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Corria o ano de mil novecentos e vinte e dois, e eu não sabia, mas vim a saber depois. Que naquele ano da graça. Em Lisboa havia uma praça. Onde todas as tardes se sentava uma pessoa. Que mais tarde o mundo trataria com a primeira maiúscula: Pessoa. Fernando era o prenome daquele homem. E me parece que no meio tinha também Antônio Nogueira. Mas a outros nomes o homem também respondia: Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Bernardo Soares… Entre outros tantos. Cada um com seus encantos. E ele se sentava no banco que se via. E escrevia como se apenas a escrita sem vaidade, ao seu mundo tivesse a única validade. E eram seus escritos feitos de poesia. E para ele outro mundo não existia. Naquele tempo de bondes e cafés cheirando a tabaco e chás ferventes. Éramos todos seres vivos viventes. Tão felizes que mostrávamos a felicidade nos dentes. Tempos antigos e muito diferentes. E naquele ano de e naquele lugar cativo. Sentava o poeta ainda vivo. E escrevia. Tudo aquilo que sentia e vivia. Sentei eu então ao seu lado quieto. Tentando me distrair sem perturbar aquele homem inquieto. Que vestia um sobretudo e um chapéu de abas largas. Que entre suas horas não tão vagas. Também achava de ser inventor e empresário. E segundo se sabia era até astrólogo e publicitário. Dizem que até traduzia poesia e fazia dramaturgia. E que tudo o que ele produzia. Tinha a alma de um poeta universal. E sabia como nenhum outro usar sua pena colossal. Depois de algum tempo sem lhe dirigir a palavra. Respeitando o silêncio necessário à sua lavra. Criei aquela coragem que apenas poetas e loucos conhecem por inteiro. E chamando-o pelo nome ainda um tanto arteiro. Perguntei-lhe se conhecia uma tal Tabacaria. Uma que eu via. Das “janelas do meu quarto, do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é, e se soubessem quem é, o que saberiam?”. E depois de um tempo calado. Ergue os ombros e a cabeça o poeta, e feito um cavalo alado. E responde, como se não existisse meu eu: “Vivi, estudei, amei e até cri, e hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu”. Recolhido à minha pequenez cadavérica fiquei em silêncio profundo. Porque sei que nada neste mundo, de Deus e sem qualquer deus a me socorrer. Não teria eu nenhum Santo ou Demônio a me socorrer. E assim, um tanto cabisbaixo, mas ofegante por um encontro inusitado. Pergunto, como quem quer saber do tudo que lhe foi ensinado. Se a tal Tabacaria era um lugar ou um estado. E então responde o poeta sorrateiro. Molhando a pena da caneta tinteiro. “À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, e à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.” Pasmo e silencioso como um aprendiz, que eleva tudo aquilo que seu mestre diz, olho ao homem por trás dos óculos de aros grossos e debaixo da gravata alinhada, e vejo uma tristeza aninhada. Tusso como disfarce de minha insensatez, peço desculpas pela minha estupidez. E por fim ainda quero saber sobre aquela Tabacaria, a quem pertence e o que está escrito na tabuleta da porta. E conclui o poeta, que não importa, porque “o dono da Tabacaria chegou à porta (…) Ele morrerá e eu morrerei. Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos. A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também. Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve à tabuleta, e a língua em que foram escritos os versos.” Envergonhado da minha ignorância suprema, “movo-me para fora do soco”, como me movi um ano depois, quando revisitei Lisboa. E novamente encontrei o Poeta sentado na mesma praça. E então lhe perguntei se algo queria. Porque então eu poderia lhe compreender. E ele me disse, até como se me pedisse: “Não: não quero nada, já disse que não quero nada”. Ainda tentei um abraço, mas reagiu: “Não me peguem no braço! Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho”. Me afastei, porque conheço um pouco do gostar da solidão. De amar estar só na escuridão. Mas ainda pude ouvir, no meio dos barulhos dos bondes de Lisboa: “Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo…E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!”.
(Homenagem ao maior poeta da Língua Portuguesa, com perdão de Camões)
15/05/2024
Barata Cichetto, Araraquara – SP, é o Criador e Editor do BarataVerso. Poeta e escritor, com mais de 30 livros publicados, também é artista multimídia e Filósofo de Pés Sujos. Um Livre Pensador.
Gostei demais dessa.
Aliás, gosto de garimpar pérolas nesse site – e são tantas que muitas me passam despercebidas.
Esta é uma série, que terá um texto por mês. O próximo é com Baudelaire.
Alberto Caeiro, digo, Antônio Nogueira; digo, Bernardo Soares; digo, Álvaro de Campos; digo, Ricardo Reis; digo, enfim, Fernando Pessoa, estão devida e merecidamente homenageados, assim como os leitores/frequentadores deste site. Camões não há de se importar. Quem sabe, se ele e Pessoa fossem contemporâneos certamente ficaria muito orgulhoso.
Nos “próximos capítulos”, como bem ilustra a página central desta seção (ou “secção” como prefere meu amigo Luís Roxo), estarei entrevistando outros poetas mortos. Baudelaire já foi entrevistado, e é o próximo!