Conheci Thomas Pynchon em 2001. Não pessoalmente, claro. Conhecer pessoalmente Pynchon é algo reservado a poucos mortais. Minha introdução a ele foi através de um e-mail inesperado, um presente digital entregue no auge do meu site, A Barata. Um visitante do site, que não me recordo agora o nome, talvez em um gesto de empatia literária, decidiu que eu deveria mergulhar nas profundezas labirínticas de “Arco-Íris da Gravidade”. A capa chamativa e o título intrigante prometeram uma jornada inesquecível. Mal sabia eu que essa seria uma viagem que eu nunca concluiria.
Thomas Pynchon, nascido em 1937, é um enigma literário. Recluso, avesso a exposições públicas, ele é um autor que permite que suas palavras falem mais alto que sua presença física. Talvez seja esse distanciamento que confere às suas obras um ar de mistério irresistível. Em um mundo onde a presença digital se tornou quase obrigatória, Pynchon permanece uma figura fantasmagórica, sua imagem sempre à margem, sempre fora de foco.
“Arco-Íris da Gravidade” é uma verdadeira montanha-russa literária, uma sinfonia caótica de vozes, estilos e narrativas entrelaçadas. A complexidade é uma constante. A leitura é um desafio, um quebra-cabeça que exige não apenas paciência, mas uma certa disposição para se perder. Cada página é uma nova camada de significados, referências culturais, históricas e científicas que se sobrepõem, criando uma tapeçaria densa e quase impenetrável.
Lembro-me claramente da primeira vez que encontrei o trecho sobre as baratas. No entardecer, as baratas emergem como gnomos, grávidas, com seus filhotes translúcidos. A imagem é grotesca, quase surreal, mas ao mesmo tempo poética. Pynchon, em sua maestria, consegue transformar a repugnância em arte, o mundano em sublime. “Insetos natalinos,” ele os chama, e de repente, as baratas não são mais apenas pestes; são participantes silenciosas de um drama cósmico, testemunhas da história sagrada, pequenas engrenagens em um mecanismo vasto e incompreensível.
Essa descrição poética das baratas sempre me norteou em meus projetos artísticos e no design do meu site. Há uma beleza em encontrar poesia no inesperado, em transformar o desprezível em algo digno de contemplação. A Barata, meu site, era um reflexo dessa filosofia. Um espaço onde a irreverência encontrava a arte, onde o provocativo se misturava ao poético.
Apesar de minhas tentativas persistentes, nunca consegui concluir a leitura de “Arco-Íris da Gravidade”. A cada retorno, encontrava-me perdido novamente na imensidão de suas páginas, na intricada rede de personagens e tramas. A complexidade é assombrosa, mas também é essa complexidade que torna o livro uma obra-prima. Cada leitura oferece algo novo, um novo ângulo, uma nova interpretação.
Ao me deparar com o título “Porque Barata”, inicialmente o interpretei como uma pergunta. Em português, “porque” pode ser uma explicação, enquanto “por que” é uma interrogação. Pynchon, com sua escolha estilística, brinca com essa ambiguidade. O leitor se vê forçado a ponderar: é uma explicação do porquê das baratas, ou uma indagação sobre sua presença e significado? Para mim, sempre soou como uma provocação, uma questão existencial disfarçada de trivialidade. A simples presença das baratas, criaturas geralmente desprezadas, é elevada a um patamar quase metafísico.
Pynchon não facilita para seus leitores. Ele os desafia, os provoca, os força a questionar e a repensar. E talvez seja por isso que ele permaneça uma figura tão poderosa na literatura contemporânea. Sua aversão à exposição pública, sua recusa em simplificar, em diluir suas ideias para um público mais amplo, é um lembrete de que a arte, em sua forma mais pura, deve desafiar, deve incomodar.
A obra de Pynchon é um desafio constante, uma montanha íngreme que muitos começam a escalar, mas poucos alcançam o topo. Cada capítulo, cada parágrafo é uma nova encruzilhada, um novo desvio que pode levar o leitor a um estado de maravilhamento ou frustração. “Arco-Íris da Gravidade” não é um livro para ser lido, mas para ser vivido. É uma experiência que demanda tempo, paciência e uma disposição para se perder e se reencontrar repetidamente.
E assim, “Arco-Íris da Gravidade” continua a ser uma presença constante em minha vida, uma obra que nunca terminei, mas que sempre retorno. E talvez, essa seja a maior conquista de Pynchon: criar algo que nunca se esgota, que nunca se explica completamente, que sempre nos chama de volta, em busca de um novo entendimento, de uma nova epifania.
Em minha jornada artística, a inspiração tirada de Pynchon sempre esteve presente. A descrição poética das baratas serviu de farol para meus projetos, lembrando-me de encontrar beleza e significado no inesperado, no marginalizado. “Porque Barata” se tornou uma pergunta constante, uma busca pessoal por respostas em um mundo caótico e fragmentado. A complexidade de Pynchon espelha a complexidade da própria vida, um quebra-cabeça sem fim onde cada peça é crucial, mas nenhuma é definitiva.
Thomas Pynchon, com sua obra monumental e sua vida de reclusão, permanece um farol literário, iluminando os cantos mais obscuros da existência humana, nos forçando a ver o sublime no grotesco, o poético no mundano. E enquanto nunca conseguir terminar “Arco-Íris da Gravidade”, cada tentativa de leitura é uma viagem em si, uma exploração contínua que espelha a própria essência da busca humana por compreensão e sentido.
Escrito e Publicado em: 06/08/2024
Trecho:
Porque Barata
Thomas Pynchon
Mais tarde, quase à hora do entardecer, várias baratas enormes, de um tom bem escuro de marrom avermelhado, emergem como gnomos do lambri, e vão em direção à despensa – entre elas, baratas grávidas, com filhotes translúcidos anexos, como uma escolta. À noite, nos silêncios tardios entre bombardeios, disparos de armas antiaéreas e foguetes caindo, elas se fazem ouvir, ruidosas como camundongos, roendo os sacos de papel de Gwenhidy, deixando trilhas e pegadas de merda da cor de seus corpos. Parecem não gostar muito de coisas moles, frutas, legumes, coisas assim, preferem a solidez das lentilhas e feijões, algo que possam roer, barreiras de papel e gesso, interfaces duras para serem perfuradas, pois elas são agentes da unificação, você sabe. Insetos natalinos. Estavam no fundo da palha da manjedoura em Belém, tropeçando, subindo, caindo reluzentes num reticulado de palha dourada que a elas certamente parecia estender-se por quilômetros para cima e para baixo – uma espécie de cortiço comestível, de vez em quando perfurado por suas mandíbulas de modo a perturbar algum misterioso feixe de vetores, fazendo com que as baratas vizinhas despencassem de bunda para cima e antenas para baixo por cima das outras, as quais se agarravam com todas as patas àqueles caules dourados sempre a tremer. Um mundo tranqüilo, a temperatura e a umidade permaneciam quase constantes, o ciclo do dia incluía apenas uma suave variação de luz, primeiro dourada, depois cor de ouro velho, depois escuridão, e luz dourada outra vez. O choro do bebê chegava a seus ouvidos, talvez, como explosões de energia vindas de uma lonjura invisível, quase despercebidas, por vezes ignoradas. O seu salvador, você sabe…
(“O Arco-Íris da Gravidade”, Thomas Pynchon – Tradução Paulo Henriques Britto)
Thomas Pynchon
Nascimento: 8 de Maio de 1937, Long Island, Nova York, Estados Unidos
Pais: Thomas Ruggles Pynchon Sr., Catherine Frances Pynchon
Alma mater: Universidade Cornell
Ocupação: Escritor
Principais Trabalhos:
V. (1963)
O Leilão do Lote 49 (1966)
Mason & Dixon (1997)
Magnun Opus: O Arco-Íris da Gravidade (1973)
Barata Cichetto, Araraquara – SP, é Criador do BarataVerso. Poeta e escritor, com mais de 30 livros publicados, também é artista multimídia e Filósofo de Pés Sujos. Um Livre Pensador.
Sugestão de Leitura:
https://www.bpp.pr.gov.br/Candido/Pagina/Reportagem-Thomas-Pynchon
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