Meu Encontro Com o Eu de Augusto dos Anjos e as Flores do Mal de Charles Baudelaire

Atualizado em 26/07/2024 as 18:28:00

Charles Baudelaire é considerado por muitos estudiosos, como uma das (muito) possíveis influências assumidas por Augusto dos Anjos em sua poética, passando por Giacomo Leopardi, Schopenhauer, Edgar Alan Poe, Herbert Spencer e até mesmo Goethe.

O Eu de Augusto dos Anjos

Um dia encontrei Eu. Mas não estou falando de mim. O meu Eu. Ou qualquer coisa assim. Estou falando do “Eu” de Augusto dos Anjos. Foi logo depois de “As Flores do Mal”, de Baudelaire. E a ambos encontrei numa Biblioteca Publica, porque não tinha dinheiro para comprar livros.

Foi por volta de 1974 ou 73. Eu tinha quinze ou dezesseis anos, e caminhava a pé por quase quatro quilômetros da minha casa, no bairro do Jardim Popular em São Paulo, até a Biblioteca da Penha. E fazia isso todo sábado, porque na semana o trabalho de office boy e a escola me tomavam todo tempo. Lá eu ia, e ficava quase o dia inteiro, procurando coisas novas. E meu interesse maior era sobre a poesia, a qual eu já vinha me dedicando desde os onze ou doze anos. Tinha lido alguns clássicos, como Castro Alves, que não me interessou muito — eu só iria me apaixonar pela poesia do baiano muitos anos depois, quando realmente li com vontade e me apaixonei pelo épico “Navio Negreiro” —. Ao contrário de Álvares de Azevedo, que com sua “Lira dos Vinte Anos”, me encantou.

Desde o início, nunca gostei — não sei se gostar seja a palavra certa, porque nunca consegui mesmo — de escrever coisas bonitinhas, cheias de flores, amores e cores. Minha temática sempre era a dor, a tristeza e ao desamor, e então seria mais do que fatal meu encontro com Augusto e Charles. Um da Paraíba outro de Paris. E embora não fossem nem conterrâneos, nem exatamente contemporâneos (Baudelaire morreu em 1867, Augusto nasceu quase vinte anos depois, em 1884, e possivelmente nunca tenha lido a obra do francês, mas para mim, o encontro desses dois poetas, com suas poesias pesadas, fortes, que cortavam como uma navalha, que tinham a energia vital da dor, da pujança e da tristeza, me calaram fundo.

Creio que primeiro foi Augusto, e lembro o que me chamou a atenção inicialmente, já que nessa época meu interesse, baseado nas minhas andanças noturnas no centro de São Paulo, eram as prostitutas. E não estou certo se foi nessa tal Biblioteca ou numa revista que li um poema chamado “O Lupanar” (Este lugar, moços do mundo, vêde: / É o grande bebedouro coletivo, /Onde os bandalhos, como um gado vivo, Todas as noites, vêm matar a sede!”. O fato é que depois de ler isso, fui atrás de saber e ler mais sobre Augusto dos Anjos. E assim conheci “Eu”.

Não eram muitas as poesias constantes do livro, que vim a saber posteriormente, foi o único publicado em vida pelo autor, que morreu aos trinta anos, como muitos morriam na época, por tuberculose e outros problemas relacionados ao pulmão. Li o livro inteiro, ali sentado no silêncio daquela Biblioteca. Numa única tarde. E a cada poema mais crescia minha emoção. E parecia que meu coração sairia pela boca. “Psicologia de Um Vencido” (“Já o verme – este operário das ruínas – / Que o sangue podre das carnificinas / Come, e à vida em geral declara guerra.”). Todos aqueles poemas, que falavam de vermes, da mortandade, da banalidade e da fragilidade da vida, e de como espirito humano é fraco e insensível, tinha um efeito bombástico na cabeça daquele então moleque, deslumbrando com a cultura poética mais crua.

A cada poesia, a cada estrofe, a cada verso, mais eu mergulhava no universo poético do paraibano. E mais queria, e mais fundo ia. Ali eu encontrava também os ecos do que eu escrevia, que ia contra a corrente do modernismo e da poesia concreta que todo poeta “marginal” na época usava. Eu odiava aquela coisa sem pé nem cabeça, sem a sonoridade da rima, sem emoção, sem significado — até por isso fui limado, eliminado, de qualquer referência antológica à tal “Geração Mimeógrafo”. Eu escrevia com rimas, mesmo que na época desconhecesse a métrica, e achava que a verdadeira poesia tinha que ser assim, trabalhando com a respiração e a entonação. Até tentei escrever umas daquelas porcarias concretas, mas nunca saiu nada que prestasse, e então rasguei. Nunca publiquei nada daquelas merdas concretas modernistas.

Agora, a poesia de Augusto, aquilo sim, dava gosto de se ler. Quem não se emocionaria com versos como: “Mas tu não vieste ver minha Desgraça! / E eu saí, como quem tudo repele, / – Velho caixão a carregar destroços” (“Solitário”), ou aquele poema que sempre foi o que mais me encantou: “A Esperança”. (“A Esperança não murcha, ela não cansa, / Também como ela não sucumbe a Crença, / Vão-se sonhos nas asas da Descrença, / Voltam sonhos nas asas da Esperança.”), que o poeta encara da forma peculiar, que ela, a tal esperança, só termina com a morte: “E eu, que vivo atrelado ao desalento, / Também espero o fim do meu tormento, / Na voz da Morte a me bradar; descansa!”. Não há como não sentir o desespero do vate nesses versos.

Com temáticas ligadas ao pessimismo e à melancolia, predileção pelo vocabulário ligado à ciência e à medicina, a inclinação do eu lírico para a morte, além de retratar o amor com muito ceticismo, a obra de Augusto me marcou sobremaneira desde o “descobri”, sedimentando sobremaneira meu pensamento poético e a minha forma de ver e descrever o mundo, e especialmente a humanidade que o habita, de uma forma pouco simpática, porque no fundo, como ele escreve em “Idealização da Humanidade Futura”: “E, em vez de achar a luz que os Céus inflama, / Somente achei moléculas de lama / E a mosca alegre da putrefação!”.

A poesia de Augusto não se enquadra em nenhuma escola literária, e é sempre pessimista, cósmica, paradoxal, mórbida e angustiante, escrita com um vocabulário científico misturado com tristeza profunda. Uma combinação insólita, jamais vista antes, constantemente relembrando a finitude humana nos termos da decomposição da matéria, da carne putrefata que encerra o tempo do vivente. A estética da podridão, da agonia, da deformação, onde o amor e o prazer, são apenas a luta orgânica das células, para sobreviver ao destino inexorável que é alimentar os vermes decompositores. E isso é dito nos versos de Augusto dos Anjos de maneira dura, cheia de excessos e hipérboles, numa métrica rígida, outra característica do Poeta. “Fator universal do transformismo. / Filho da teleológica matéria, / Na superabundância ou na miséria, / Verme – é o seu nome obscuro de batismo. ” (O Deus-verme).

Por fim, até hoje a obra de Augusto dos Anjos me acompanha: poucos anos depois do meu primeiro contato, pude comprar uma edição de “Eu e Outras Poesias”, que sempre participou comigo de muitas epopeias humanas e desgraças desumanas. Nos idos de 2004 aquele exemplar me foi roubado, o que me causou uma tristeza muito grande. Não maior a que me causou o destino de “As Flores do Mal”.

Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos (Sapé, 20 de Abril de 1884 – Leopoldina, 12 de Novembro de 1914) foi um poeta brasileiro, identificado muitas vezes como simbolista ou parnasiano.Todavia, muitos críticos, como o poeta Ferreira Gullar, preferem identificá-lo como pré-modernista, pois encontramos características nitidamente expressionistas em seus poemas. É conhecido como um dos poetas mais críticos do seu tempo, focando suas críticas ao idealismo egocentrista que se emergia em sua época, e até hoje sua obra é admirada tanto por leigos quanto por críticos literários.

Versos Íntimos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de sua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

Também inicialmente “descoberto” na Biblioteca Pública, “As Flores do Mal” chegou na minha intimidade antes de “Eu”. Vadiando pelo centro de São Paulo, e antes de descer à Boca do Lixo”, onde putinhas de dentes cariados me esperavam de braços e pernas abertos, entrei na Livraria Brasiliense na Rua Barão de Limeira, e encontrei um exemplar. Era um volume um tanto grosso, com uma capa branca, apenas com uma arte geométrica na capa em preto, publicado pela Difel. Como nessa época eu podia contar com meu próprio dinheiro comprei. E desisti das putas para ir para casa e devorar o livro.

Logo de início Charles avisa: “A tolice, o pecado, o logro, a mesquinhez / Habitam nosso espírito e o corpo viciam, E adoráveis remorsos sempre nos saciam, Como o mendigo exibe a sua sordidez.” e segue sua maldição bendita, de falar de putas parisenses (“Porias o universo inteiro em teu bordel, / Mulher impura! O tédio é que te torna cruel”). Confesso que foi um choque, minha primeira leitura de “As Flores do Mal”. Ali estavam temas como, a expulsão do paraíso, o amor, o erotismo, a decadência, a morte e o tempo, e o exílio e o tédio. Uma poesia densa e intensa que condensa toda sujeira de Paris do século 19. .” Diante de mim estava a poesia mais forte que eu já tinha lido. Poemas como “As Litanias de Satã” (“Ó tu, o Anjo mais belo e também o mais culto, / Deus que a sorte traiu e privou do seu culto, / Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!”), o “kyrie eleison” cristão dedicado ao chifrudo de pata fendada. Ou como em “Uma Carniça”: “Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos / Numa bela manhã radiante: / Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos, / Uma carniça repugnante”).

Um parêntese: “As Flores do Mal”, foi publicado em 1857, exatamente no dia 25 de Junho, que para quem não sabe — claro que quase ninguém sabe — , dia em que eu nasci, 101 anos depois. Em 1958, exato ano do meu surgimento no planeta, foi lançada no Brasil uma edição comemorativa, que o que trago comigo até hoje, comprado num sebo lá pelos idos do século passado, porque a tal edição original da Difel foi criminosamente queimado por uma megera fanática, que me chantageou até que eu queimasse o livro herege, satânico, que continha um poema como “As Litanias de Satã”. Até hoje não me perdoo pelo crime que cometi. Por causa de uma vadia. Que nem sabia. O que era poesia.

Claro que por esse e outros motivos, o livro foi logo violentamente atacado pelo renomado jornal francês Le Figaro e recolhido poucos dias depois sob acusação de insulto aos bons costumes. Baudelaire foi condenado a uma multa de 300 francos (reduzida depois para 50) e o editor a uma multa de 100 francos e, mais grave, seis poemas tiveram de ser suprimidos da publicação, condição sem a qual a obra não poderia voltar a circular. Em 1860 sai a segunda edição de “As Flores do Mal”.

Minha Edição Preciosa de "As Flores do Mal" (Edição 1958)

Para mim, um não crítico literário, mas apenas um poeta e escritor, que nas lides profundas e várzeas imundas, sem qualquer formação, reconheço convergências e divergências entre Augusto dos Anjos e Baudelaire, e vejo muitos pontos em comum. Por exemplo, quando fala de autofagia, Baudelaire, no soneto “Um Fantasma”, compara-se a um cozinheiro de apetites fúnebres: “Eu cozinho e como o meu coração”). E Augusto não fica atrás. No soneto “Solilóquio de Um Visionário”, escreve: “Comi meus olhos crus no cemitério, Numa antropofagia de faminto!”. Há muitos pontos convergentes nas duas obras, mas para mim, sei apenas que “As Flores do Mal” e “Eu”, estão juntinhas há muitos anos, lado a lado na minha estante. E considero e reconheço, que muito da minha poesia, tanto na forma como na essência, a esses dois poetas, que junto a Pessoa, Poe e Lou Reed, construíram — há quem diga que destruíram — minha poesia.

Charles Baudelaire é considerado por muitos estudiosos, como uma das (muito) possíveis influências assumidas por Augusto dos Anjos em sua poética, passando por Giacomo Leopardi, Schopenhauer, Edgar Alan Poe, Herbert Spencer e até mesmo Goethe.

09/05/2024

"As Flores do Mal" Com Notas do Autor

Charles Pierre Baudelaire (Paris, 9 de Abril de 1821 — Paris, 31 de Agosto de 1867) foi um poeta, ensaísta, tradutor e crítico de arte francês. É considerado um dos precursores do simbolismo e reconhecido internacionalmente como o fundador da tradição moderna em poesia, juntamente com Walt Whitman, embora tenha se relacionado com diversas escolas artísticas. Sua obra teórica também influenciou profundamente as artes plásticas do século XIX.

O Veneno

Sabe o vinho vestir o ambiente mais espúrio
Com seu luxo prodigioso,
E engendra mais de um pórtico miraculoso
No ouro de um vapor purpúreo,
Como um sol que se põe no ocaso nebuloso.

O ópio dilata o que contornos não tem mais,
Aprofunda o ilimitado,
Alonga o tempo, escava a volúpia e o pecado,
E de prazeres sensuais
Enche a alma para além do que conter lhe é dado.

Mas nada disso vale o veneno que escorre
De teu verde olhar perverso,
Laguna onde minha alma se mira ao inverso…
E meu sonho logo acorre
Para saciar-se nesse abismo em fel imerso.

Nada disso se iguala ao prodígio sombrio
Da tua saliva forte,
Que a alma me impele ao esquecimento num transporte,
E, carreando o desvario,
Desfalecida a arrasta até os umbrais da morte!

Eu e Outras Poesias
Luís de Camões
Poesia
Editora Poetura, 2024
14 X 21 cm
292 Páginas

Barata Cichetto, Araraquara – SP, é Criador do BarataVerso. Poeta e escritor, com mais de 30 livros publicados, também é artista multimídia e Filósofo de Pés Sujos. Um Livre Pensador

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3 Comentários
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Dinho Ferrarezi
Dinho Ferrarezi
10/05/2024 14:08

“Entonação e respiração”, junção perfeita para a poesia milagrosa. Eu costumo chamar de milagre quando a escrita sobre a dor se torna prazer.

Vinnie Blues
Vinnie Blues
09/05/2024 13:03

Que belo tema hein ! Adorei a matéria. Do Baudelaire infelizmente o meu “Flores do Mal” foi na leva da inquisição particular da minha casa, porém do Augusto dos Anjos ainda possuo algumas coisas. Meu poema preferido é O Morcego. Parabéns 👋👋👋👋

Barata Cichetto
Administrador
Responder a  Vinnie Blues
09/05/2024 13:28

Contei a tragédia sobre o meu “As flores do Mal”, mas depois comprei outro. Esses dois são muito responsáveis, não tanto pela forma, em eu ser o que sou como poeta.

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