Há dias em que a cidade amanhece como um espelho embaçado. Você sai de casa procurando respostas no brilho das vitrines, nas nuvens que se arrastam devagar, nas conversas alheias que captura como migalhas no ar. Mas o que busca, mesmo, é um jeito de caminhar sem pisar nas próprias sombras.
Na esquina, o barista serve café com um sorriso que não alcança os olhos. Você nota a tatuagem que ele esconde sob a manga — um nome apagado, uma data que ninguém pergunta. Pergunta-se quantas histórias carrega nas costas, quantas gavetas trancadas existem em um só gesto de servir café. Todos temos um museu particular do que não mostramos, mas insistem em chamar isso de “vida normal”.
Você segue pela calçada, desvia de um homem que corre como se fugisse de um incêndio invisível. Ele leva tênis novos, roupas de marca, o olhar fixo em algo que só ele vê. Talvez o que ele tente alcançar não esteja à frente, mas sim enterrado no caminho. Corremos para não sermos alcançados pelo que deixamos para trás, mas as pegadas são teimosas: elas nos seguem, mordem os calcanhares, sussurram “você é isso também”.
Às vezes, você para diante de uma loja de antiguidades. Um espelho rachado, empoeirado, reflete seu rosto entre lascas. A imagem está fragmentada: um pedaço é a criança que jurou não se tornar amarga, outro é o adulto que aprendeu a mentir dizendo “estou bem”. Você compraria o espelho, mas teme o que mais poderia encontrar nas rachaduras.
No parque, um casal discute em voz baixa. As palavras são facas embainhadas — eles cortam, mas não sangram em público. Você pensa em quantas guerras travamos nos porões da alma, quantos tratados de paz assinamos com nós mesmos antes do café da manhã. Queremos amor, mas tememos a entrega; almejamos liberdade, mas carregamos algemas de hábitos. O que escondemos não é vergonha, é medo de enfrentar que somos feitos de contradições.
Ao anoitecer, você volta para casa. As luzes da cidade acendem-se uma a uma, como pequenas confissões no escuro. Sabe, então, que buscar sem escapar de si é como tentar segurar o vento: impossível, até você perceber que o vento não precisa ser domado, apenas sentido. O que queremos ocultar não é um segredo, mas a matéria-prima de quem somos. A fuga é o caminho. A busca é o destino.
E assim, entre sombras e clarões, seguimos: caçadores de algo que já nos habita, mascarados que, no fim, só querem tirar a máscara e respirar, enquanto escrevemos para nos encontrar nas palavras que tentam nos descrever.
A busca pelo que ocultamos nunca termina ela se dobra, como um rio que descobre ser o próprio oceano ao se encontrar com o horizonte. No fim, percebemos que não se trata de esconder ou revelar, mas de aprender a caminhar com o peso leve das próprias contradições. Cada máscara que despimos vira poeira no ar, e o que resta é o rosto nu, cheio de perguntas e cicatrizes que brilham como constelações.
Talvez a verdadeira fuga esteja em parar de correr. Em olhar para trás e encontrar, nas sombras, não um monstro, mas uma criança segurando as peças que faltam. Aceitamos, então, que buscar é permanecer. Que o que queríamos ocultar era apenas o avesso do mesmo tecido que nos veste de humanidade.
E assim, sem escapatória nem redenção, descobrimos: não há labirinto. Há apenas este passo, aqui e agora, respirando fundo enquanto o espelho, enfim, se cala.
(Assista Ao Vídeo Antes de Ler o Conto)
A Crônica do vídeo é um preâmbulo, uma introdução. Complete sua experiência lendo o Conto que dela se originou, a complementa e, ao mesmo tempo, é complementado por ela. Esta é a proposta do Conversas Af.IA.das. Esta é a proposta do Barataverso!
Na Rua das Almas Descalças, havia um relógio que marcava horas de mentira. Os moradores ajustavam os ponteiros com colheres enferrujadas, e o tempo ali era uma sopa de minutos desgarrados. Foi nessa rua que Uma, costureira de véus para estátuas sacras, encontrou um osso falante dentro de um pote de goiabada. O osso dizia versos em latim invertido, e ela, que nunca soubera rezar, começou a costurar-lhe uma capa de veludo roxo. “Vestes para ossos são mapas de destinos não vividos”, sussurrou a goiabada, derretendo em êxtase.
Ela se perguntava em seus pensamentps : por que carregamos deuses no bolso e cospimos chumbo nas fontes? O osso ri, o veludo é uma pele que não nos pertence, a cidade é um caixote de retalhos onde botam fogo nas bandeiras e chamam de aurora. Quero dançar nu no telhado da catedral, mas meus pés estão costurados ao chão com linha de pescar. O osso diz: rasga! rasga! rasga! Mas quem sou eu sem as algemas que brilham?
O Osso (com voz de sanfona desafinada): Você tem medo de voar ou de descobrir que as asas são feitas de cartas de baralho?
Ela (enfiando agulhas no céu): Medo de que o vento levásse meus nós cegos.
Um Poste de Luz (interrompendo, em tom de contralto): Parem de filosofar e roubem um trem! A revolução será um bule de chá transbordando em câmera lenta!
E assim partiram: Ela, o osso, e uma legião de pombas-feitas-de-garfos. Invadiram a praça onde os políticos vendiam sonhos em latas corroídas. O osso recitou “Liberdade é uma gaiola que canta”, e as palavras viraram serpentes de fumaça que engoliram os discursos vazios. As pombas-garfos furaram os balões da grandiosidade alheia, e do céu choveu mel misturado com parafusos. “Isso não é metáfora!”, gritou um homem de cartola cheia de aranhas, mas ninguém ouvia todos dançavam a valsa dos esqueletos despidos.
Na Torre do Silêncio Construído, encontraram o Alfaiate de Máscaras. Ele tecia rostos com fios de angústia e os vendia para quem quisesse ser invisível. “Por que não fazes uma máscara que seja um espelho?”, perguntou a cpstureira, segurando o osso como uma lanterna. O Alfaiate gargalhou, e de sua boca saíram morcegos de origami. “Espelhos são armadilhas para os que temem a própria luz”, disse, enquanto suas mãos, feitas de névoa, desfaziam-se. Ela deixou cair o veludo roxo. O osso, então, cantou: “Quebre os dedos que apontam, acenda os dedos que criam.”
A cidade arde.
Ela cospe fogo-doce: “Sou
uma costura em chamas.”
Quando a polícia das certezas chegou, encontrou apenas rastros: um veludo roxo mastigado por cães lunáticos, versos em latim invertido pintados com beterraba nas paredes, e um relógio parado na hora que ninguém ousa nomear. Ela sumira, mas nas frestas do asfalto, brotavam flores de arame farpado. Dizem que ela e o osso agora viajam num trem-fantasma que derruba fronteiras entre sonho e carne. E o Alfaiate? Ah, ele coseu uma máscara de espelhos e, ao colocá-la, desintegrou-se em mil partículas de luz desobediente.
Anarquia não é o caos; é a ordem que ri da própria gravidade. Surrealismo não é fuga; é a faca que corta a realidade para ver o que sangra por dentro.
Na Estação Subterrânea das Línguas Cortadas, Ela encontrou uma máquina de vender suspiros. Era uma entidade de latão e fios de cabelo humano, cuspindo bilhetes com profecias em braille. “Alimente-me com suas dúvidas”, rugia a máquina, e ela, em troca de três segundos de silêncio atômico, recebeu um ingresso para o Circo dos Hienas Literárias. O circo era um organismo vivo: tendas pulsavam como corações, trapezistas bebiam tinta de lula, e o público era composto de livros com dentes afiados. O osso, agora vestido de palhaço, declarou: “Aqui, toda gargalhada é um motim.”
Ela parou por um instante para ler o telgrama trazido pelas pombas-garfo:
Telegrama 1 (assinado por Uma Nuvem de Sal): PARAREM DE SEMEAR PERGUNTAS NAS PLANTAÇÕES DE CIMENTO. OS TOMATES ESTÃO GANHANDO CONSCIÊNCIA E RECUSAM-SE A SER KETCHUP.
Resposta dela (entregue por um corvo com óculos de sol): QUEIMEM OS MANUAIS DE MADUREZ. A VERDADE ESTÁ NA POLPA NÃO NA CASCA.
Logo após, cruzaram a Ponte das Árvores Invertidas, onde raízes cresciam para o céu e sugavam estrelas como se fossem frutas. Encontraram a Deusa-Boto, entidade metade peixe, metade tipógrafa, que imprimia maldições em folhas de samambaia. “O rio está preso numa gaiola de concreto”, lamentou ela, enquanto ajustava os tipos móveis com escamas de pirarucu. Ela ofereceu seu veludo roxo em troca de uma palavra proibida. A Deusa-Boto cuspiu no chão: “Desobediência”, e a palavra germinou como um cogumelo atômico, engolindo a ponte em um abraço de cipó e fúria.
No palco do Clube dos Corações de Vidro, um saxofonista tocava uma música que derretia relógios. Ela, com os pés pintados de carvão, dançou sobre mesas onde burgueses bebiam lágrimas de diamante. O osso, agora trompetista, assoprava notas que se transformavam em pássaros de papel alumínio. “A vida é um acidente de percurso”, gritou uma mulher com olhos de garrafa quebrada, enquanto o chão se abria em um buraco de minhocas gigantes. Ela pulou. O osso seguiu. O buraco sussurrou: “Bem-vindos ao útero do mundo.”
Abismo sem fundo.
Ela ri: “Queda é só
outro nome para voo.”
Na cidade que restou, as crianças brincam de revolução de estilhaços. Constroem barricadas com ossos de borracha e cantam hinos em línguas que não existem. O trem-fantasma dela passa ao longe, derramando sementes de televisores que florescem como girassóis de estática. O Alfaiate de Máscaras, agora uma constelação de partículas, pisca no céu como um código morse de insurreição. E o osso? Ah, o osso fundiu-se ao sino da igreja abandonada. Toda vez que badala, um burocrata perde as palavras e um poeta encontra um novo verbo.
Para desarrumar o universo até que ele se pareça com um sonho que recusa a ser domado. Seguiremos? A próxima estação é um ponto de interrogação vestido de explosão.
Agora, como podemos continuar? O trem não para!
Renato Pittas, Rio de Janeiro, RJ, é artista plástico, poeta, escritor e Livre Pensador. Autor de Tagarelices: Conversas Fiadas Com as IAs.