Atualizado em: 27/07/2024, as 07:07
O homem é jovem, alto e magro, dono de olhos de um azul profundo. Ele está no palco. Seu semblante exprime uma inquietude conflituosa que só ele entende; uma dor impossível de medir ou de pesar. Seus companheiros estão em seus postos. O grupo inicia então uma longa introdução à música, sob a batida forte e bem marcada da bateria, apoiada pela junção de baixo e guitarra, fechando assim um singular círculo perfeito de caos e harmonia. Esses opostos climáticos redundam numa catarse à prova de qualquer sentimento de indiferença – o tempo e o espaço jamais permitiriam –, enquanto Ian Curtis – o cantor – inicia uma estranha forma de dançar, algo entre o ridículo e o patético, cujo real sentido só irá se revelar, e sem graça nenhuma (aos poucos, talvez nunca totalmente) após aquele 18 de maio de 1980, quando uma corda fez a diferença entre a vida e a eternidade.
Curtis agita os braços de maneira frenética, descontrolada. Seu corpo se contorce, sem, no entanto, curvar-se; a cintura gira, as pernas ensaiam um cambaleio. Seu olhar se fixa numa espécie de vazio. Sua cabeça pende, ora para a direita, ora para o lado oposto; a voz flui num baixo-barítono incomum. As palavras tomam forma, o pensamento voa:
“Alguém afaste estes sonhos / e me direcione para outro dia / um duelo de personalidades / estas estranhas, antigas, verdadeiras realidades / e continuam a me chamar / elas continuam a me chamar / continuam a me chamar / elas continuam a me chamar” (Dead Souls – 1979).
O seu ainda pequeno público recebe a mensagem; a canção é forte, dramática. A poesia disseminada pela canção desafia seus pensamentos, os faz viajar para um lugar incrivelmente distante: suas consciências pouco reveladas – é lá que estão suas dores esquecidas, as culpas presentes – e prazeres desconhecidos.
NAQUELE TEMPO
35 anos se passaram desde 1979. A Guerra Fria ditava as regras do jogo político de então. A Humanidade, refém da polarização ideológica, política e econômica EUA-URSS, acreditava na promessa de uma hecatombe nuclear, felizmente nunca cumprida. O levante punk estava em pleno andamento contra o rock superestrelado e suas contradições. Os Sex Pistols foram a melhor piada de Malcolm MacLaren. Em meio a tudo isso, o Joy Division, após alguns nomes que não pegaram, mas agora ostentando um definitivo, a princípio de extremo mau gosto, tirado de um dos muitos horrores praticados pelo nazismo, sobretudo contra os judeus, neste caso, reduzidos a meros objetos de satisfação sexual. E, é em meio a toda essa triste ironia que o Joy Division lança, em 14 de junho, Unknown Pleasures, o álbum que sintetiza de modo dramático a alma conflituosa de um poeta que exprimiu, creio eu, apenas uma parte de um vasto poço de perguntas sem resposta, e lutas travadas na inquietude de alguém a procura de algum conforto existencial, coisa que Ian Curtis não conseguiu. Havia uma inimiga, interna, silenciosa (a epilepsia) – “homenageada” em She’s Lost Control – a qual daria um outro destino a trajetória de Ian Curtis.
1979 representa, seca e matematicamente, o fim de uma década de mudanças profundas. Esses anos doentios, de extremos de toda ordem, sobretudo políticos e sociais, registram o sepultamento de utopias possíveis, ao menos em teoria, em Woodstock, Monterey e festivais afins. The dream was over. A cinzenta Manchester tinha algo para mostrar. E não era sonho.
Em meio ao levante punk e o hedonismo apolítico das discotecas, a década de 70 dançou. E é nesse ambiente caótico, ao som de Sex Pistols, Buzzcocks, David Bowie, Iggy Pop; contracultura, cultura alemã, e toda sorte de crises de toda ordem, em seu quarto, Ian Curtis decide que quer cantar. O resto é História.
O PACTO
Ian Kevin Curtis nasceu em Manchester, Inglaterra, em 15.06.1956, em um ano em que o rock and roll “não duraria mais que alguns verões”. Desde cedo, a música já fazia parte de sua vida. O talento para a poesia foi surgindo a medida em que o garoto crescia. Curtis absorvia rápido suas influências. Assim, fica fácil encontrar traços delas nas composições que deram ao Joy Division o rótulo de pós-punk. Mas, o tempo de encarregou de conferir a banda o status correto
O nome Joy Division, definido após algumas escolhas, pode, a princípio, parecer uma piada de extremo mau gosto. Naquele final de década, quando o levante punk tentava fazer o rock voltar ao chão, nomes grotescos, irreverentes, chulos ou não, eram a tônica. Mas, o que fora escolhido para a banda na qual Ian Curtis havia sido convidado para ser o vocalista e performer, nasceu do sórdido fato histórico, do tempo da Segunda Guerra Mundial, quando mulheres, sobretudo as judias, eram recrutadas para satisfazer a fome de sexo de militares nazistas, além de alguns prisioneiros privilegiados.
Com a formação definitiva, respaldada pelo pacto firmado entre os quatro amigos, que encerraria a banda, caso um dos integrantes a abandonasse ou morresse, Unknown Pleasures, logo de início, considerado um dos melhores álbuns de estreia da História, conquista corações e mentes, inclusive a arrogante crítica musical britânica. O disco, cuja arte da capa produzida por Peter Saville, um brilhante artista gráfico, baseada em um estudo de astronomia, se refere a “morte” de uma estrela, captada através de um medidor de pulsos, e que rivaliza em popularidade com as capas de Abbey Road (The Beatles), Animals (Pink Floyd), Nevermind (Nirvana), Electric Ladyland (The Jimi Hendrix Experience), entre outras.
DEPOIS DE TUDO
Ao lado de artistas talentosos mortos precocemente, como Nick Drake (1948-1974, Jeff Buckley (1966-1997) e Amy Winehouse (1983-2011), Ian Curtis é um daqueles personagens de carreira meteórica, não obstante o enorme talento para traduzir em música poemas de tal densidade, aliados a uma profunda melancolia, além de certo sarcasmo ao tratar de temas existenciais, não necessariamente apenas amor e sexo, cuja amplitude ganha contornos pessoais naqueles que se deixam envolver pelos climas soturnos das músicas presentes nos dois álbuns – Unknown Pleasures (1979) e Closer (1980) – e no póstumo Still (1981). Ao contrário de ícones do rock, como Freddie Mercury, John Lennon, Jim Morrison, Elvis Presley e Michael Jackson, cujas mortes ocorreram quando já eram mitos incontestáveis e, dessa forma, comoveram o mundo inteiro, o suicídio do cantor do Joy Division teve repercussão tímida. Por outro lado, nos mais de 30 anos seguintes a sua morte, o mito Ian Curtis foi (e continua) sendo construído aos poucos, e por fãs que sequer eram nascidos quando a banda ainda estava limitada a Europa, sem tempo para conquistar a América, na continuação de uma British Invasion,o que, decerto, aceleraria o culto à memória daquele poeta de 23 anos. Talvez tenha sido melhor assim, pois Curtis “escapou” da espetacularização de sua tragédia, transformada em business e lendas pré-fabricadas para vender revista.
Cumprindo o pacto, Bernard Summer, Stephen Morris e Peter Hook, membros sobreviventes do Joy Division, encerraram a banda para instaurar uma nova ordem.
Texto publicado na 3ª edição da revista “Gatos & Alfaces“, Maio 2014
Genecy Souza, de Manaus, AM, é Livre Pensador.
Possui textos publicados na revista digital PI Ao Quadrado e na revista impressa Gatos & Alfaces.