Atualizado em 29/09/2024 as 16:24:02
Nesta funesta noite, fale-me um pouco de mim. Sobre minhas experiências, minhas ausências e dependências. Fale-me de mim como se fosse eu mesmo a comentar. Sobre minhas obras, sobre minhas cobras e meus lagartos, sem pena nem piedade, sem maldade nem fidelidade. Fale-me de mim como se eu fosse outro, qualquer um que tenha morrido, que tenha sofrido, que tenha sido por ter ido. Como se não estivesse à minha frente, como se eu não fosse gente. Como se eu fosse apenas um poema, um problema, ou até um sistema que inventaram de criar. Conte-me como se fosse eu a lhe perguntar. Sobre o que eu não pude escutar, como não soube entender. E como se eu estivesse tão longe que não pudesse escutar. Mas, não, não precisa gritar. Fale-me ao meu ouvido. Sobre como fui atrevido, sobre como tenho sobrevivido, e sobre como tenho morrido, todos os dias ao despertar. Fale em voz alta, porque agora me falta a audição. Conte-me sobre minha perdição, a rendição e a atual condição de um poeta sem ganho, escritor fanho, que não tem ganho para lhe sustentar. Fale-me sobre como é suportar e fingir não se importar com minhas manias esquisitas, minhas falsas conquistas, e sobre idiotas e artistas que tive que suportar. Aliás, fale-me sobre lavar minhas cuecas cheias de bosta, que no fim é uma aposta para de mim se libertar. Fale-me de mim como se eu fosse um morto apodrecido, como se eu tivesse que ter ido, antes mesmo de ser esquecido. Como se eu nunca tivesse acontecido. Fale-me de mim como se nunca fosse me esquecer, ao menos até o escurecer. Fale-me de mim como se eu fosse me enfurecer por de mim falar. Fale-me de mim como se eu nunca fosse me calar. Fale-me de mim como se não houvesse um amanhã, e como se não soubesse de meu ontem. Como se eu não tivesse sido um nada, a não ser um buraco na escuridão. Um túnel no fim da luz. Apenas uma fenda, um rasgo no tecido de sua realidade. Apenas um sonho, triste e enfadonho, na sua noite de pesadelo. Fale-me, apenas fale-me e cale-me. Como se fosse a última concubina do Universo, a rainha do meu verso. Fale-me como o perverso, um réu confesso, que lhe tragou a alcova de trapos e de roupas lhe deu farrapos. Confesse-me seu desejo, aquele que eu sempre vejo ao ver-te despertar. Fale-me de mim, nesta noite astuta, madrugada prostituta, como se eu fosse o pai de suas filhas, caminhando nas suas trilhas e carregando fardos de maravilhas. Fale-me de mim como se eu fosse o primeiro, o último e o terceiro, como se eu fosse seu Janeiro, embora tenha chegado a Dezembro. Fale-me do que eu não lembro, antes de Setembro, como se Fevereiro não fosse o Carnaval. Fale-me de mim, como se fosse assim, um ano sem calendário, palavra sem dicionário, e uma letra que não existe no abecedário. Fale-me de mim como conta um pesadelo numa noite tenebrosa, uma síncope nervosa ou uma praga dolorosa. Fale-me de mim como se nunca tivesse conhecido meu início, meu meio e meu fim. — Fale-me de mim, antes que de mim eu mesmo me esqueça!
10/06/2024
Música: Arnaldo e A Patrulha do Espaço: “Curte o Meu Barato (Sr. Empresário)”
Barata Cichetto, Araraquara – SP, é Criador do BarataVerso. Poeta e escritor, com mais de 30 livros publicados, também é artista multimídia e Filósofo de Pés Sujos. Um Livre Pensador.