Atualizado em 04/08/2024 as 19:20:00
Disse uma parlamentar do meu estado: ‘’Todo o poder emana do cano de uma arma!’’ Uma fala infeliz? Com certeza, contudo aqui neste pequeno espaço, não há um local para grandes elucubrações. Cabe aqui, somente fazer um pequeno debate, sobre a microfísica do poder, em uma sociedade estratificada. O poder do estado, em uma sociedade estratificada, com forte concentração de renda. A função do estado, como entidade, é manter todos e tudo em seus devidos lugares.
Externo aqui, um episódio em particular, eu um membro efetivo do aparato repressivo do estado, estava eu guardado e resguardando um aparato local do estado. Um órgão colegiado, a bem da verdade, localizado próximo de uma rodovia federal, na entrada da cidade, uma cidade portuária e um porto pesqueiro, cidade praiana movimentada e bem movimentada.
Estava eu em um exílio imposto, um dos piores postos para se trabalhar, local isolado, em uma zona industrial, com enormes galpões para contêineres e vários terrenos baldios. E uma área, mal frequentada ao cair da noite, e durante o dia, havia pequenos espasmos de criminalidade. E frequentemente nações ciganas, ocupavam os terrenos baldios e como na época como trabalhava durante o dia, eu tinha contato com essa gente diversa de vida nômade.
Como o povo do alto escalão, os querubins e as querubinas, trabalhavam no segundo piso e eu ficava no andar térreo, eu ficava no subterrâneo fazendo a função de porteiro, recepcionista e guarda. E eu posso dizer que, eu tratava todo mundo da melhor maneira possível, não mais que a minha obrigação como servidor público.
Destaco aqui uns episódios bem específicos, comum o povo cigano pedir pequenos favores. Um deles, me pediram para acampar provisoriamente no terreno baldio ao lado da repartição, estavam com dois veículos e um deles estava quebrado e iriam levar em uma mecânica. Tudo bem, um veículo ficou enquanto o outro estava atrás de alguma oficina mecânica.
Tudo certo até as coisas começarem a dar errado, pois lá das densas alturas, uma querubina-mor avistar o pequeno acampamento cigano. A semideusa convoca a estagiária, e ambas descem as escadas correndo e ao chegar no subsolo a querubina-mor, me inquiriu fortemente sobre o acampamento cigano. Tentei explicar a situação, que o acampamento seria provisório, que dali a pouco os romanis iriam embora. Não contente a querubina, fez menção de partir para cima das mulheres e crianças romani e para, sacou o telemóvel do bolso e ligou para o coronel que comandava a repartição. Era no início da manhã e o querubim de alto escalão, para a nossa sorte, e demais meros mortais, o militar de alta patente não atendeu ao chamado desesperado da querubina. Ao final da manhã, os romanis desmontaram o acampamento, me agradeceram e deram adeus em mais um dia normal no subsolo na microfísica do poder na sociedade estratificada.
Meses depois, outra situação ridícula, outra família cigana, em um pick-up último modelo, parou no estacionamento da repartição, que era aberto ao público. O motorista e chefe do clã desceu do veículo e me pediu um balde de água para o carburador e eu prontamente indiquei a torneira mais próxima. Para estes pedidos eu sempre consenti, sem pedir autorização para os querubins e as querubinas do andar de cima, pois eles eram de uma secretária e eu respondia para outra secretaria.
Mas tem o dia seguinte, as consequências dos nossos atos, para o bem e para o mal, sempre chegam e no meu caso, em especial, têm os tilintares do molho de chaves suspensas no ar. Para os ridículos da vida, o golpe veio do andar de baixo, uma zeladora terceirizada, branca, de cabelos pretos, meia idade e olhos rasgados e face de indígena, que jurava de pés juntos que ascendência chinesa. Uma cabocla dos interiores, pois bem ela me inquiriu que história era essa de eu fornecer água para os ciganos, uma vez que fornecia uns baldes de águas para os romani nos dois casos acima. Um pouco de contexto aqui, eu trabalhava no regime de doze horas e com trinta e seis horas de descanso. Mas, creio que o guarda do outro plantão, um guarda ítalo-brasileiro nada republicano e com tendências à extrema direita, soube do meu ato falho.
Olhei bem fundo nos negros olhos da zeladora cabocla e somente disse para senhora de meia idade, que era mesmo um absurdo, ciganos querendo beber água e eu com a cara mais chocada do mundo. Hora, era mesmo um absurdo mesmo seres humanos querendo beber água. E bem que este relato poderia acabar aqui, contudo fatos de intolerâncias não acabam e tem seus desdobramentos.
Fragmento do Livro: “Dos Ridículos da Vida”
Samuel da Costa, contista, poeta e novelista em Itajaí, Santa Catarina. – Email: [email protected]