Minhas Deusas nas Minhas Pernas

Minha História Com as Deusas

Atualizado em: 01/01/2025, as 06:01

Nem sempre fui amante dos felinos, de fato eles só passaram a fazer parte do meu cotidiano bem tarde. Nos anos 1960 e 70, períodos da minha infância e adolescência, eram raras as casas e famílias que tinham gatos. A predominância era pelos cachorros.

Desde muito tenra idade, quase que desde meu nascimento, eu convivia com cachorros em cassa. O primeiro chegou ainda poucos meses depois do meu nascimento, e até comigo dividia o “chiqueirinho” (que na época era um imenso caixote de madeira) e a minha mamadeira. Era o Lulu, um bichinho lindinho, de porte médio e uma pelagem vasta e branca, que o fazia parecer o ser mais fofinho do planeta, mas que era uma das criaturas mais ferozes que conheci. Ele ficou conosco durante quinze anos, e como era o costume na época, preso a uma corrente de ferro no quintal, sem jamais ter permissão de adentrar a casa.

Lizzy Borden (Foto: Barata)

Além desse, tive outros cachorros, como minha amada Pat, que por motivos que não vem ao caso agora, não terminou seus dias ao meu lado, mas deixo essas histórias caninas para outra oportunidade, já que o assunto é: gatos. E como escrevi acima, como eles praticamente não existiam nas famílias, existindo até por parte da maioria delas uma ojeriza a eles, eu não tinha qualquer referência positiva sobre eles, e acabava, meio que por influência familiar a afirmar que não gostava deles.

Até que um dia, aí por volta de 1985 ou 86, aluguei uma casa de fundos, um cômodo e cozinha, e ao chegar lá me deparei com uma moradora antiga: uma gata, feia e maltratada, quase sem bigodes, suja, e que insistia em ficar por ali, mesmo que nós inicialmente a expulsássemos. Com o tempo fui amolecendo e ela foi assim chegando mais e mais. Passei a dar-lhe nacos de carne, pedaços de pão, etc. E assim ela foi ficando e ficando.

Picote (Foto: Barata)

Tinha épocas que a Xany (o nome que lhe dei) sumia para dar cria, e como as ruas eram seu lugar, ela aparecia grávida duas vezes por ano, e a gente ficava curioso sobre o que acontecia com a prole. Só muito depois fui entender ao ler sobre o assunto, sobre o fato de que as gatas, ao contrário das humanas, poderiam gerar filhos diferentes de diferentes machos, e assim as mamães os escondiam para protegê-los da investidas dos machos não-pais. Era uma ou duas semanas e ela voltada, mais magra, mais suja e mais feia, e ficava ronronando na porta da cozinha, que era a única da casa.

(Aliás, sobre ronronado, um detalhe: como eu desconhecia, acreditava que a Xany tinha algum problema respiratório, coisa assim, por emitir aqueles “roncos”. Só muitos anos depois fiquei sabendo que o ronronar é um som baixo e contínuo que os gatos produzem para se comunicar com outros animais e com as pessoas. O ronronar é um sinal de que o gato está feliz, relaxado, aconchegado e seguro.)

Picote e Lizzy Borden (Foto: Barata)

Depois de poucos meses que estávamos na casa, a Xany começara a me acompanhar todas as manhãs até o ponto do ônibus quando eu saia para trabalhar e também a estar sempre no portão à noite quando eu chegava do trabalho. Foi ficando cada vez mais intima e a adentrar mais a casa, ao ponto de que, em um de seus partos escolher nosso guarda-roupas para dar cria, o que causou um acesso de fúria de minha então esposa, que com razão, a expulsou de dentro de casa. A partir daí, ela pareceu entender, e não mais entrava, ficando na porta à espera de eu sair, ou de ganhar seus nacos.

Passado algum tempo, tirei férias do trabalho e fui passar uma semana na casa de meus pais na Praia Grande. Quando saímos me despedi dela, percebendo que, mais uma vez, ela estava grávida. Quando voltamos, ao adentrar senti sua falta, que não estava me esperando, mas quando parei defronte a porta, sobre a qual havia uma pequena laje, escutei um miado e olhei para cima: era ela, e como podia ver apenas sua cabeça, não percebi que ainda não tinham nascido seus filhotes.

Lizzy Borden (Foto: Barata)

Como estava cansado da viagem de ônibus, fui deitar-me para descansar, deixando a porta encostada. Mal deitara escutei seus miados, que era muito alto e um tanto diferentes. Achei estranho, me levantei e ao abrir a porta tomei um susto: a Xany estava deitada sobre um pequeno tapete diante da porta, e olhou para mim com olhos pedintes e dolorosos, me mostrando a sua situação: havia um filhote, que estava nascendo na direção contrária, ou seja, estava com a cabeça ainda dentro dela. Meu primeiro pensamento foi: “Eta, ela comeu a cabeça do gato!” , mas em segundos percebi a realidade, e sabia que o filhote iria morrer enformado e ela com ele. Aquele seu olhar do tipo: faça alguma coisa, seu idiota… Eu tentava pensar, mas não sabia o que fazer. Nunca fiz parto de nada, muito menos de gatos, o que faço. Resolvi agir, me abaixei e passei a massagear a parte de baixo de sua barriga, percebendo a cabeça do filhote. Ao mesmo tempo girava o corpinho. Em segundos ele saiu, ileso, e logo atrás dele outro. O primeiro era um gato preto, e o outro de uma cor que nunca tinha visto: era praticamente cor de rosa.

Foi a partir daí que muitas coisas mudaram não apenas para mim, mas para a Xany: arranjei uma caixa de papelão e coloquei debaixo do tanque, que era daqueles antigos de cimento e muito grande, e ela, ao contrário das crias anteriores, passou a cuidar deles. Além do mais, todas as noites quando eu chegava e abria o portão, ela corria, pegava com a boca um dos filhos e vinha ao meu encontro, me exibindo. Rapidamente voltava e repetia o ritual com o outro. Eu entendi claramente o recado.

Minhas Paixões (Foto: Barata)

Dias depois, creio que umas duas semanas, num final de semana caiu um temporal e eu estava almoçando quando escutei seu miados de socorro novamente. Abri a porta e ela, toda encharcada corria em direção ao local onde estavam os filhotes. Tinha estourado o sifão do tanque e inundado a caixa de papelão. Corri, apanhei a caixa e levei para dentro, sob os protestos da minha mulher, que ainda não tinha revogado a proibição da Xany estar dentro de casa. Improvisei uma cama com roupas velhas, enxuguei os pequenos e a mãe os limpou. Ficaram ali por um bom tempo, até já terem condições de sair para o quintal.

Mas… Bem, eu tinha apenas um filho nessa época, que tinha um daqueles triciclos de plástico e que ficava andando no quintal. Um belo dia, para meu horror e espanto, o percebo perseguindo os pequenos tentando atropelar. Ele ria muito do desespero deles. Claro que ralhei, dei uma sonora bronca, mas como sabem, a maldade – ao contrário do que muitos pensam – é um traço inerente às crianças, e passados poucos dias escuto suas gargalhadas e saio ao quintal: ele tinha pegado os filhotes e jogado no tanque cheio de água, e gargalhava com o desespero deles. Não preciso dizer que nesse dia a boa psicologia de umas palmadas na bunda foi aplicada.

Minhas Duas Paixões (Foto: Barata)

Diante disso, e temendo pela saúde dos bichinhos, acabei dando-os à minha então sogra, que tinha gatos em casa. (O que agora me traz à lembrança um fato anterior a este, que conto a seguir). A Xany ainda ficou mais algum tempo, mas quase não aparecia mais. Parecia cada dia mais triste, mas inda ia me esperar no portão à noite. Ficou até… Bem, até uma noite cheguei e ela não estava. Comentei com minha mulher e ela me disse que tinha levado ela para um local distante, porque ela tinha novamente dado cria dentro do guarda roupas. Fiquei furioso e a fiz me acompanhar até o local para onde tinha levado. Já era noite e não a encontrei. Até retornei ali nos dias seguintes, mas nunca a encontrei.

Os fatos ocorridos antes da Xany e que também foram muito importantes para despertar minha paixão pelos felinos, ocorreu alguns anos antes, precisamente no final de 1981, quando eu começara a namorar a que viria ser minha esposa. A mãe dela tinha muitos gatos, o que a principio me incomodava, pelo “preconceito” que eu tinha contra eles, que narrei acima. Logo no primeiro dia, eu estava parado na porta sala olhando para o quintal e observei um gato preto, enorme, que estava parado me olhando fixamente. Minha então futura sogra interveio e me disse para ter cuidado, porque aquele gato era muito bravo e costumava atacar as pessoas que não conhecia. Não dei muita importância… Até que o desgranhento deu um salto em minha direção, e teria me feito um estrago caso eu não tivesse fechado rapidamente a porta.

Picote Dormindo Com Frio (Foto: Barata)

Mas o interessante foi que, depois disso, o tal brabão passou a agir diferente comigo. Um dia, numa das próximas visitas minhas, estava eu sentado no sofá com minha namorada e ele estava parado na porta, novamente me olhando fixamente. Fiquei apreensivo com o que ele faria, baseado na minha primeira experiência com ele, e mais ainda quando ele começou a avançar em minha direção, dando alguns passos, parando e me encarando. Eu só pensava: vai embora sujeito, não vem não. E para minha total surpresa, ele se aproximou mais e mais e… Se deitou inicialmente ao meu lado no sofá. Minutos depois… Pulou no meu colou, se enrolou, ronronou… E dormiu um bom tempo. A futura sogra ficou inconformada, porque dizia ele nunca tinha feito isso com ninguém, sequer com ela e os outros moradores da casa. A partir daí, todas as vezes que eu ia até lá, ele repetia isso. E mesmo quando eu almoçava e já ais íntimo da casa ia me deitar na cama da minha namorada, ele se deitava enrolado na minha barriga.

Corrigida a minha linha do tempo felina, saltamos ao presente século, cuja primeira década foi para mim muito tumultuada, com a separação da minha primeira esposa e de duas outras, cujos relacionamentos foram curtos, durando pouco mais de um ano cada um, e muito traumáticos. No final de 2009 conheci a Bell, minha atual esposa, e poucos meses depois fomos morar juntos. Logo nos primeiros dias, resolvemos adotar um gato. Numa pet shop ao lado do supermercado onde fazíamos compra tinha gatos para adoção e me encantei com uma pequenina, toda pretinha, que também pareceu gostar de mim. Pegamos ela e levamos para casa, mas eu não sabia que ela era bem doente. Miava sem parar dia e noite, sentia muito frio e poucos dias tempos começou a ter diarreia que não cessava. Não tínhamos dinheiro para veterinário, e assim procurei a pet shop que me recomendou dar vermífugo. Essa foi a pior coisa que poderia acontecer, e eu só viria a saber bem mais tarde: não se vermifuga animais com diarreia. E isso acabou por matar a bichinha. Foi muito triste, eu tentei de tudo, até bater ração no liquidificador e injetar na boca dela. Nada adiantou e ela morreu nas minhas mãos, com aqueles mesmos olhares da Xany. Foram apenas cinco dias, e eu me senti arrasado. Ah, outra coisa: a primeira coisa que dei a ela foi leite. Nunca façam isso: o leite de vaca pode matar, já que é muito forte. Esqueçam aquela bobagem dos desenhos animados de gatos bebendo leite.

Lizzy na Caixa de Papelão (Foto: Barata)

Chegamos agora ao ponto crucial, e o que foi o maior fator motivador deste relato: Lizzy Borden e sua filha. Passados poucos meses depois que a Janis (esse era o nome da pretinha que morreu), decidimos adotar outra. E queríamos que fosse fêmea e pretinha também. Entrei em outro pet shop que tinha uma gaiola com muitos filhotes para adoção. Logo vislumbrei um, que de cima me parecia preta. Abaixei e ao me aproximar ela veio até a grade. Ela me escolhera. Levei-a para casa e ela foi logo, sem que ninguém ensinasse, fazendo necessidades na caixa de areia e se aconchegando debaixo de nossos cobertores. Nos conquistou (nos vários sentidos dessa palavra) de imediato. Esfolado e escolado com os erros inconscientes da outra, corri e fui lhe dar vacinas e tudo que era necessário.

O nome era para ser, e até foi por poucos dias. Isis, que é bem óbvio, por ser a Deusa-Gato egípcia, mas minha enteada deu uma bronca, dizendo que seria o nome de sua futura filha. Eu não tinha como saber isso, mas para não causar celeumas, mudei para Lizzy Borden, nome de uma banda de rock americana, por sua vez inspirada em Lizzie Andrew Borden, uma serial killer. Por quê? Não sei, mas pelo que lembro foi que Lizzy era parecido com Isis e lembrava Luiz e Izabel.

ERREI!
Uma correção, fato motivado por comentário: Esqueci de mencionar no texto, que naquele momento eu “sabia” que era Isis o nome da Deusa, como mencionei no texto. Só alguns anos depois, por intermédio de uma amiga, a Joanna Franko, que tinha um gato de nome Bastet, que descobri meu engano. 

A Gatona e as Gatas (Foto: Barata)

Logo ela se tornou o que é uma característica felina: a Rainha da casa. Todas as atenções e vontades dela eram aceitas e respeitadas, e como minha mulher trabalhava fora e ficávamos eu e Lizzy sozinhos o dia todo, eu passei a lhe dar todos os mimos, o que até despertou algum ciúmes da Bell. Ela dormia na nossa cama, o que por vezes compreensíveis era constrangedor, passava os dias dormindo em meu colo enquanto eu trabalhava, coisas assim.

É sabido que entre gatos, como na maior parte do reino animal, não existe o que entre humanos chamamos de fidelidade e eles transam com muitos. Mas, não. Não a Lizzy. Quando ela tinha de por volta de sete meses ficou no cio, e na casa em frente tinha um gato que sempre invadia minha casa e “roubava” a comida dela. Às vezes eu ralhava e outras deixava. Quando ela ficou no cio, percebi que nenhum outro gato, o que seria comum, se aproximava da minha casa, apenas ele, e um dia presenciei ele expulsando à unhadas um “concorrente”.

A Icônica Pose da Majestade (Foto: Barata)

O que presenciei foi um ritual muito curioso. Ele subia no muro e ela atrás. Ela ficava na parte de baixo do muro sentada e imponente, e ele na parte mais alta, com um súdito, encolhido, como se pedisse permissão à majestade. (Cheguei a registrar isso em fotografia). Em seguida, os dois pulavam para dentro do quintal, namoravam e depois se deitavam no cimentados, relaxados. (Só faltavam acender um cigarro). Isso se repetia várias vezes ao dia e durante uns três dias e aí eu já ria e brincava com ele indo comer a comida dela. Depois disso ele simplesmente desapareceu, nunca mais o vi. Não sei o que a mulher que era sua dona fez com ele. Sinistro.

Quando chegou o tempo dela dar cria, eu parecia um pai aflito com a primeira filha indo para a maternidade e nas noites anteriores improvisei uma maternidade felina ao lado da minha cama, com uma boa caixa e panos para que os ela e seus futuros filhotes pudessem ter conforto. Na noite que percebi que, pela sua inquietação, seria o do nascimento das crianças, não dormi. Passei a noite olhando para ela e acompanhando o trabalho de parto. Com o dia quase amanhecendo aconteceu e acompanhei todo o processo, incluindo o primeiro banho, o corte do cordão umbilical, etc.

Eram duas meninas felinas, e bem diferentes. Não na pelagem (ah, sim, esqueci-me de dizer que, embora na parte de cima ser preta, ela é do tipo mourisco que intercalam preto, e outros tons de cinza), mas nas formas. Enquanto uma era idêntica a da mãe, um tanto “achatada” e alongada a da outra era enorme e arredondada. Dei-lhes o nome de Nina Cooper e Sarah Hagen (Alice Cooper e Nina Hagen).

A Nina era muito tranquila e doce, já a outra… Bem a Sarah sempre foi esperta e danada demais. Ainda muito pequena se recusou ao leite materno e ia no pote de ração da mãe comer. A gente percebi que lhe doía mastigar, porque seus dentes ainda era muito insipientes, mas ela mastigava e chorava. E voltava a mastigar. Outra coisa que achávamos incrível: ainda também bem pequena, ela escalava a cortina do quarto, caminhava pelo varão, ia até a ponta e dali pulava sobre um guarda roupas que tínhamos que tinha mais de dois metros e meio. Dali, chegava até a beirada e… Voava sobre nós na cama. Literalmente voava e parecia um morcego. Eu brincava que ela não era um gato, mas um filhote de Batman. A Nina, bem a Nina só dormia e comia, era a quietude em forma de gato.

Picote, a Filha do Batman Escalando a Cortina (Foto: Barata)

Até que um dia a Nina desapareceu. A casa em que morávamos era um porão, grande e alto, mas ainda assim um porão, e pela forma da construção seria impossível colocar telas de proteção, e assim elas ficavam no quintal, tendo eu o cuidado de colocar chapas de alumínio no portão para impedir que ao menos as pequenas saíssem para a rua. Entretanto, ao sair para o trabalho numa manhã, minha mulher não percebeu que a Nina passara por ela e fora para a rua. Entretido com meu trabalho, só fui perceber no início da tarde, quando passei a procurá-la por todos os lugares possível, sem encontrar. Continuei a procurá-la durante mais uns três dias e acabei desistindo, e torcendo para que ao menos alguém a tivesse encontrado e adotado.

Na noite do quinto dia depois do sumiço da Nina, minha esposa disse que a dona da nossa casa, que morava na parte de cima lhe afirmou que há dias escutava o miado de gato pequeno no terreno que ficava nos fundos. Munido do celular como lanterna corri para lá, e cheguei a ouvir, mas não tinha como entrar naquele terreno porque o mato era muito alto, e sabia-se ali era a morada de uma cobra coral. Não preciso dizer que naquela noite não dormi, torcendo para o dia clarear logo. Fui várias vezes até o portão do terreno e a escutei miar. Pensava na fome, no frio e nos perigos que ela enfrentava, especialmente com a tal coral.

Assim que o dia amanheceu, corri para o local e a encontrei: dormia numa caixa de cimento, aquelas de abrigo de hidrômetro. A recolhi. Estava lotada de picão, aquele mato que gruda, tinha pulgas e estava apavorada. Levei-a para casa, banhei e higienizei, levando-a até a presença da mãe e irmã… Mas, pasmei… Elas a rejeitaram, e passaram a expulsá-la dos potes de comida e água. A Sarah chegou até a bater nela. Fiquei sem saber o que fazer, a não ser separá-la das outras para evitar que a ferissem. Minha mulher dizia que era natural e que logo elas aceitariam. Depois de três dias, como as coisas não se resolviam entrei em pânico, temendo maiores danos a ela, falei com uma cunha que se prontificou a adotá-la. E assim foi feito. Confesso que às vezes me arrependo de ter sido precipitado, porque fatalmente teriam se readaptado, mas me consolo e fico feliz por saber que é muitíssimo bem tratada. Ela é a mãe exata, talvez até um pouco mais peluda. Sinto saudades dela.

(Foto: Barata)

Uma história que envolve Sua Majestade Lizzy Borden, primeira e única, e que de outras tantas se destaca: como não tínhamos como impedir a saída dela para as ruas, eu vivia preocupado, com carros e os perigos dos tal terreno da cobra. Então estava sempre atento, mas claro que seria impossível vigiar o tempo inteiro. Acredito que todos conheçam a predileção de gatos por lugares altos, e as encrencas que muitas vezes os envolvem, aos seus donos, bombeiros, vizinhos etc.

Como disse acima, o local que morávamos era um porão acima do qual se erguia um sobrado, que tinham um beiral de cerca de meio metro na última laje para fora. Um dia, já anoitecendo, e percebendo que ela não aparecia em casa (ela tinha o costume de passar o dia na rua, mas sempre retornando para casa no entardecer), comecei a procura-la. Eu a chamava e ela respondia miando, mas eu não conseguia identificar de onde vinha… Até que olhei para cima e lá estava a Rainha: na última laje, que ficava a cerca de cinco metros de altura. A primeira coisa que pensei, e nunca consegui entender, foi como ele tinha conseguido chegar ali, já que era muito alto e não tinha acessos para uma escalada.

(Foto: Barata)

Tentei de todas as formas chegar até ali, e foram horas tentando, até que já tarde da noite desisti. E ela continuava miando e estava certamente com medo. Decidi encerrar as tentativas, para no outro dia com claridade tentar o resgate. Até tinha esperança de que ela achasse o mesmo caminho que a levou até lá e descesse. A noite estava fria, e nem preciso falar que não dormi a noite inteira, pensando que ela estaria com frio, fome e medo.

Quando clareou o dia, e cogitando chamar os bombeiros, que embora saiba que atendem a esses casos, imaginei que demorariam muito, por terem outras emergências. Sai batendo nas portas dos vizinhos atrás de que tinha uma escada longa o suficiente, o que de fato é bem raro. Encontrei uma, mas era uma escada de madeira, muito velha e mostrando sinais de podridão. Levei até o local e ela dava exatamente na ponta do beiral onde Sua Majestade, nesse ponto muito apavorada, se encontrava, e comecei a subir. A escada balançava de um lado para o outro (ou era eu quem tremia de medo?), mas fui subindo. Quando cheguei ao topo, estiquei o braço para pegá-la, mas como estava com medo ela correu para a ponta oposta. Fiquei em pânico, porque não tinha como chegar até ela, e temi por ela cair de lá, o que seria fatal.

(Foto: Barata)

Foram longos minutos de espera, comigo chamando, até que ela se aproximou e eu consegui agarrá-la e comecei a descida, que para quem tem pânico de altura como eu é bem pior do que a subida. Tinha dois pensamentos. Um era: vou cair dessa merda e me esborrachar no chão junto com ela, e o outro: calma, faltam apenas uns cem degraus… Nunca respirei tão alivado na minha existência do que quando pus meus pés do chão. A partir daí a vigilância e o bloqueio de qualquer coisa que pudesse servir de escalada para ela subir foram redodrabos.

Moramos ainda alguns anos nesse porão, no bairro de Guaianases, em São Paulo, e quando nos mudamos, minha mulher quis arranjar um gato. Ela ainda sonhava com um gato preto. Macho. Arranjamos um, o Zappa (perceberam minha predileção por nomes de astros do Rock, né?!). Era lindo e cresceu muito rápido se tornando um gato enorme… Mas, como bom macho-alfa desde que chegou passou a dominar a casa, expulsando as meninas do pote de ração, e até da caixa higiênica, sem contar que as perseguia o tempo inteiro. Assim fui percebendo que elas não mais dormiam na nossa cama, ficaram arredias comigo e pareciam bem tristes. Era um inferno. E assim, com muita tristeza senti que tinha que fazer algo, e a única coisa a ser feita era arranjar outra morada para ele. E assim foi feito, e tudo voltou ao normal.

Picote e Ayn Rand ((Foto: Barata)

Outra coisa que ia esquecendo: o nome da Sarah Cooper logo foi mudado, por uma coisa interessante: sabem quando a gente não associa a pessoa ao nome? Que acha que o nome não combina com a personalidade da mesma? Pois é, com ela foi assim. Como foi castrada ainda antes do primeiro cio – isso vim a saber bem depois – seu crescimento ficou retardado e ela quase não cresceu, e como ao contrário da mãe e da irmã tem pelagem curta, parece que é minúscula, por isso passei a chamá-la de “Picote” (não lembro de onde, mas me veio isso à cabeça e comecei a chamar assim). E como ela é bem gordinha às vezes a chamo de “Gordinha”. E mais recentemente, de poucos anos, em que pensei até que ela tinha algum problema nas cordas vocais, porque não a ouvíamos miar, ela passou dar berros, miar muito alto, especialmente quando quer alguma coisa. E aí a chamo de “Goela”.

Em 2018 mudamos de cidade, de São Paulo para Araraquara e, claro, com elas. Inicialmente numa casa, e três anos depois para um apartamento, que foi providencialmente telado antes de nos mudarmos, para a segurança delas e em respeito aos outros moradores. Acredito que seja pelo espaço diferente, ou pela idade delas (a Lizzy tem 14 anos, a Picote 13), mas o fato é que o comportamento delas, especialmente da Lizzy mudou. Se antes ela sempre dormia na minha cama, no meio das minhas pernas, e a Picote nas minhas costas, passou ar um apego muito maior, com elas o dia inteiro junto a mim.

A Lizzy, exercendo todo o poder que uma majestade felina tem, passou a me tratar como sua efetiva propriedade, a ponto de às vezes eu a chamar de “Elizabete III”. Nem ao banheiro posso ir sem ela, que fica deitada nas minhas pernas comigo sentado no vaso sanitário. Coisas assim. Ademais, como depois da Fraudemia, quando passei a quase nunca sair de casa, quando preciso, ela fica junto à porta berrando, aponto de outros condôminos comentarem que sabem quando não estou em casa, porque a escutar berrar. Outra coisa que chama a atenção nela, é que quando entro em casa ela olha para mim e coloca (juro) um tom de interrogação no miado, como se quisesse saber aonde fui ou se estou bem. Eu respondo onde fui e que estou bem.

Tem horas que fico olhando para elas e pensando: elas estão idosas – se bem que gatos criados em casa, longe dos perigos das ruas, vizinhos maldosos e brigas, durem bastante -, e logo irão embora, e já sofro por antecipação pela perda. E também pelo pensamento oposto, sobre como elas ficariam, especialmente a Lizzy que é totalmente apegada a mim, se acontecer de ir primeiro. Sempre brinco com a Bell sobre isso, que se eu morrer primeiro e ela tiver a oportunidade, possivelmente se enfiará no caixão junto.

Bem, há muito tempo preciso contar essas histórias, é uma questão de justiça para com os gatos, que sim, são deuses, majestades, e se é que isso existe, de Universo que conspira para que algo nos aconteça e que nos mude para melhor, foi isso que aconteceu em todas as histórias contadas, especialmente na presença da Lizzy, que transformou-me certamente num ser humano melhor, no sentido que prezo mais a mim mesmo, que tenho mais respeito aos outros, mas não acima de mim mesmo; que consigo exercer minha individualidade de forma mais clara. Assim creio, estou me tornando um ser melhor, quase no patamar felino. Ou seja, estou me transformando num gato.

Arte Feita Com Auxilio de IA, Sobre o Meme, do Qual é Desconhecido o Autor Original

Para terminar, apenas relembrando um cartoon que sempre aparece na Internet, e que retrata a cena em que há Deus, um cão e um gato. Sentado em seu trono Deus pergunta ao cão se ele foi bom cachorro e este responde que sempre foi obediente a seu dono, que corria atrás de bolinhas e gravetos. Ao fazer a mesma pergunta ao gato, a resposta é: “Acho que você está sentado no meu lugar!”.

Ah… esqueci de mencionar: nunca usei tatuagem, pois sempre acreditei que para uma era preciso significar algo de muita importância, ter realmente um significado que fosse digno de estar na minha pele até o fim. E apenas em 2015 fiz a minha primeira e única, que era desenho da cabeça de um gato, que foi traçado em cima de uma foto da Lizzy, com as palavras “Rock In Poetry, Fuck’,n’Roll”, como eu defino minha obra poética.

05/09/2024

Atualização de 1/1/2025:

Uma ex-amiga dizia sabiamente que “Gatos são deuses”. Hoje descobri que deuses não são imortais!

Há mais de quarenta anos eu não sabia o que era chorar, desde que Izaura, minha avó, se foi. Nunca mais tinha chorado, mas hoje não teve jeito. Ela se foi deitada na minha cama, se que era na verdade dela… Senti seu ultimo suspiro! Muito triste aqui.

Minha Única Tatuagem: uma foto de Lizzy Borden que editei (2015)

Barata Cichetto, Araraquara – SP, é o Criador e Editor do BarataVerso. Poeta e escritor, com mais de 30 livros publicados, também é artista multimídia e Filósofo de Pés Sujos. Um Livre Pensador

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Daniel Carneiro
01/01/2025 19:42

Entendo bem o luto do amigo, pois já passei por isso muitas vezes (nos meus quase 60 anos, já devem ter passado 20 ou mais gatos pelas casas onde vivi). Se há um Criador, acredito piamente que ele pôs estes companheiros de 4 patas (cães e gatos) na Terra para tornar nossa passagem por este planeta um fardo menos pesado e para nos ensinar o significado do amor incondicional. Pena que tantos humanos ainda não se tenham dado conta disso e continuem a tratá-los como objetos descartáveis.

genecysouza@yahoo.com.br
08/09/2024 17:45

Gatos, cães e humanos sempre renderam ótimas histórias. E a sua com as gatas é mais uma das boas. Eu já conhecia uma parte dessa história devido aos mais diversos relatos ao longo dos anos. Não tenho pegada com felinos, pois nunca tive um bichano para chamar de meu, embora tenha tentado quando criança.
Tenho um cachorro que me foi dado de presente — presente que não desejei, mas aceitei para não magoar pessoas. Dei ao canídeo o nome de personagem do rock. A minha história com esse presente que late e faz arruaças ainda está sendo construída. Espero que ela seja longa, como a sua com os seus felinos.

Genecy deSouza
Genecy deSouza
Responder a  BarataVerso
09/09/2024 10:07

Nós, bípedes, não possuímos a lealdade desinteressada em tempo integral que esses animais nos dedicam. Eles pedem muito pouco pelo amor que nos dedicam. Lamentavelmente, há canalhas que não sabem corresponder a esse amor.

Celso Moraes F
Celso Moraes F
05/09/2024 17:43

Tive que voltar aqui porque esqueci de comentar na inserção anterior que o nome da deusa-gato egípcia é Bastet. Ísis, esposa de Osíris, é considerada a mãe espiritual de todos os faraós, o equivalente à deusa grega Hera.

Celso Moraes F
Celso Moraes F
05/09/2024 17:40

Tremenda viagem esse texto. Se eu fosse juntar todas as histórias minhas com gatos e cachorros, daria um livro bem extenso. Mas não consigo sequer esboçar esses escritos, pois invariavelmente as histórias terminam com a morte ou o desaparecimento dos bichos, o que me entristece sobremaneira só de recordar… Só comento que desde a morte de Tereza (uma beagle linda) em 01/02/2023, eu jurei não ter mais pets, mas por motivos alheios à minha vontade, acabei adotando a pequena Dark, com seus seis quilos de esqualidez, e Risha, que apesar dos 36 quilos acha que é tão minúscula e leve quanto a Dark, o que às vezes rende histórias engraçadas.
O texto mais encantador do site até aqui.

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Plágio é Crime!

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