Dos Ridículos da Vida — Romanis, a Imprensa e a Militância Negra na Microfísica do Poder

Como o longo título academicista, do texto já entrega, vamos tratar aqui destes três atores sociais, vamos tratar de um caso específico, que ocorreu na minha pequena cidade portuária e praiana. Para além de eu ser um pequeno funcionário público, há época eu trabalhava em um aparelho de segurança pública local, sou o guardinha ali da esquina, como dizem por aí. E como eu trabalhava, guardando e resguardando um aparelho estatal, em um local isolado, como o local era cheio de terrenos baldios, os ciganos ali acampavam. E convivi na distância segura para ambos os lados, pois se aproximar, muito de homens e mulheres uniformizados queima mesmo o filme.

Indo direto ao ponto chegou aos meus ouvidos, na repartição pública, que um foca, um jornalista em início de carreira, foi fazer uma reportagem com o povo cigano acampado próximo da repartição que eu trabalhava. Diziam nos corredores, lá nas densas alturas, no segundo andar da repartição em que eu trabalhava. E como o prédio tinha somente dois andares, logo o caso ganhou o subsolo que eu trabalhava. O tal foca foi expulso a chutes e pontapés, pelo povo nômade, diziam nos corredores que o sujeito sacou de uma máquina fotográfica, não aquelas pequenas de pessoas normais e sim aqueles enormes trambolhos.

Fofocas são fofocas e não devem ser levadas a sério é que diz o bom senso. Até o jornal, um jornal diário de certa relevância na região, publicar o ocorrido, tim por tim, como se diz no popular. E para os muitos ridículos da vida, no meio da matéria para baixo, o jornal começa a fazer ataques gratuitos ao povo nômade. Ataques racistas, justamente um veículo de comunicação conhecido e reconhecido, em um passado remoto por expor as mazelas do poder local.

Diante ao silêncio sepulcral dos ditos progressistas, e lá vai eu chamar a atenção, como sou militante do movimento negro e mandei uma missiva ao jornal. Ande chamei a atenção para o fato que o lixo jogado nos terrenos baldios, não eram os ciganos que produziam, também chamei a atenção do povo nômade milenar tinham o direito de usar os locais. Um pouco de contexto, o meu país assinou um tratado, na ONU, Organização das Nações Unidas, reconhecendo a nação cigana como autônoma. Isso ocorreu no segundo decênio do século XXI.

O dito jornal local, outrora combativo, acabou publicando a minha missiva, a onda proto-fascista, que nos anos seguintes teve lá seus presságios, seus pequenos avisos.

Tudo certo até as coisas começarem a dar errado, pois lá das densas alturas, uma querubina-mor avistar o pequeno acampamento cigano. A semideusa convoca a estagiária, e ambas descem as escadas correndo e ao chegar no subsolo a querubina-mor, me inquiriu fortemente sobre o acampamento cigano. Tentei explicar a situação, que o acampamento seria provisório, que dali a pouco os romanis iriam embora. Não contente a querubina, fez menção de partir para cima das mulheres e crianças romani e para, sacou o telemóvel do bolso e ligou para o coronel que comandava a repartição. Era no início da manhã e o querubim de alto escalão, para a nossa sorte, e demais meros mortais, o militar de alta patente não atendeu ao chamado desesperado da querubina. Ao final da manhã, os romanis desmontaram o acampamento, me agradeceram e deram adeus em mais um dia normal no subsolo na microfísica do poder na sociedade estratificada.

Meses depois, outra situação ridícula, outra família cigana, em um pick-up último modelo, parou no estacionamento da repartição, que era aberto ao público. O motorista e chefe do clã desceu do veículo e me pediu um balde de água para o carburador e eu prontamente indiquei a torneira mais próxima. Para estes pedidos eu sempre consenti, sem pedir autorização para os querubins e as querubinas do andar de cima, pois eles eram de uma secretária e eu respondia para outra secretaria.

Mas tem o dia seguinte, as consequências dos nossos atos, para o bem e para o mal, sempre chegam e no meu caso, em especial, têm os tilintares do molho de chaves suspensas no ar. Para os ridículos da vida, o golpe veio do andar de baixo, uma zeladora terceirizada, branca, de cabelos pretos, meia idade e olhos rasgados e face de indígena, que jurava de pés juntos que ascendência chinesa. Uma cabocla dos interiores, pois bem ela me inquiriu que história era essa de eu fornecer água para os ciganos, uma vez que fornecia uns baldes de águas para os romani nos dois casos acima. Um pouco de contexto aqui, eu trabalhava no regime de doze horas e com trinta e seis horas de descanso. Mas, creio que o guarda do outro plantão, um guarda ítalo-brasileiro nada republicano e com tendências à extrema direita, soube do meu ato falho.

Olhei bem fundo nos negros olhos da zeladora cabocla e somente disse para senhora de meia idade, que era mesmo um absurdo, ciganos querendo beber água e eu com a cara mais chocada do mundo. Hora, era mesmo um absurdo mesmo seres humanos querendo beber água. E bem que este relato poderia acabar aqui, contudo fatos de intolerâncias não acabam e tem seus desdobramentos.

Fragmento do Livro: “Dos Ridículos da Vida”

Samuel da Costa, contista, poeta e novelista em Itajaí, Santa Catarina.

COMPARTILHE O CONTEÚDO DO BARATAVERSO!
Assinar
Notificar:
guest

0 Comentários
Mais Recente
Mais Antigo Mais Votado
Inline Feedbacks
Ver Todos os Comentários

Conteúdo Protegido. Cópia Proibida!