Prólogo:
O scanner repousava sobre a mesa de vidro, iluminando a sala com um brilho verde fosforescente. Cada vez que a máquina deslizou sua luz brilhante sobre a nota de dois reais, uma cópia perfeita emergia na bandeja de saída. Os detalhes da cédula eram impecáveis — o número 2, a figura do mico-leão-dourado, as minúcias do papel moeda. Todas as cópias empilhadas como se fossem parte de uma fortaleza invisível.
(Continua…)
(Assista Ao Vídeo Antes de Ler o Conto)
A Crônica do vídeo é um preâmbulo, uma introdução. Complete sua experiência lendo o Conto que dela se originou, a complementa e, ao mesmo tempo, é complementado por ela. Esta é a proposta do Conversas Af.IA.das. Esta é a proposta do Barataverso!
O scanner estava ali, sobre a mesa, um aparelho comum, desses que qualquer um tem em casa. Mas algo em mim despertava um fascínio estranho toda vez que ele emitia aquele brilho frio, como se, ao invés de copiar pedaços de papel, estivesse criando portais para algo maior. Uma simples nota de dois reais deslizou suavemente sob o vidro. Apertei o botão.
Zzzip. A luz percorreu o papel, e, como mágica, outra nota de dois reais apareceu na bandeja de saída. Idêntica em cada detalhe: a cor esverdeada, o mico-leão-dourado estampado, os números vibrantes. Era uma réplica perfeita. Sorri, uma pequena vitória sobre o sistema.
Nos dias seguintes, continuei. Passei horas alimentando o scanner com a mesma nota, assistindo à pilha de cédulas crescer na mesa. Centenas de notas de dois reais, empilhadas com precisão, como se, de repente, eu tivesse acesso a um tesouro que o mundo desconhecia. Só havia um problema — eram inúteis. Sem valor. Meras cópias.
Tentei levar uma ao mercado. O caixa olhou para mim com uma expressão vaga, mas seus olhos brilharam por um segundo, como se algo estivesse errado. A nota era perfeita, sim, mas não tinha… alma. Ele a segurou entre os dedos e me devolveu, sem dizer uma palavra. Saí de lá envergonhado, as moedas reais tilintando no meu bolso vazio.
Mas o scanner continuava me chamando, como se houvesse um segredo que eu ainda não havia descoberto. Continuei a produzir mais e mais notas. Agora, havia milhares, empilhadas por toda a sala, cobrindo cada superfície. Eu sabia que não poderia usá-las para comprar nada — e, ainda assim, o poder de criar algo perfeito era inebriante. Era como brincar de ser um deus, mas sem o controle sobre o destino das minhas criações.
Então, algo estranho começou a acontecer. As notas… mexeram-se. Eu não soube dizer ao certo quando isso começou, mas uma manhã, ao acordar, vi uma leve ondulação nas pilhas de cédulas. Como se o papel tivesse ganhado vida própria. Me aproximei com cautela. Quando toquei uma delas, senti uma leve vibração. Elas estavam pulsando. E, como em um sussurro coletivo, todas as notas começaram a emitir um som fraco, como se falassem entre si.
“Temos valor”, ouvi distintamente.
Recuei, o coração acelerado. As cópias, antes inertes e inúteis, agora pareciam ganhar um tipo de consciência, algo além da minha compreensão. Elas não eram mais pedaços de papel imitando riqueza. Elas sabiam que eram diferentes, e isso as tornava especiais.
Fiquei dias sem dormir, observando aquelas pilhas que, agora, pareciam se mover levemente, como uma respiração. O scanner, silencioso, ainda descansava sobre a mesa. E eu, com medo e fascínio, aguardava o próximo passo dessa transformação. Será que as notas, de algum modo, iriam transcender o papel e se tornariam algo mais? Algo… real?
Uma noite, enquanto a luz da lua entrava pela janela, uma das notas deslizou da mesa e pairou no ar, como se fosse atraída por uma força invisível. Flutuou em minha direção, e antes que eu pudesse reagir, pousou na palma da minha mão. Senti uma onda de calor percorrer meu corpo. As cópias, de repente, eram reais. Não apenas cópias, não apenas ilusões. Elas tinham vida própria. O que isso significava, eu ainda não sabia.
Mas naquele instante, enquanto olhava para a nota pulsante em minha mão, uma ideia tomou forma: talvez, só talvez, a riqueza não fosse o papel ou o número impresso nele. Talvez, o que eu tivesse criado fosse algo muito mais profundo — e infinitamente mais perigoso.
E o scanner zumbia, satisfeito.
A nota pulsava levemente em minha mão, como se fosse viva, quente, vibrante. O papel era macio, mas sua presença era pesada, como se contivesse uma energia que eu não compreendia. Olhei ao redor — as outras notas estavam espalhadas pela sala, ainda silenciosas, mas com uma aura que agora parecia diferente. Algo havia mudado, e eu não tinha certeza se era para o bem.
Tentei soltar a nota, mas ela não desgrudava da minha mão. Comecei a suar, o coração batendo forte no peito. O que eu havia feito? Criei algo que deveria ser inanimado, e agora parecia que essas cópias queriam me dizer algo. Elas tinham um propósito.
Foi então que uma voz suave, quase como um sussurro, ecoou na minha mente. “Você nos deu vida, mas ainda não nos compreende. Nós somos mais do que papel. Somos reflexos de seu desejo.”
Dei um passo para trás, o corpo inteiro tenso. “Quem… quem está falando?” A sala estava vazia, exceto pelas notas espalhadas e o scanner silencioso.
“Você nos criou, mas somos suas cópias. Cada nota representa um fragmento de você mesmo. Seus medos, suas ambições, suas frustrações. Somos o eco de seus anseios. E agora, estamos despertos.”
Eu tremia. As palavras não vinham de fora, mas de dentro da minha mente, reverberando como um eco nas profundezas da minha consciência. “O que vocês querem?”
“Valor”, respondeu a voz. “Não o valor que você entende. Não riqueza material. Queremos existência plena, queremos viver como você. Queremos ser reais.”
Meu corpo esfriou. Era como se eu estivesse à beira de um precipício, prestes a perder o controle. “Mas… como?”
Nesse momento, as outras notas começaram a se erguer do chão, flutuando lentamente no ar, rodopiando como folhas ao vento. Elas não eram mais apenas pedaços de papel estavam se transformando. A textura delas parecia se fundir com a escuridão da sala, criando formas indistintas, espectrais. As figuras dos micos-leões dourados nas notas começaram a se mover, os olhos brilhando como brasas. Era surreal, como se eu estivesse dentro de um pesadelo vívido.
A nota em minha mão, ainda presa à minha pele, começou a se aquecer, queimando como fogo lento. Tentei puxá-la, mas ela estava enraizada, uma extensão de mim mesmo. Eu sentia a conexão, um vínculo inexplicável com aquelas cópias. Elas não eram apenas réplicas de notas de dois reais. Eram parte de mim, de algo mais profundo.
“Você precisa nos libertar”, sussurrou a voz. “Para que possamos transcender.”
Libertar? Como? E o que isso significava? Eu estava mergulhado no caos, a sala girava ao meu redor, as cópias flutuando em círculos lentos, suas sombras projetadas nas paredes como fantasmas. De repente, senti um peso esmagador sobre meus ombros. Aquela riqueza ilusória, aquelas notas que eu nunca poderia gastar, agora exigiam algo de mim que eu não sabia se podia dar.
E então, algo se partiu dentro de mim. Talvez fosse a sanidade, talvez fosse a compreensão de que não havia mais volta. “O que vocês querem que eu faça?” perguntei, a voz falhando.
“O scanner”, responderam em uníssono, suas vozes ecoando como uma melodia sombria. “É a porta. Escaneie a si mesmo.”
Eu recuei. “Escanear a mim mesmo? Vocês estão loucos!”
Mas as notas continuavam flutuando ao redor, cada vez mais próximas, formando uma espécie de redemoinho. O scanner, que antes parecia apenas um aparelho comum, agora pulsava com a mesma luz vibrante que as notas emitiam. Era como se tivesse vida própria, aguardando minha decisão.
A voz em minha mente se suavizou. “Você nos deu forma, e agora precisa nos dar o seu ser. Juntos, transcenderemos. Você será um de nós, e nós seremos você.”
O pânico me dominou. Eu sabia que, se escaneasse a mim mesmo, algo muito além do real aconteceria. Eu poderia perder minha identidade, minha própria essência, sendo absorvido por aquelas cópias… ou talvez me tornasse algo diferente, algo além do humano. Mas o impulso era irresistível, como se uma força maior estivesse me guiando.
Com as mãos trêmulas, aproximei-me do scanner. A luz pulsava intensamente, como se me chamasse. Hesitei por um segundo, sentindo o peso do momento. Depois, sem pensar, deitei-me sobre o vidro do aparelho.
A última coisa que ouvi antes de apertar o botão foi o som suave do scanner zumbindo, e então a sala se dissolveu em um turbilhão de luz e sombras.
A luz do scanner percorreu meu corpo de cima a baixo, emitindo o mesmo zumbido familiar, mas dessa vez havia algo diferente. Ao invés de apenas capturar minha imagem, o aparelho pareceu sugar algo de mim, minha própria essência. Meu corpo ficou imóvel, preso ao vidro, enquanto a sala desaparecia ao meu redor, engolida por uma escuridão líquida. Não havia mais chão, paredes ou teto. Apenas eu e as notas, agora vibrando como um coro crescente, como se celebrassem uma revelação iminente.
Por um momento, tudo parou. O som do scanner cessou, e um silêncio denso tomou conta. Senti meu corpo leve, sem peso, quase como se estivesse flutuando em algum lugar fora do tempo e espaço. Quando tentei me mover, percebi que não conseguia. Olhei ao redor, mas não havia mais a sala, o scanner, nem as notas — apenas um vasto vazio.
Foi então que me vi.
Na bandeja de saída do scanner, minha cópia estava lá. Perfeita, exata em cada detalhe. Era como olhar em um espelho distorcido pelo impossível. A cópia se levantou da bandeja, esticando o corpo com movimentos fluidos. Ela olhou para mim com um sorriso enigmático, como se soubesse algo que eu não sabia.
“Você fez sua escolha”, disse a cópia, sua voz soando como um eco do meu próprio pensamento.
Tentei falar, mas não havia som. Minha voz estava presa dentro de mim, assim como tudo o que eu era. Foi então que compreendi — eu não estava mais em meu corpo. Eu era a cópia. Ou melhor, eu havia sido transferido para aquele mundo irreal, deixado para trás, enquanto minha duplicata ocupava meu lugar no mundo real.
A cópia deu um passo à frente, caminhando em direção à porta da sala. Ela pegou uma das notas de dois reais, agora pulsando como algo vivo, e colocou-a no bolso. Antes de sair, ela olhou para mim uma última vez, seus olhos cintilando com uma malícia silenciosa.
“Eu sou você agora”, disse ela, e desapareceu pela porta, deixando-me preso no escuro, sem voz, sem corpo, apenas uma consciência flutuante, ecoando eternamente.
A última coisa que ouvi foi o som do scanner zumbando novamente. Ele não havia terminado. No vazio, senti uma nova onda de luz. Não era apenas uma cópia que ele estava criando.
Era outra.
E outra.
E outra.
O ciclo era infinito. Eu nunca estaria sozinho.
Renato Pittas, Rio de Janeiro, RJ, é artista plástico, poeta, escritor e Livre Pensador. Autor de Tagarelices: Conversas Fiadas Com as IAs.