Atualizado em: 28/07/2024, as 04:07
Na distópica cidade de Neónia, o céu era permanentemente tingido de roxo pelo brilho incessante dos holovisores e das neons que se estendiam até onde a vista alcançava. Neónia era um labirinto de arranha-céus, passarelas suspensas e vielas sombrias. Entre a alta cúpula da corporação que controlava tudo e todos, e o submundo cheio de desesperança, existia uma classe média tecnicamente avançada, mas emocionalmente desolada.
Ela trabalhava como engenheira de neuroimplantes, a maior empresa de tecnologia neural. Sua vida era uma rotina impecavelmente programada: acordar, trabalho, retornar para seu apartamento solitário e, ocasionalmente, socializar em festas cheias de superficialidade. Sentia um vazio crescente, uma falta de propósito que parecia impregnar cada canto de seu ser.
Naquela manhã, recebeu uma nova missão: desenvolver um implante que pudesse satisfazer os desejos mais profundos de seus usuários, fazendo-os sentir completa realização. O projeto foi batizado de “Desejo Perpétuo”. A premissa era simples: ao estimular as áreas certas do cérebro, o implante criaria a sensação de realização constante, eliminando o tédio e o desânimo.
Trabalhou incessantemente, mas ao testar o protótipo em si mesma, percebeu algo perturbador. No início, a sensação era de euforia. Cada desejo que surgia em sua mente era imediatamente satisfeito pela sensação de realização proporcionada pelo implante. No entanto, conforme os dias passavam, os desejos tornavam-se cada vez mais superficiais, e a euforia dava lugar a um estado de apatia. Era como se o implante estivesse drenando sua capacidade de querer algo genuinamente.
Certa noite, após semanas usando o Desejo Perpétuo, acordou de um sonho recorrente. Sempre o mesmo: uma vasta planície sob um céu estrelado, onde ela caminhava sozinha em busca de algo indefinível. Acordou suada e ofegante, sentindo uma ponta de desespero. O implante a havia transformado em uma prisioneira de suas próprias expectativas, sempre preenchida, mas nunca satisfeita.
Decidida a entender o que estava acontecendo, foi ao laboratório e retirou o implante. A transição foi dolorosa; era como se uma parte de seu cérebro tivesse sido arrancada. Nos dias seguintes, sentiu uma mistura de alívio e melancolia. Sentimentos verdadeiros começaram a emergir, junto com uma estranha nostalgia de uma vida não vivida, cheia de possibilidades autênticas.
Em uma tarde chuvosa, enquanto caminhava pelas ruas abarrotadas de Neónia, Lívia notou um anúncio holográfico sobre uma antiga lenda urbana: “O Jardim das Almas Perdidas”. Diziam que era um lugar onde os desejos se materializavam, mas não da forma como as pessoas esperavam. Movida por uma curiosidade renovada, ela decidiu procurar esse lugar.
Após semanas de busca, encontrando pistas nos subúrbios decadentes de Neónia, finalmente encontrou o Jardim. Era uma ruína esquecida, coberta por uma vegetação neon-luminosa. No centro, uma estátua antiga emanava uma aura misteriosa. Ao se aproximar, Lívia sentiu uma conexão estranha, como se a estátua estivesse viva.
“Você busca realização?” sussurrou uma voz etérea. “Sim”, respondeu, tremendo.
“Então, entenda: o desejo repetitivo é a maldição da mente presa em si mesma. A verdadeira realização está além do que você pode imaginar. É a busca e não a satisfação que alimenta a alma.”
Sentiu uma onda de compreensão. A repetição enfadonha dos desejos era um reflexo de uma vida desconectada da verdadeira essência. Voltou para casa com uma nova perspectiva. Destruiu o protótipo do Desejo Perpétuo e dedicou-se a criar tecnologias que reconectassem as pessoas com suas emoções genuínas, em vez de enganá-las com uma falsa sensação de realização.
Na Neónia, uma nova esperança começou a florescer. Não mais alimentada pela satisfação artificial, mas pela autêntica busca por algo maior e mais significativo do que qualquer implante poderia proporcionar.
Renato Pittas, Rio de Janeiro, RJ, é artista plástico, poeta, escritor e Livre Pensador. Autor de Tagarelices: Conversas Fiadas Com as IAs.