Atualizado em 22/07/2024 as 21:09:46
Uma autobiografia que lidasse honestamente com as críticas legítimas à sua liderança na Covid teria sido uma leitura fascinante. Mas Fauci não escreveu esse livro. Em vez disso, às vezes ele parece estar reescrevendo sutilmente o passado para colocar a si mesmo e sua agência sob a melhor luz. Em outros pontos, ele se baseia em pesquisas duvidosas ou desacreditadas para defender suas políticas e declarações. Em relação às acusações mais sérias contra ele, Fauci opta por não dizer nada.
James B. Meigs
City Journal
17/07/2024 16:17
Na reunião de 1996 da Sociedade Internacional de AIDS em Vancouver, um grupo de pesquisadores apresentou os resultados de um estudo muito aguardado. Os cientistas testaram o AZT, o primeiro medicamento aprovado para combater o vírus da imunodeficiência humana (HIV), em combinação com dois medicamentos antivirais mais recentes. O HIV é uma infecção particularmente traiçoeira. Quando o AZT ou outros medicamentos antivirais eram administrados individualmente, o vírus logo encontrava uma maneira de escapar. Mas quando os três medicamentos foram prescritos juntos, algo quase milagroso aconteceu: a terapia combinada suprimiu o HIV a níveis indetectáveis, mesmo em pacientes com AIDS avançada. E o vírus não voltou.
Anthony Fauci estava sentado na plateia naquele dia. O médico nascido no Brooklyn havia ingressado nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês) como pesquisador em 1968 e começou a se concentrar na AIDS em 1981, logo após a nova e desconcertante doença surgir entre homens gays em Nova York e Califórnia. Em 1984, quando Fauci foi nomeado diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (NIAID, uma divisão dos NIH), ele fez do desenvolvimento de medicamentos eficazes contra o HIV um dos principais objetivos da agência. Foi “uma busca longa, tortuosa e gradativa”, escreve Fauci em sua nova autobiografia, On Call: A Doctor’s Journey in Public Service (“De plantão: a jornada de um médico no serviço público”, em trad. livre). Doze anos depois, “a AIDS não era mais uma pena de morte inevitável”, ele escreve.
Em retrospecto, aquele teria sido um bom momento para Fauci se aposentar de seu cargo federal. Se ele tivesse escolhido aquele momento para voltar à prática privada ou ingressar em uma escola de medicina de renome, hoje seria lembrado como um dos maiores líderes de saúde pública do século XX. As terapias contra o HIV que ele defendeu controlaram a epidemia de AIDS e salvaram dezenas de milhões de vidas em todo o mundo. Mas Fauci permaneceu em seu papel no NIAID por quase três décadas. Durante esse tempo, ele teria mais sucessos, incluindo o combate a ameaças emergentes como Ebola e Zika. Mas também acumulou mais poder institucional, presidindo vastos orçamentos de pesquisa e tornando-se cada vez mais isolado de opiniões divergentes ou críticas.
Fauci finalmente se aposentou aos 83 anos em janeiro de 2023, após cinco décadas nos NIH. Deve ter parecido um momento propício para escrever suas memórias e fazer uma procissão de despedida. A imprensa celebrou amplamente Fauci por sua liderança durante a pandemia de Covid-19. No livro, ele escreve que suas constantes aparições na mídia sobre a Covid — junto com suas bem divulgadas diferenças com o presidente Donald Trump — o transformaram “em um herói instantâneo para milhões de americanos que me viam como um médico bravamente defendendo a ciência, a verdade e a tomada de decisões racionais”. Em suma, Fauci tornou-se algo como um santo secular, pelo menos em círculos progressistas. Sua imagem logo se juntaria às de George Washington, Thomas Edison e Martin Luther King na National Portrait Gallery (Galeria Nacional de Retratos de pessoas notáveis americanas). E bonecos bobblehead (aqueles que balançam a cabeça) e colecionáveis de Fauci estavam disponíveis em lojas de presentes requintadas em toda parte.
Claro, os conservadores ainda vilificavam Fauci como o arquiteto dos lockdowns da Covid. Alguns jornalistas e cientistas continuaram investigando as conexões entre sua agência e pesquisas perigosas de ganho de função no Instituto de Virologia de Wuhan (China), onde muitos acreditam que a pandemia teve início. E o inimigo de Fauci no Capitólio, o senador do Kentucky Rand Paul, prometeu continuar realizando audiências investigando os erros e supostos acobertamentos dos últimos anos de Fauci como czar da saúde pública. Mas essas investigações pareciam destinadas a desaparecer, junto com a pandemia, permitindo ao ex-chefe do NIAID desfrutar da sombra e água fresca da aposentadoria. Fauci tinha todas as razões para pensar que sua autobiografia seria recebida com elogios gratos. E isso tem sido em grande parte o caso. (“Fauci mereceu sua corrida da vitória”, escreveu o New York Times.)
Leitores mais céticos, como eu, perceberão que as memórias de Fauci passam por cima dos aspectos mais sombrios de seu legado na Covid. Durante os 18 meses desde que deixou o NIAID, uma série de divulgações públicas devastadoras deixou claro como Fauci e outros altos funcionários da saúde enganaram o público, distorceram descobertas científicas, evitaram investigações legítimas e esconderam evidências importantes sobre a possível origem da Covid. Graças à investigação incansável de legisladores, pedidos de Lei de Acesso à Informação de jornalistas e pesquisadores, e estudos de cientistas céticos, a visão crítica do legado de Fauci na Covid ganhou tanto peso quanto detalhes granulares desde que ele deixou o governo e começou a trabalhar neste volume. Chame isso de má sorte.
Uma autobiografia que lidasse honestamente com as críticas legítimas à sua liderança na Covid teria sido uma leitura fascinante. Mas Fauci não escreveu esse livro. Em vez disso, às vezes ele parece estar reescrevendo sutilmente o passado para colocar a si mesmo e sua agência sob a melhor luz. Em outros pontos, ele se baseia em pesquisas duvidosas ou desacreditadas para defender suas políticas e declarações. Em relação às acusações mais sérias contra ele, Fauci opta por não dizer nada.
No entanto, para um leitor que conhece os bastidores, a autobiografia toma a forma de uma tragédia épica: como o jovem pioneiro Fauci, que lutou tão heroicamente contra a AIDS, se transformou no velho Fauci imperioso, que usou seu poder e influência para suprimir o debate científico, desacreditar cientistas céticos e implementar políticas restritivas para as quais havia pouca justificativa científica? Para os estudantes de políticas públicas, o livro levanta uma questão relacionada: como evitar que servidores públicos brilhantes e dedicados como Fauci se transformem em conspiradores maquiavélicos?