“Eu moro em mim mesmo. Não faz mal que o quarto seja pequeno. É bom, assim tenho menos lugares para perder as minhas coisas.” — Mario Quintana
Um dia, perguntado sobre o espaço exíguo em que habitava, Mario Quintana disse, diante da surpresa da interlocutora: “Eu não preciso de muito espaço, porque moro dentro de mim”. Essa frase, que li há uns quase 20 anos, ressoou em mim como um mantra, um dogma, algo que eu sempre soube, mas resistia, teimava em não saber. Há tanto de poesia quanto de filosofia e sociologia nela, e eu… Bem… Eu… Sabia disso desde a adolescência, morando com pais possessivos, depois com esposas e filhos idem, que eu me bastava, que qualquer espaço que representasse minha metragem cúbica de um corpo de quase um metro e noventa e magro feito à peste, recheado de esperanças e solidão, me bastava.
Moro dentro de mim, como qualquer um, desde que fui gerado, no ventre materno a contragosto, e assim prossigo, vivendo no ventre de Gaia, também a contragosto – dela. Moro dentro de mim, e estou prestes a acionar o despejo, porque nem eu mesmo mais aguento este morador. Este sujeito, que peida fedido, fala e escreve palavrões como quem respira, e expira, espirra e tosse feito um degenerado. Um infeliz este meu inquilino.
Acredito que devo botá-lo para fora de mim mesmo a pontapés. Justo, para quem mora e não habita, reside, mas não mora… E, afinal, não me paga aluguel. Locatário problema sou eu, a mim mesmo. Ora, bolas, que sujeito chato, que bebe cerveja barata, cospe no próprio prato e não diz bom dia às velhas varizentas do térreo, mas coça o saco na frente da gostosa do 32. Moro dentro de mim e nem condomínio eu pago! Ah, vão se danar, que sou o síndico! Cínico, de fato, clínico nem de rato.
Moro dentro de mim e o serviço de esgoto anda mesmo a desejar. Há tempos não recolhem o lixo, mesmo que eu pague o preço fixo. Há horas intermináveis, há ratos abomináveis dentro do meu habitat. A quem devo reclamar? A mim mesmo ou aos ratos que habitam meu banheiro? Ao síndico, que sou eu, ou às baratas em meu banheiro?
Eu moro dentro de mim, um lugar imensamente pequeno, tão pequeno que não cabe ninguém além de mim mesmo, mas tão imenso que cabe todos os meus grandes amigos, que são tão amigos que não me ousam visitar e devassar minha intimidade, e assim, respeitando minha morada, ficam eles a quilômetros de distância segura.
Eu queria ter outras moradas, como aqueles que moram no mundo. Ou aos outros que moram tudo. Morar no mundo deve ser bom, porque há muitos lugares onde se esconder. Mas se isso parece tudo, tem seus limites, porque um dia esse tal mundo acaba, e ao contrário do meu, particular, chega ao fim. E quanto ao morar em tudo, bem, isso não é nada. Nada comparado ao tudo que tenho morando dentro de mim.
Dentro de mim há muita mobília, estantes, mesas, cadeiras… E livros de poesia e prosa, aninhados e perfilados só esperando a ordem de entrar em guerra aos que ousarem invadir meu território. Meu escritório, meu dormitório. Um exército inteiro de ideias, pensamentos, rimas, fardados com farrapos, velhos trapos, mas elegantes feito um doutor.
Às vezes sinto saudades dos tempos em que morava dentro de outros: filhos, pais, esposas. Especialmente os primeiros. Depois lembro que de dentro deles fui despejado à força, por ordem do ditador bêbado. Foi quando decidi morar apenas dentro de mim. Quanto a eles, não sei onde moram, mas estou certo de que não moram em nenhum lugar, e estão sempre por alugar.
Tem horas que morar dentro de mim é triste, porque tudo parece uma imensidão de quartos e corredores escuros, portas que não abrem e janelas que se fecham. Uma imensa escuridão. Paredes pintadas de preto, lâmpadas queimadas e uma cozinha que tem apenas um fogão que não cozinha e uma geladeira vazia. Trombo em móveis escuros, arranco cortinas de papel crepom preto, tropeço em tapetes feitos de pele humana, e caio de cara no cimento frio.
Eu moro dentro de mim, mas às vezes fica muito apertado o lugar. Seria falta de com quem falar? Seria falta no que pensar? Moro dentro de mim, e é caro o aluguel. Moro dentro de mim, e parece que o espaço é pouco, para quem quer muito, e tem muito pouco. Moro em mim, quarto de menos de dez metros, e que parecem quilômetros para eu me alimentar. E até para cagar, no meu banheiro de mais de dois e menos de três metros até poder mijar.
Mas moro dentro de mim, e morar dentro de si não tem preço, e é bem mais fácil achar o endereço. Basta subir ou descer algumas ladeiras, cheias de casas de concreto e outras de madeiras. Em minha morada não preciso, até chegar, de ônibus ou carro, chego mesmo à pé, com um guarda chuvas na mão, e subo de escada sem segurar no corrimão. A distância é curta a percorrer, e chego à porta de entrada antes mesmo de morrer. E feito botão, mal entro em casa e já saio na janela.
É muito bom morar dentro de mim mesmo, sem contrato de locação, pois me basta, sem papel assinado, um trato de coração. Sem fiador e sem imobiliária. Nada dessa gente ordinária, agiotas, poliglotas e outros idiotas, que cobram caro, e não raro, colocam a gente no olho da rua, como se fosse sua a nossa propriedade, mesmo sem posse ou autoridade. Tolos sem alma que entendem de leis como se fossem reis.
Morar dentro de si mesmo, mesmo que seja um casebre, casa de pau à pique ou barraco de madeira, é tão bom que a gente sente que é um latifundiário morando numa mansão à beira-mar, sem pagar imposto, sem o desgosto da vizinhança, sem barulho de criança e sem síndicos idiotas e prepotentes que se acham prudentes ao proibir que se ande de bicicleta no corredor. Gosto de subir as escadas à cavalo, e para chegar ao topo, não preciso de elevador.
De fato, a morada dentro de mim é um condomínio fechado com várias casas, todas elas em forma de asas. Algumas são pintadas de azul, outras de preto, mas todas as noites se iluminam e ficam transparentes, de formas diferentes. Nelas moram anjos e demônios, santos e putas, todos convivem com a liberdade de serem o que são, mesmo que nada sejam. E é claro que, com em toda vizinhança haja bate-bocas e gritos, mas no final reina o silêncio profundo das incertezas.
Morei em muitas casas, e nenhuma era de minha propriedade. Nunca liguei para comprar uma casa, porque alugando eu poderia estar cada hora num lugar. E assim foi que morei em mais de quarenta ao longo de sessenta. E elas não eram minhas, não apenas como dono, nem eram minhas como morador. Haviam senhorios e senhorias, que se arvoravam não apenas como donos das casas quanto de mim. Chegaram até a me despejar, colocaram-me na rua numa terça-feira de Carnaval, e foi assim, que sem outro local onde morar, resolvi definitivamente mudar para uma que fosse apenas minha.
E foi para dentro de mim o endereço escolhido. Foi doloroso a princípio, pois embora eu não tivesse quase nada para carregar, o caminhão de mudança custou literalmente os olhos da minha cara, porque tinha tanto peso em mim, que foi necessário um guindaste para me carregar até a porta, que, aliás, era muito estreita, e tive que me repartir em pedaços para poder entrar. Mas finalmente entrei, juntei minhas partes e me reconstruí inteiro.
Descrevo minha morada como se fosse assim: um dormitório e um escritório, cinco banheiros, duas cozinhas e oito chuveiros, todos colocados na sala de estar, de seiscentos metros quadrados, que são a morada das minhas gatas. Há também piscina aquecida embaixo da minha cama, sauna atrás do sofá e uma lareira aconchegante que fica crepitando brasas, estalando feito num filme, nos dias em que sinto frio. Tem de tudo nesta morada, e nem preciso pagar a conta de água, porque há uma fonte de água eterna bem no meio da sala de jantar, que eu só uso mesmo para almoçar.
Tem muitas estantes de livros na minha casa, que até parece uma daquelas bibliotecas antigas, onde a gente ia para silenciar, e os livros nela dispostos são tão raros e antigos que até comigo começaram a falar. E todos eles me contam histórias, declamam poesia, fazem relatos históricos, porque na minha casa mágica tudo tem vida, tudo existe de fato. Até minha mobília já aprendeu a falar e alguns móveis, como as cadeiras e outros que têm pernas, já aprenderam até a caminhar. Foram lindos seus primeiros passos!
Outro dia, da minha janela que abre ao contrário, ou seja, da rua para dentro de casa, avistei um homem. Seu nome era Pessoa, com metafísica. Disse ele que vinha da Tabacaria, aquela do outro lado da rua. O homem sorriu, como sorrira o Esteves, este sim sem metafísica, e voltou a caminhar, e quando chegou embaixo da tabuleta, apenas desapareceu, sem antes me dizer que não queria nada, e me pedir seus óculos. É tão bom morar dentro de si mesmo e de dentro da casa poder avistar todos os mundos por uma janela que se abre ao inverso, e por ela enxergar dos versos todos os universos.
Morar dentro da gente mesmo tem um problema, que é o tema, de um sistema, que insiste em me aporrinhar: nem sempre morei apenas dentro de mim, já tive uma mulher, e morava dentro dela. E ela se abria – e se fechava – feito a tal janela, de fora para dentro. E aquecia e esfriava feito uma panela. Era tudo dela. E eu… Bem… Eu a olhava e a comia, feito a comida fria que matava a minha fome, que nem tinha nome, mas decerto sobrenome.
E assim, mesmo assado e cozido, eu a comia, e nela morava, como uma mansão de doze quartos, e tudo me parecia, que era tudo o que eu queria… Mas… O que eu mesmo queria, era morar dentro de mim, num quarto, que fosse como meu parto: um metro quadrado de sangue e dor, que era tudo o que eu queria, e podia, suportar.
Quero agora a eu mesmo despejar, locador e locatário do meu corpo e minha alma que escorregam pelos ralos de um apartamento sem cômodo, incômodo, mas que me permite pelos quartos sujos me arrastar. Moro dentro de mim, habito minha eterna e fugaz morada, última e primeira, e assim hei de morrer, como nasci, a contragosto de quem resolver me ignorar: mãe, pai, irmãos, filhos, esposas… Ninguém… Nenhum deles aceitou comigo morar.
É dentro de mim que moro, e dentro de mim habito,
Sou minha morada eterna, é nela que ainda resisto.
Sem endereço fixo, sem número e sem a residência,
É dentro de minha morada que encontro resistência.
Morar dentro de mim é de todas a melhor habitação:
Nela não pago imposto e é minha toda Constituição.
Na entrada há uma placa onde está escrito “Liberdade”.
E na porta de saída, há outra que indica: “Eternidade”.
17/12/2024
Barata Cichetto, Araraquara – SP, é o Criador e Editor do BarataVerso. Poeta e escritor, com mais de 30 livros publicados, também é artista multimídia e Filósofo de Pés Sujos. Um Livre Pensador.
Texto digno de profunda reflexão, Poeta! Cáustico, forte e sobretudo uma experiência de vida!
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