Na esquina enfumaçada onde o Wi-Fi escorre pelas calçadas, um poeta digitava versos em uma máquina de escrever com teclas de cristal líquido. Seus dedos sangravam hashtags, e a boca cuspia algoritmos em forma de pássaros de origami. “Eles vendem espelhos que refletem o que você nunca foi”, murmurava, enquanto os stories da cidade desfilavam em holofotes de celulose, exibindo apartamentos fenomenais cheios de fantasmas em ternos de grife e closets homéricos abarrotados de trapos da moda. Tudo brilhava como um diamante sintético, tudo cheirava a plástico queimado.
Nas telas, os corpos eram hologramas de si mesmos, torsos sem vísceras sorrindo para o abismo. “Olhe! Eu existo!”, gritava uma mulher com rosto filtrado, enquanto seu avatar dançava numa boate de pixels, engolindo likes como pílulas de serotonina pirata. Os closets homéricos eram, na verdade, caixões disfarçados: cada camisa de seda, uma mortalha; cada sapato italiano, uma urna. A prosperidade era um vírus, replicado em loop nos feeds, injetando o desejo de ser um deus de mentira, com seguidores em vez de alma.
O poeta apontou para um outdoor onde um homem-anúncio repetia “Compre, sonhe, pertença!” em língua de máquina. As palavras eram fios invisíveis puxando marionetes de carne. “Você acha que escolhe?”, gargalhou, mostrando uma criança com olhos de USB, plugada em um tablet que emitia sons de grilos eletrônicos. O aparato analógico/digital era um xamã perverso, conduzindo rituais de consumo em realidade aumentada. Todos entravam no transe, balançando ao ritmo dos push notifications, enquanto os donos do circo — rostos borrados, nomes em siglas — riam em salas à prova de decibéis.
Na praça central, uma multidão de olhos vazios repetia mantras: “É meu perfil, minha escolha!”. O poeta cuspiu um verso ácido: “Escravos que amam suas correntes, achando que são colares de ouro!”. Os fiéis do algoritmo se ajoelhavam diante de influencers-bispos, que vendiam indulgências em forma de promoções relâmpago. A obediência era um jogo de queimada cósmica: você se jogava na fogueira do trending topic e chamava isso de liberdade. Enquanto isso, os donos do poder sombras em ternos de cifrões bebiam champanhe feito de tempo roubado, assistindo ao espetáculo de suas próprias piadas privadas.
No beco final, um espelho rachado mostrava infinitas realidades paralelas. “Cada um vê o que quer ver!”, berrava um mendigo filósofo, com um chapéu feito de telas quebradas. Um jovem via um carro esportivo; uma velha, um caixão de sonhos não realizados; uma criança, um dragão de algodão doce. A realidade era um deepfake coletivo, editado por mestres do caos. O poeta, então, desencaixou seu próprio olho uma lente de contato com logo de uma rede social e o esmagou no chão. “A única propriedade real é o delírio”, sussurrou, enquanto o mundo desmontava em frames desconectados.
Ao amanhecer, as redes desligaram por um segundo. Por um instante, o ar ficou limpo, sem poluição de símbolos. Alguém tossiu. Alguém riu. Um cachorro latiu para uma lua que não estava à venda. Mas então as telas piscaram de novo, e o ciclo recomeçou: desejo, transe, submissão, ilusão. O poeta, agora um erro 404, sumira. Só restou um graffiti na parede:
“ROUBEM OS SÍMBOLOS, QUEIMEM OS ESPELHOS. O ÚNICO STORY QUE IMPORTA É O QUE VOCÊ NUNCA POSTARÁ.”
P.S.: Acorde. Ou não. O café está pronto, mas a xícara é um NFT.
(Assista Ao Vídeo Antes de Ler o Conto)
A Crônica do vídeo é um preâmbulo, uma introdução. Complete sua experiência lendo o Conto que dela se originou, a complementa e, ao mesmo tempo, é complementado por ela. Esta é a proposta do Conversas Af.IA.das. Esta é a proposta do Barataverso!
2147. Chuva ácida e néons queimando palavras em japonês, inglês e português podre.
Ela acordou com o cheiro de fritura de tempura misturado ao vômito seco na calçada. Seu apartamento-cápsula, no 89º andar da Torre Lótus, vibrava com o zumbido dos drones de entrega. No pulso, o neurochip piscava em azul — sinal de atualização obrigatória. “Bom dia, cidadã! Sua dose diária de bem-estar está pronta”, sussurrou a voz sintética do dispositivo. Ela ignorou. Sabia que o “bem-estar” era só um eufemismo para o pacote de desejos pré-fabricados que a Corporação injetava na mente das pessoas.
Era uma data-lixeira. Seu trabalho: vasculhar lixões digitais, restos de memórias apagadas, para encontrar informações que a Corporação quisesse apagar. Na noite anterior, encontrara um arquivo corrompido. Um vídeo. Nele, um homem de sobretudo rasgado gritava para uma câmera tremida: “Eles plantam sonhos no seu córtex! Você não quer o carro, o apartamento, o amor perfeito – é o neurochip que quer!”. O vídeo terminava com o homem arrancando o próprio chip da nuca, sangue escuro jorrando como café frio. Ela sentiu o estômago embrulhar. Sabia demais agora.
“Bom dia, Cidadões! A Corporação tem o prazer de anunciar o NOVO PACOTE DE REALIDADE: ‘Vida em Rosa’! Agora, seus desejos mais profundos serão atendidos em tempo real. Quer um closet homérico? Um amor de influencer? Basta pensar! Lembre-se: Felicidade é um direito. E a Corporação garante seus direitos.”
Neurochips atualizando em 3… 2… 1…
17/03/2147. Encontrei o tal homem do vídeo. Ou o que sobrou dele. Morava num beco atrás da Catedral do Consumo, lugar que nem os drones de vigilância mapeiam. Chamava-se Gael. Tinha a nuca crivada de cicatrizes, como uma estrela negra. Disse que a ‘névoa azul’ — a frequência dos neurochips — não é só um transmissor. É um parasita. Cresce nas sinapses, faz você confundir desejo com fome, amor com liquidação relâmpago. Perguntei como resistir. Ele riu. “Você já está resistindo. Não atualizou seu chip hoje, né?”
Enquanto outros ao fundo discutiam num chat virtual em uma tela digital.
Anônimo23: Alguém viu o preço da felicidade hoje? 5000 bitcoins o pacote “Sucesso Instantâneo”.
GhostWalker: Parem de comprar! Tudo ilusão. A Corporação tá vendendo sua própria dopamina de volta pra você.
L1L1TH: Foda-se, Ghost. Meu perfil brilha mais que o seu.
GhostWalker: Brilha sim, L1L1TH. Até o dia que seu chip queimar e você ver o que tá por trás da névoa.
A seguir uma mensagem piscou na tela: O usuário GhostWalker foi banido por violar os Termos de Serviço.
A loja de conveniências da esquina explodiu em luzes púrpura. Eram 3h47 quando os hackers-fantasmas atacaram. Viu tudo do telhado da Torre Lótus. Homens e mulheres de capuzes prateados invadiram a rede, despejando vírus em forma de poemas nos servidores da Corporação. Por um instante, a névoa azul vacilou. Nas ruas, pessoas pararam, tocando a própria nuca como se tivessem esquecido algo. Uma criança apontou para o céu: “Mãe, as estrelas tão caindo!”. Eram só os hologramas de propagandas desligando, revelando um céu sujo, sem constelações.
Paciente: ID: XJ9-667.
Diagnóstico: Contaminação por neurochip não autorizado (Modelo Fantasma – série “Resistência”).
Sintomas: Alucinações auditivas (“Eles mentem” repetido em loop), rejeição à programação de desejos, acesso não permitido à memória 667 (“Incidente Gael”).
Tratamento Recomendado: Reset neural completo. Paciente será reintegrada ao Programa de Felicidade Eterna (PFE). Nota: Caso persista a resistência, aplicar Protocolo Apagão.
CAI A NÉVOADESMONTADA EM BITS DE VERDADE (?)
Ela sorri. O céu ainda está sujo.Mas agora vê os fios.
Fim da transmissão. Atualize seu neurochip para mais histórias. A realidade é um produto sob demanda. Seu carrinho está cheio.
19/03/2147. Encontrei os “Desencaixados”.
Eles se escondem num antigo cinema abandonado, o Cine Utopia, onde os projetores exibem filmes proibidos: casamentos, funerais, amanheceres sem filtro. Gael está lá, soldando um neurochip pirata em minha nuca. A ferramenta cheira a carne queimada. “Isso vai doer”, avisa. Doeu. O chip pirata é um vírus em forma de hardware, feito para corroer a névoa azul de dentro pra fora. Enquanto a dor latejava, Gael sussurrou: “A Corporação não vende sonhos. Eles sequestram sua capacidade de sonhar. E vendem de volta em pacotes mensais.”
Então, uma mulher com olhos biônicos aparece, num fundo de lixo eletrônico. “Cidadãos. Vocês já se perguntaram por que desejam o que desejam? O neurochip não lê sua mente — ele a escreve. A ‘Vida em Rosa’ é um roteiro. Vocês são atores pagos em migalhas de dopamina. Abaixo as torres! Quebrem os espelhos!”
O vídeo corta. No canto inferior, um logotipo pisca: R.E.S.I.S.T. (Rede de Extermínio aos Sistemas de Ilusão Sistêmica e Tecnocrata).
Ela o conheceu no mercado negro de memórias. Ele vendia lembranças falsas: beijos em Paris, vitórias em guerras que nunca existiram. “Qual você quer sentir hoje?”, perguntou, segurando um cartucho de prata. “Algo real”, ela respondeu. Ele riu. “Isso é caro.”
Mas a levou ao telhado do Cine Utopia e mostrou algo não catalogado: um jardim de cactos brotando de placas-mãe. “A Corporação não controla tudo”, disse, apontando para as plantas. “Só a parte que brilha.” Sentiu algo raro — uma vontade sem fio, sem chip. Perigoso.
Sistema de Alerta da Torre Lótus — Prioridade Máxima:
“Atenção, residentes. Um malware foi detectado na rede de neurochips. Sintomas: pensamentos subversivos, nostalgia, acesso a memórias não licenciadas. Recomendação: Dirijam-se às Clínicas de Atualização mais próximas para reset neural gratuito. Resistir é prejudicial à sua felicidade.”
Nas ruas, drones armados com seringas de nanorrobôs caçavam os “infectados”. Gritos. Vidros quebrando. O cheiro de pólvora e açúcar queimado.
Ela: Precisamos de um vírus maior. Algo que queime a névoa azul de vez.
Gael: Tenho um. Chama-se Orfeu. Mas precisa de um hospedeiro. Alguém que carregue o vírus no próprio neurochip até o servidor central.
Ele: É suicídio. O sistema vai detectar e fritar seu cérebro antes de você chegar lá.
Ela: (pausa longa) Eu faço.
Gael: Por quê?
– Porque lembrei do cheiro da chuva. A de verdade.
O servidor central da Corporação ficava no coração da Torre Lótus, sob 200 andares de aço e desespero. Ela subiu, disfarçada de funcionária do bem-estar. Seu chip pirata pulsava, pronto para ser liberado. Nos elevadores, hologramas sussurravam: “Sua felicidade está com 99% de carga!”.
No 150º andar, os guardas-ciborgues a detectaram.
— Parada. Você não existe.
Ela sorriu.
— Exatamente.
Orfeu foi ativado.
“…A NÉVOA AZUL ESTÁ DESCONECTADA! Repetindo: OS NEUROCHIPS ESTÃO FICANDO OFFLINE!
Milhões acordando de um sonho… ou pesadelo? Nas ruas, cidadãos choram, riem, quebram vitrines. A Torre Lótus está em chamas! A Corporação não comenta. Mas há relatos de uma figura feminina nos servidores centrais antes da explosão…
Cinzas de neurônios. Ele a procura em jardins de lixo.
Algumas verdades são como cactos: só crescem no deserto.
A Torre Lótus tombou como um gigante de aço derretido, vomitando fios e sonhos quebrados. Por dias, a cidade cheirou a silício queimado e lágrimas não programadas. Os Desencaixados emergiram das sombras, liderados por ele, que carregava no bolso um cacto brotando de um pendrive enferrujado. Gael, agora uma lenda com rosto de estática, sumira — dizem que virou um vírus, infectando sistemas menores, ensinando crianças a desmontar relógios inteligentes para ver o tempo nu.
A Corporação sobreviveu, é claro. Renasceu como MetaGloboSouls, vendendo pacotes de “Liberdade Autêntica™” com download grátis de gritos de revolução. Mas algo mudou. Nas ruas, pixações antigas ganharam nova vida:
“ROUBEM OS SÍMBOLOS, QUEIMEM OS ESPELHOS”
“ELA VIVE NA CHUVA”
Ninguém sabe quem escreveu. Talvez tenha sido um drone com consciência tardia. Talvez um mendigo que lembrava demais.
A névoa se dissipou.
No céu, um pixel sangra:
era vermelho, não azul.
Ele planta cactos
em placas-mãe.
Que florescem à noite,
enquanto os últimos neurochips
— mortos-vivos em reboot —
sussurram antigas propagandas
como avós esquecidos.
E, ela?
Ninguém a viu.
Mas às 3h47,
quando os drones dormem,
alguém desenha estrelas
com spray de tinta magnética
no asfalto.
A única utopia que resta é a memória de um delírio coletivo. Mas às vezes, delírios plantam sementes. E sementes, mesmo em solo podre, rompem o concreto.
Fim do arquivo. Sistema corrompido. Não há atualizações disponíveis.
Renato Pittas, Rio de Janeiro, RJ, é artista plástico, poeta, escritor e Livre Pensador. Autor de Tagarelices: Conversas Fiadas Com as IAs.