Passaram-se os dias. Não mais apareceram bandidos para ameaçar os Lao no restaurante ou nas ruas. O ambiente era de aparente tranquilidade. No entanto, a clientela foi diminuindo paulatinamente. As horas de folga de Zé Gatão e dos demais aumentaram. O grande gato aproveitou para caminhar pelo bairro e sondar a situação, conversar com os moradores que no geral o recebiam afavelmente, pois o conheciam desde a adolescência. Além disso, ser amigo da honorável família Lao era um fator determinante para que Zé Gatão fosse tratado sem reservas pelos membros daquela comunidade. O felino acinzentado percebeu que a todos ali viviam sob o domínio do medo! Os comerciantes pagavam proteção ao chefão do crime local! Nada acontecia no Bairro Oriental sem que o chefão tomasse conhecimento. Assim, no meio da semana, um bilhete chegou ao restaurante. Remetente desconhecido. Destinatário: Zé Gatão! A missiva imediatamente foi entregue a seu destinatário! Em poucas linhas, o bilhete informava de que o gato estava condenado à morte. Se os Lao não aceitassem a proposta de vender o restaurante, o estrangeiro que hospedavam no local receberia a visita de Tien Chu En Lai, mestre na arte de matar unicamente com o uso das mãos. Teriam portanto, dois dias para decidir. Os Lao ficaram muito apreensivos e até pensaram em prontamente vender seu estabelecimento! Zé Gatão foi contra! Disse que seria melhor esperar mais um pouco.
Os dois dias se passaram depressa. Ao pôr do sol do último dia, um novo bilhete chegou avisando que às primeiras horas da manhã, Tien Chu En Lai viria eliminar aquele louco forasteiro que ousara desafiar o Crime Organizado! A notícia correu pelo Bairro Oriental como um rastilho de pólvora!
O dia seguinte surgiu escuro. Céu encoberto por nuvens pesadas cor de chumbo. Um vento frio e cortante assobiava nas ruas desertas. Apesar disso, não choveu. Zé Gatão estava de pé diante do restaurante, aguardando…! Uma silhueta surgiu e foi se aproximando lentamente. Era um gato da mesma raça de seus amigos. Seu corpo era sólido e musculoso, mas de proporcional. Estava sem camisa. Envergava uma calça preta justa nas barras, segura por uma faixa de seda da mesma cor. Calçava sapatos leves pretos e meias brancas, no estilo usado por seu povo. Uma faixa vermelha com ideogramas pretos cingia sua cabeça. Sua expressão era séria e ao mesmo tempo calma. Andar seguro, de movimentos suaves e estudados. Era Tien Chu En Lai! Não houve nenhum tipo de diálogo entre os dois felídeos. Tien atacou repentinamente, com tal velocidade e força que Zé Gatão mal conseguiu se desviar do chute lateral que passou a poucos centímetros de sua cabeça. O felino taciturno revidou com uma sequência de chutes e socos rápidos que atingiram brutalmente o corpo de Tien, jogando-o ao solo com estrépito. Velozmente, Tien se levantou. Sua boca sangrava. Um sorriso fugaz brincava em sua face. Disse em um tom de voz calmo e até agradável:
– Vejo que você luta no estilo Chi Ho, no qual Ching Lee é versado.Percebo que você foi um aluno aplicado! Nunca tinham até hoje me acertado com tanta facilidade! Parabéns!
– Não precisamos lutar… Tien!
– Você apesar de estrangeiro parece conhecer bem nossa cultura. Portanto, você sabe a minha resposta! Agora se defenda! Vou pegar pesado com você! E creia, não é nada pessoal. Se fosse só por mim, eu não o mataria. Mas os deveres de um guerreiro valem mais do que a minha vida ou a sua.
Zé Gatão percebeu que não seria possível se entender com aquele felino determinado que em outras circunstâncias poderia ser um amigo. Concentrou-se. Posicionou o corpo, se lembrando do treinamento exaustivo que tivera com Ching. Bloqueou com certa dificuldade a investida de Tien. O Gatão atacou com determinação! Tentou encontrar uma brecha, mas Tien bloqueou chutes e socos, desviando agilmente dos velozes golpes de Zé Gatão. Tien começou a ganhar vantagem sobre o adversário. Zé Gatão ia recuando em uma postura claramente defensiva. De repente, Zé Gatão recebeu um poderoso soco que jogou sua cabeça para o lado esquerdo. Uma joelhada brutal nas costelas o fez se curvar de dor. Um chute lateral animalesco o atirou no chão, estonteado. Tien inclinou-se sobre o contendor caído, o dedo em riste. Ia aplicar um golpe em seu peito desprotegido. Uma técnica conhecida como o TOQUE DA MORTE. Com um grito longo para concentrar a energia espiritual ou Chi, se preparou para desferir o golpe fatal! Neste instante, uma voz autoritária fez Tien voltar-se:
– Pare! – Era Ching que tinha chegado no momento preciso!
– Então o mestre vai substituir o pupilo? Isso é ótimo!
O guerreiro Tien, sorria levemente. Deixou Zé Gatão caído e atacou Ching. Que luta memorável! Enquanto era assistido por vovó Lao e pelos outros, o felino cinzento percebeu surpreendido, a diferença de nível entre ele e seu amigo. Ching era um lutador terrível, habilidoso, rápido e forte. Mal se viam os movimentos dos dois lutadores! Ching aplicou uma saraivada de murros curtos atingindo Tien, tirando-lhe o equilíbrio. Um soco de baixo para cima de Ching lançou o oponente para trás e ele rolou no chão a alguns metros de distância. Contudo, a contenda estava longe do seu término! Dando um salto ágil, Tien se ergueu do solo, para cair junto a Ching, derrubando-o com uma rasteira rápida! Acompanhando a queda de Ching, Tien aplicou no peito do adversário o TOQUE DA MORTE…exatamente sobre o coração! O impacto não pareceu forte! Era como um toque suave do dedo indicador de Tien sobre a área visada. O problema era a carga de energia concentrada proveniente do Chi! Esta energia atingiu como uma bomba o coração forte de Ching Lee, descompensando-o, sobrecarregando-o, fazendo-o inchar dentro da cavidade torácica, o sangue correndo como um trem expresso no interior das veias, a pressão sanguínea subindo astronomicamente e a vida findando como o repentino apagar de uma vela! Ching caiu para trás, morto! Tien ergueu-se lentamente e disse simplesmente:
– Uma vida por uma vida…! Eu respeitava Ching Lee.
Tien olhou detidamente para a família Lao e para Zé Gatão que em vão tentava se levantar. Tinha as costelas trincadas do lado esquerdo. O lutador oriental se afastou calmamente e desapareceu na meia luz daquele dia sombrio. Uma chuva fina e fria começou a cair como se fosse um amargo pranto pela perda de uma das poucas coisas boas que havia nesse mundo frio e cruel!
O velório realizado no principal templo Shoísta do Bairro Oriental foi triste! Toda a comunidade compareceu para prestar a última homenagem a um de seus filhos mais amados. Zé Gatão estava inconsolável. Contudo, não conseguia chorar. Sentia-se responsável! O amigo querido morrera defendendo-o. Não tiveram tempo de se ver, de conversar, de trocar ideias, de dar um no outro um abraço fraterno, rirem juntos, recordar os bons e velhos tempos. Nada disso foi possível e nunca mais seria. Não ouviu os cânticos de despedida, não escutou os sons intensos da chuva e do vento que fustigavam as paredes externas do grande templo. Só escutava em seu interior uma voz acusatória. Ching estava morto e ele era o único culpado! As costelas enfaixadas doíam e latejavam, somando-se à sensação de perda e impotência. Ninguém o responsabilizara pelo sucedido. A cultura daqueles felinos de terras distantes via a vida como uma sucessão de coisas boas ou más que já estavam predestinadas. Esta crença tornava a dor da perda mais suportável. Zé Gatão não tinha este consolo!
O restaurante foi finalmente vendido para o chefão do crime. A família Lao com o dinheiro recebido voltou definitivamente para sua terra natal, um mês depois. Zé Gatão após vê-los partir, voltou-se e deixou o aeroporto. Seguiu pela rodovia, afastando-se da cidade de Knob a pé. Estava dominado pela tristeza, pelo remorso e por uma dor de alma que carregaria por toda vida! Pensou em Ching. Então, finalmente chorou em soluços abafados, procurando desesperadamente resgatar e guardar no coração a memória do amigo morto, de um passado morto como o próprio Zé Gatão se sentia, mesmo que ainda vivo!
22/12/14
Luca Fiuza, Brasília, DF, é professor de História, quadrinista e escritor. Um Livre Pensador.