um bilhete físico – era algo impensável dentro da Cidade Vertical, um risco absoluto, um ato de insubordinação palpável. Naquele instante, algo dentro dela rompeu as barreiras do medo e da dúvida. Ela não estava mais sozinha, e isso a consumia com uma euforia desconhecida.
Ao longo dos dias seguintes, pequenas pistas começaram a surgir em seu caminho. Um reflexo no espelho que parecia sorrir de volta para ela. Um odor de café fresco que flutuava inesperadamente no corredor, trazendo lembranças de tempos que ela nunca viveu. Mensagens sutis como “resistência” ou “verdade” apareceram projetadas em sombras, refletidas nos espelhos das lojas, em lugares onde só ela parecia notar.
Certa noite, ao retornar ao terminal de sonhos, uma nova mensagem aguardava por ela na tela. Não era um sonho como os outros; era uma visão, algo impossível. Ela viu uma imagem dela mesma, parada naquela janela secreta de dias atrás, observando a cidade cinzenta, mas com um detalhe desconcertante: seu reflexo na tela não estava sozinho. Ao lado dela, ombro a ombro, o homem da jaqueta velha observava a cidade, os dois compartilhando o olhar. Era uma visão impossível, surreal.
E então, com um leve tremor na mão, olhou mais de perto a projeção. No canto da imagem, uma coordenada estava marcada: Setor K – 81.
Deslizou o dedo na tela, hesitando, sentindo o peso do que poderia significar. Mas a curiosidade que ela antes abafava agora rugia dentro dela como uma chama incontrolável. Sabia que, se seguisse aquela pista, não haveria volta.
Na manhã seguinte, durante o horário de trabalho, desviou seu trajeto até o Setor K. Era uma área praticamente abandonada, onde o concreto das paredes parecia mais velho, coberto de ferrugem e sombras. Poucos sabiam que aquele lugar existia, e ela estava começando a entender por quê. Encontrou uma porta marcada com o número 81 e, com a mesma sensação de estar tocando um segredo proibido, empurrou-a.
O espaço era pequeno e escuro, iluminado apenas por uma luz azul fraca, mas o que viu ali fez seu coração parar. Uma pequena multidão, pessoas de rostos diferentes, roupas de outras eras, olhares que compartilhavam o mesmo brilho de determinação. Todos voltaram-se para ela quando entrou, mas entre eles estava o homem da jaqueta velha, o mesmo que lhe mostrara a janela da cidade.
Ele sorriu para ela, e, como se pudesse ler a pergunta em seu olhar, disse:
“Bem-vinda ao verdadeiro mundo.”
Ela queria perguntar como, por quê, se aquilo era real, mas antes que pudesse pronunciar qualquer palavra, uma projeção tomou as paredes do espaço. Imagens da cidade do lado de fora, em tempo real, mas como ela nunca a tinha visto. As torres sem fim, a poluição, as pessoas presas nos circuitos – tudo estava ali, sem filtros ou manipulações, despojado do verniz controlado do sistema.
“Estamos prontos para começar”, disse o homem. E, naquele instante, sentiu como se todas as peças de si mesma finalmente se encaixassem. Eles planejavam uma revolução silenciosa, uma série de ações para quebrar as paredes invisíveis, os controles que mantinham todos na cidade aprisionados a um ciclo sem sentido. Eles não estavam sozinhos – havia pequenos grupos como o deles espalhados pela cidade, infiltrando-se no sistema, lutando para trazer a verdade à tona.
E naquele espaço escuro e cheio de sombras, enquanto os outros murmuravam planos e esperanças, teve uma última visão: ela viu, finalmente, o céu real.
Renato Pittas, Rio de Janeiro, RJ, é artista plástico, poeta, escritor e Livre Pensador. Autor de Tagarelices: Conversas Fiadas Com as IAs.