Atualizado em: 14/11/2024, as 10:11
Cá estou, no meu centro do mundo também chamado de cafofo, bunker ou qualquer coisa parecida com um retiro – ou um refúgio. Uma chuva fina cai lá fora enquanto ouço as notícias referente ao Fim do Mundo que ocorreu no último dia 5 de novembro de 2023, quando Donald Trump atropelou Kamala Harris (e tudo o que ela representa) sem olhar para trás e sem prestar socorro à vítima. Deitado aos meus pés, meu cachorro Ziggy Stardust dorme o sono dos justos, talvez sonhando sabe-se lá com o que, aproveitando o vento frio do ar-condicionado.
Aproveito um momento do meu sossego para conferir os mimos recebidos do filósofo de pés sujos Barata Cichetto. Folheio os cinco números da Revist’A Barata e um (o primeiro) da Versus, esta publicada em 2012, e as outras em 2002, todas xerocopiadas, seguindo a tradição dos fanzines, da qual o poeta usou e abusou pelo tempo que achou necessário, pois era o método que estava à mão, por ser rápido, prático e, sobretudo, barato, e ainda sem perder aquele de que de clandestino, marginal, subversivo, sei lá eu. Coisa de anos 70, década em que tanta coisa aconteceu. É a minha década favorita, sem desmerecer as demais do século 20.
Enquanto ouço no YouTube os comentários sobre o apocalipse trumpiano-muskiano que agora aflige a humanidade, imagino multidões fugindo para as montanhas ou se refugiando em cavernas, pois o mundo agora alaranjou geral, pego um dos volumes (o número 4) da Revist’A Barata, e começo passar a vista no que nele há. É óbvio que não é outra coisa senão poesia, e uma delas me chama a atenção: Poema Jazz para os Intranquilos, de autoria de um certo Jorge Mendes.
Não sou dado a interpretar/analisar poemas, principalmente devido ao fato de não saber poetar, sonetar, ensaiar, prosear, cronicar e coisas do tipo. Leio todos que me chegam aos olhos e às mãos, como o poema do Jorge Mendes. Por um motivo que não sei explicar, o escrito me fez lembrar de uma série de fatos e pessoas, além de dar uma ideia de amargor, de desencanto e de decepção, e quem sabe, de desesperança. Como é facultado ao leitor dar uma interpretação livre a uma obra literária (o mesmo vale para filmes, discos, peças de teatro, etc.), esteja ela equivocada ou não, associo Poema jazz para os intranquilos aos meus próprios sentimentos de desencanto a figuras que fizeram dos anos 70 uma época única, onde se lutava contra tudo e contra todos visando uma possível redenção da humanidade, após uma série de crises de tudo que era tipo. Havia a promessa de um mundo melhor após a tempestade, e todos seriam felizes.
Na década de 70 já se falava em combater o Sistema com todas as armas disponíveis. Havia quem optasse por fazer uso do ativismo político e da violência. E havia aqueles que optaram pela arte como método de luta, e a música, creio, foi a mais eficiente delas, por ser mais facilmente absorvível e rápida disseminação. Confesso: nunca ouvi tanta música boa produzida entre 1965 e 1980. Sim, a minha década de 70 durou 15 anos, embora só tenha passado a curti-la a partir da segunda metade da década de oitenta.
O presumido desencanto do poeta Jorge Mendes deixa claro que a festa dos anos 70 acabou, mas ninguém deixou o salão, passando a viver de reminiscências como uma espécie de bálsamo contra os efeitos da dura realidade por aqueles festejantes agora entrados na meia e/ou terceira idade, cada vez mais longe do berço e mais perto do túmulo. A Garota de Aquário está mais preocupada em tratar a artrite nos joelhos em uma unidade do SUS na quebrada. Quem sabe ela é uma cliente do Bolsa Família, junto com o seu sétimo marido e seus dentes podres, que doem. Juntos ouvem Gal/Gil/Bethânia/Caetano com o mesmo prazer de sempre, por streaming, pois o LP dos Doces Bárbaros não roda mais de tão gasto, e não há dinheiro para comprar um novo, senão vai faltar para a comida. A Garota de Aquário já não passeia mais por medo do bang-bang. Sim, os tempos de agora são bárbaros e amargos. Mas tem BBB na Globo.
Gal Costa morreu; Rita Lee, também. Duas divas libertárias dos anos 70, símbolos de luta contra o Sistema, acabaram, cada uma a seu modo, se tornando parte dele. A coragem e a irreverência das divas de ontem foi transformada em conformismo e omissão conivente ante aos fatos escabrosos que abalaram o país. Caetano e Gil (ainda) estão vivos, e cada um se ocupa em lamber o cu dos Podres Poderes, tão combatidos naquele roquinho do Rock In Rio. E ainda há quem os admire nestes tempos de censura alexandrina e clePTocracia onipresente. Não é mais proibido proibir a liberdade.
Lisérgicos, aqueles caras da década de 70 deixaram tudo ácido, e os trocadilhos são por minha conta.
Sacaram?
Poema Jazz Para os Intranquilos
por Jorge Mendes
Aqueles caras da década de 70
Viraram flores finalmente.
São agora flores do mofo
e descansam em paz
nos cemitérios das bibliotecas públicas.
Enquanto isso a garota branca
olha para os seios murchos
e senta-se ao sol da segunda-feira
para folhear sua revista de assassinatos gentis.
“Vamos fazer compras, meu bem?”
“Oh!, é claro, amor!”
E é com isso que os sonhos
Vão virando economia doméstica,
estrelas empalhadas no fundo dos olhos.
Confesso que foi difícil
Aprender a sangrar sozinho.
Também não foi nada fácil
ver os amigos virarem idiotas de supermercado.
Mas não vou chorar agora que trinquei os dentes:
não quero brincar de medo no escuro e nem tentar fugir.
Eu sei: é uma velha estória amanhecer vivo todos os dias.
O sol frio nos pés, essa palavra úmida,
esse par de olhos embolorados
já não podem mais alcanças a estrela
e aqueles caras da década de 70
tentaram e conseguiram embarcar
para a Nave do Fim do Mundo.
Lisérgicos, aqueles caras da década de 70
Deixaram tudo ácido
e os trocadilhos são por conta da casa.
Mas venha consertar meus dentes podres, Garota de Aquário!
Não há medo agora que estamos seguros no refrigerador.
Vamos passear depois do bang-bang
porque não há mais perigo para nós que estamos limpos.
Aqueles caras da década de 70
estão finalmente mortos com as flores nos dentes
e o domingo vai ser de chuva
com poucas possibilidades de sol.
Genecy Souza, de Manaus, AM, é Livre Pensador.
Possui textos publicados na revista digital PI Ao Quadrado e na revista impressa Gatos & Alfaces.