Imagem Criada Com IA (Dall-E)/Barata Cichetto

Meus Amigos, Como Eu, São Muito Estranhos

Atualizado em: 14/11/2024, as 10:11

Há um ditado, baseado, creio, na Física, que diz que polos diferentes se atraem, e os iguais se repelem. Isso pode ser um fato na Ciência, mas, quando entra em cena a misteriosa e inexata ciência humana, a coisa muda radicalmente de figura. E assim, os iguais se atraem e os diferentes se repelem. E não falo apenas de relacionamentos amorosos de algum tipo, ou melhor, falo sim, porque meu assunto são amizades, e essas são relacionamentos amorosos que não envolvem o ato sexual necessariamente, mas que, em alguns casos, sim. Afinal, é bem melhor transar com um amigo ou amiga do que com um inimigo.

Dias desses, falando com um de meus amigos — aliás, um adendo importante: sempre fui de poucos amigos, literalmente —, falei-lhe sobre outro que tinha peculiaridades, como ter mais de setenta anos, ter vivido com a mãe recém-falecida a vida inteira e que se isolou do mundo, vivendo sozinho no velho apartamento e se entupindo de maconha. O primeiro, que se reconhece como muito estranho, me disse algo como: “Eu sou muito estranho, mesmo, mas, perto desse cara, sou o sujeito mais normal do mundo.”

Essa conversa foi o pavio aceso para eu me lembrar de que sempre e invariavelmente só tive amigos estranhos, ao menos aos olhos da maioria e seus conceitos sociais, e assim me debrucei nas minhas lembranças de cerca de seis décadas para destrinchar. Talvez alguma teoria esdrúxula de Freud ou Jung tenha explicação para o fato de eu estar sempre próximo e apenas travar amizades com pessoas que podem ser consideradas como “estranhas”, “esquisitas”, “funs”.

A primeira coisa de que lembro sobre essa história de amigos estranhos remonta aos meus seis para sete anos de idade. No meu primeiro dia de aula, eu não queria entrar na escola, minha mãe pediu ao Diretor, o severo “seu” Rodolfo, dono de um Gordini 64 bordô, que fizesse algo. Como naquela época era comum o uso de “certa violência educacional”, ele puxou o cinto e disse: “Vai entrar ou não vai?” Claro que entrei, chorando, e me colocaram sentado — as carteiras eram aquelas para duas pessoas — ao lado de um sujeito de cabelinho cortado “à la reco”, ou seja, corte militar, e que usava umas calças azuis, largas e enormes. Acabamos ficando amigos, e o Zé Torquato, esse o nome da fera, era de família de crentes da Congregação Cristã, que, naquela época, proibia que os fiéis sequer tivessem televisão em casa. Na casa dele até tinha, porque o pai não era, mas os membros da família, ao entrarem na sala onde o patriarca assistia à tevê, se viravam de costas. Fomos amigos até uns quinze anos de idade, e a amizade se extinguiu naturalmente, porque todas as vezes que eu ia à casa dele, a mãe dizia que ele não estava, que estava na igreja fazendo algo. Até que cansei e nunca mais fui. Mas ficou a lembrança dele por um gesto: ao enterrar um cachorro que era nosso, se perdeu e foi atropelado na frente da casa dele. É, Zé Torquato era um cara estranho, mesmo!

Quando eu tinha uns doze anos, acabei travando outra amizade, com outro sujeito estranho. A cabeleireira de minha mãe tinha um filho quase da minha idade, e morava defronte à minha casa. A coisa já começou estranha, porque eu morava naquela mesma casa há seis ou sete anos e nunca tinha visto o sujeito, que, aliás, tinha os mesmos prenomes de batismo que eu: Luiz Carlos. Comecei a frequentar a casa dele, mas logo percebi por que nunca o tinha visto: a mãe, a tal cabeleireira, era uma maluca e não deixava o rapaz sair. Ele vivia trancado num quarto que cheirava a suor, mas tinha muitos livros e discos, que aparentemente eram as formas que a mãe o mantinha como uma espécie de prisioneiro feliz. Ele tinha muitos discos de rock, o que estreitou ainda mais nossa amizade, mas era fissurado em Segunda Guerra Mundial. Sabia até a cor das cuecas de Hitler e seus generais, coisa que nunca me interessou.

Tenho muitas histórias a contar sobre esse meu segundo amigo estranho, que, aliás, ganhou o apelido na rua de “Huguinho”, um pato meio retardado de um desenho animado da época, mas vou contar as que mais me marcaram. A primeira é ainda da nossa adolescência: ele tinha uns quinze anos, e, como eu já era meio íntimo na casa, entrava pelo portão e o chamava. Ele saía na janela do quarto e me mandava subir. Num belo dia, fiz isso, mas escutei gritos na casa, e a mãe berrou de dentro do quarto: “Ele não vai, porque está apanhando!”. A segunda já nos vê adultos, com cerca de vinte anos de idade, e trabalhávamos na mesma empresa. Embora eu o tivesse indicado, “Huguinho” se sobressaiu e alcançou antes de mim um cargo muito bom, o que lhe possibilitou comprar uma famosa Brasília amarela, que, em 1978, era um luxo. Ele comprou o carro com seu próprio dinheiro e estava radiante, e assim, dias depois, colocou rodas “tala larga”, que, claro, foram um sucesso com a molecada da rua. Um ou dois dias depois, ele aparece com o carro sem as tais “talas” e, ao ser perguntado o que tinha acontecido, disse que a mãe tinha mandado ele tirar. Nesse dia, eu lhe dei uma comida de rabo: “Porra, o carro é teu, tu comprou com teu dinheiro. Que merda tua mãe tem que implicar com isso?” Ele só abaixou a cabeça e não respondeu.

Não sei se aguento ficar sem contar outras tantas histórias do “Luis Huguinho”, que em termos de estranheza decerto ganharia o troféu de campeão. Então… Certo dia, combinamos de ir ao cinema, no centro de São Paulo, e para tanto cabulamos aula. Estávamos, portanto, com nosso material escolar, e ao entrar na sala, era costume colocarmos na poltrona entre nós esses materiais. Entramos na sessão no meio do filme, e assim a intenção era assistir até o final dessa, esperar o intervalo e daí ver até a parte em que entramos. No intervalo, e como naquela época era natural fumar em qualquer lugar, fui ao saguão fumar, e como ele não fumava, ficou sentado. Quando se iniciava a outra sessão, retornei ao lugar onde estávamos e não o encontrei. Achei que tinha ido ao banheiro, algo assim, e me concentrei no filme. Quando chegou a parte que já tínhamos visto, passei a procurá-lo. Estava certo do lugar onde tínhamos sentado, mas nada dele. Fui ao banheiro e até pedi ajuda ao “lanterninha”, mas nada. Quase uma hora depois, terminou a sessão, que era a última, e tive que sair. Fiquei à porta do cinema olhando cada rosto até tudo se apagar. Nada. E aí me dei conta de que, junto com meu material de escola, estava minha bolsa, onde tinha minha carteira, dinheiro etc., e eu não tinha sequer como pagar um ônibus para voltar para casa, e que em poucos minutos sairia o último para o subúrbio distante onde morava. O desespero, claro, me bateu, e por sorte encontrei um passe de ônibus amarrotado no fundo do bolso da calça. Dia seguinte de manhã, ele aparece na minha casa, com a maior cara de pau do mundo, e disse que foi embora ainda no meio da sessão porque eu tinha demorado muito. Preciso falar mais sobre esquisitice?

Acho que preciso, sim… Alguns anos após isso, ele resolveu casar, contra a vontade da mãe, que tinha ela mesma escolhido a “preferida”. A que ele escolheu era mãe solteira, que a tal da dona mãe dizia para todo mundo que era virgem, porque tinha tido parto cesariana… Juro que ela dizia isso. Bem, a gente tinha uma espécie de pacto de que quem casasse convidaria o outro para padrinho. Fiquei muito feliz quando eles estiveram na minha casa e me convidaram, mas um ou dois dias depois ele me procurou para dizer que a mãe não aceitou, porque queria um comerciante rico da rua, que depois se ficou sabendo que era amante dela. Não preciso dizer que lhe dei um esporro e não fui ao casamento, além de ficar vários anos sem falar com ele. Fui encontrá-lo apenas uns dez anos depois, quando tinha acabado de se separar da esposa e estava inchado, de fato deformado. Bebemos e rememoramos nossas lembranças, mas ele me parecia a personificação da tristeza. Coisa de um ou dois anos depois, mudei-me para Belém do Pará, e ainda lá fiquei sabendo que ele tinha morrido, aos quarenta e dois anos. E minha primeira reação foi: “Huguinho morreu de tristeza!”. É, Luis Huguinho era um cara estranho, mesmo!

E, sim, ainda hoje tive e tenho amigos estranhos: como um quase irmão que, depois de vinte anos, foi embora sem nem dizer até logo, após anos de bebedeiras, Nietzsche e rock progressivo; outro também, que conheço há quinze anos e sequer sei como é o rosto; e ainda outra que, depois de ser uma filha, quase uma irmã, desapareceu após dez anos, ou simplesmente deixou a personagem. E outros tantos, quase amigos, quase estranhos e muito esquisitos, que me chamaram de amigo, de irmão, compraram meus livros e depois sumiram. No que devo acreditar? Em sina? Em maldição? Em bênção? Não, em nada disso acredito, pois, afinal, esquisitos ou não, estranhos ou não, são e sempre serão, mesmo que tenham ido para outro lugar, esses os meus amigos.

Eu pretendia falar de todos os meus amigos estranhos, esquisitos, funs e etc., mas creio que esses são o bastante e o suficiente. Antes e depois deles foram outros tantos, cada um com suas peculiaridades e esquisitices próprias, mas como disse no início, nunca tive muitos amigos, mas todos são e foram esquisitos. Como eu!

11/11/2024

Barata Cichetto, Araraquara – SP, é o Criador e Editor do BarataVerso. Poeta e escritor, com mais de 30 livros publicados, também é artista multimídia e Filósofo de Pés Sujos. Um Livre Pensador

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Celso Moraes F
Celso Moraes F
12/11/2024 10:12

Esses textos nostálgicos têm uma particularidade deveras curiosa: por mais pessoais que sejam, o leitor sempre encontra algum ponto de convergência rumo às suas próprias memórias e ocorre uma identificação. Lembrei de vários esquisitões amigos que tive ou tenho, e quem sabe um dia eu escreva a respeito deles…

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