Nos interiores da máquina pública, tem os seus pressupostos próprios, devido às gamas de disputas variadas, sociais, políticas e particulares. Mas o caso aqui, não é fazer um tratado sociológico e político, sobre as entranhas abissais da máquina pública.
E lá estava eu, o marxista, homem negro e periférico e membro efetivo do aparato repressivo do Estado, é o segundo decênio do século XXl, era um período pôs-eleições locais e o candidato da oposição, ganhou as eleições. Então, na troca de poder, eu fui realocado para fazer a segurança patrimonial de um aparato de saúde pública. Uma unidade de saúde, quase pronta para ser entregue para a sociedade, aparelho localizado no bairro periférico onde eu vivo. Até aqui, nada de novo no front, pois todos às vezes, que o poder troca de mãos, os perdas e danos, tanto para os vencedores e tanto para os perdedores. Pois há quem ganhe perdendo e há quem perde ganhando. E mais uma vez, nada de novo no front
E vamos dar mais um passo à frente! E lá estava eu, percorrendo os labirintos estreitos e vazios da unidade de saúde, pois a construtora estava dando retoques finais antes de entregar o aparelho de saúde. E eu não estava sozinho, fazendo par comigo, um funcionário terceirizado, de segurança público e privada, um elemento mal pago e mal treinada da infraestrutura.
Então lá estávamos nós, eu e o outro habitante dos subsolos, o guarda terceirizado e mais que de repente, aparece uma querubina. A semideusa, estacionou a seu veículo automotor, não muito longe de onde estávamos, ela alta, loura e pós-graduada e eu a conhecia, pois já tinha trabalhado em um outro aparato de saúde pública, onde a tal querubina era a diretora geral.
A querubina platinada, nos cumprimentou com um agradável e belo bom dia e adentrou no aparato de saúde em obras, na verdade a semideusa foi tragada pelo prédio semi-pronto. Naquele momento a semideusa, me parecia um tanto deslocada e vacilante ao andar. Eu então, perguntei para o meu companheiro de trabalho, que em meio a sons de marteladas e serras-elétricas, o que a semideusa estava fazendo ali. E ele me confidenciou que a querubina-mor estava contando o mobiliário do aparento de saúde, contando as cadeiras, armário e mesas.
E a ridiculice poderia morrer ali mesmo, até que dias depois, em mais uma manhã outonal, a querubina-mor veio ter comigo e o meu companheiro de trabalho. Foi uma conversa com tons estranhos, arrastados e desesperados. A semideusa, nos disse que tinha contado duas vezes, o mobiliário e a mandaram contar pela terceira vez.
Como agentes de segurança, meros mortais, habitantes dos subsolos, nos comportamos, como manda o figurino, quando estamos diante de figuras mitológicas. Mudos e calados entramos na conversa e mudo e calados saímos da conversa, como bons agentes do serviço se comportam. E uma vez que a semideusa querubina, bateu as suas asas e partiu para o céu, foi ela se encontrar como os seus iguais semideuses, lá nas densas alturas.
Encafifado com a cena ridícula que se desenrolava, o meu par na segurança patrimonial, no alto do seu fardamento, bem cintado, me perguntou o que de fato, estava acontecendo, com a querubina platinada. Eu, com os meus fartos anos, percorrendo os recantos escuros, mofados subterrâneos labirínticos, da máquina pública local. Eu respondi que era, o cantador de quero-quero, o Vanellus chilensis, para os estudiosos da fauna silvestre sul-americana. Escutei um o que? Nos olhares, no meu companheiro de serviço de segurança.
E assim relatei, que chegou uma história folclórica, a minha pessoa, agonizava os anos de chumbo, da ditadura militar e na localidade, assim ocorreu no país todo. O grupo, que dava sustentação política e social, ao regime de força, se esfacelou por completo, redefinindo o cenário político como um todo.
Era o início do penúltimo decênio do século XX e um dissidente político desse grupo, ganhando as eleições local e se distanciou dos ex-correligionários. Avancei na conversa, dizendo que diziam nos subsolos da máquina pública, que o alcaide vencedor das eleições, exílio na zona rural um desafeto querubim de patente intermediária. E se contava que o dito anjo caído e exilado, telefonou para o ex-correligionário, ligou para o alcaide, o deus supremo dos querubins, querubinas e habitantes dos subsolos. O anjo caído, reclamou para o querubim-mor, que ele, o anjo caído, estava sem função na repartição rural, onde foi realocado. Em resposta o querubim supremo, recomendou que ele, o querubim, exilado em um lugar ermo, que ele poderia com o tempo livre que tinha, ele poderia contabilizar os quero-quero.
E para os ridículos da vida, foi assim que a nossa superiora hierárquica, a semideusa querubina platinada, não contabilizou aves silvestres exóticas, em um lugar ermo. E sim contabilizou as mesas, cadeiras e mobiliários afins, quarta vezes, até desaparecer das nossas vistas. E confesso que nunca mais a vi, caminhando nos subsolos ou mesmo flanando nas densas alturas.
Fragmento do Livro: “Dos Ridículos da Vida”