Atualizado em 16/12/2024 as 10:38:42
Eu quero deixar bem claro, que este relato, que eu redijo, não é um registro fiel e exato, do que foi e o que é a minha vida, neste exato momento, pois sinto que para a minha pessoa, as leis naturais, nunca me alcançaram de fato. Sinto que eu existo, em uma realidade paralela, em um vácuo entre a realidade sólida e a abismal vacuidade quimérica, de um álgido mundo sombra, de um pesadelo, de uma mente criativa e perturbada.
Deixo registrado aqui, os meus olhares enviesados, que são somente meus, e de mais ninguém, as minhas sensações e as impressões, do que é ou do que seria a minha breve vida, pelo menos até aqui e até agora. As minhas sensações, do que é a hirta realidade, em que vivo e que se mistura, com um mundo muito particular. São as minhas angústias acres, dos meus álgidos medos particulares mais que profundos, dos meus pensamentos abissais. E por fim, dos meus sombrios pesadelos nevoentos, mais atrozes e que eu nunca pude dividir, pelo menos até agora, com mais ninguém.
Escrevo, em meio a uma torrente, de sentimentos bons e ruins, que se alternam abruptamente, componho este breve relato, como quem tenta olhar para si, de fora para dentro, como uma quasímoda maiêutica socrática, como uma justificativa das minhas escolhas. Os acontecimentos, que me forjaram para eu ser, o que sou agora, das muitas influências que sofri, das minhas pequenas e grandes tragédias pessoais, permeadas por pequenas e grandes vitórias na vida, intensas paixões, amores vãos e desamores perpétuos e momentâneos.
A começar, do que eu penso do que foi a minha infância, dos pequenos flashes difusos, que me chegam até a minha vida adulta. Agora, com o passar do tempo, os pequenos flashes difusos se transformaram em fortes clarões, em meio as escuridões abissais que existem dentro de mim.
Cresci, sem conhecer o meu pai biológico, o que me disseram é que ele partiu para um exílio forçado, para o estrangeiro, em tempos idos e nunca mais voltou. Crescida, logo eu presumi que de fato, ele estava, preso ou pior, que estava morto, pois que pai abandona a filha pequena? Pior, uma filha por nascer! Mas, quem era ele afinal de contas? A figura do meu pai era, e ainda é, uma sombra difusa, que me acompanha desde a minha tenra idade, até aqui na minha vida adulta.
Assim me contaram, que ele, o meu pai, fora um promissor e respeitado literato professor universitário, em tempo idos, em tempos de revoluções e rebeldias. Ele formado em belas-letras, ele especialista em literatura espanhola medieval e literatura espanhola moderna. Também mestre, em teatro espanhol medieval e teatro espanhol moderno e doutor em literatura latina americana moderna e pós-moderna em espanhol.
O meu pai, nascido em uma tradicional família ligada ao mundo do teatro latino-europeu e latino-americano, assim me confidenciaram, e depois eu confirmei. Ele também era conhecido e reconhecido poeta, romancista, contista, novelista, cronista. Um consagrado ator de teatro, produtor e diretor teatral e dramaturgo. E por fim, com uma carreira consolidada na academia, uma vez que ele, o meu pai, quando quem jovem, dedicou abandonar os palcos e abraçar a segurança da carreira universitária. Mas sem perder o gosto de episódicas apresentações em palcos da vida.
Até que um dia, o meu pai foi arrastado e lançado ao chão, por onda reacionária e extremista, foi preso, torturado e pôr fim exilado. E os detalhes explicarei mais adiante, agora falo da outra parte da minha vida, a minha adorada mãe Eleonora. Ela, jovem atriz dos palcos, das ondas do rádio, das telas das TVs e cinemas e ela e o meu pai, se conheceram nos bastidores do meio literário e cultural. Logo se apaixonaram, não muito tempo depois se casaram, coisas de artistas apaixonados pela vida, pelas belas-artes e belas-letras.
A minha mãe nunca escondeu nada de mim, nada mesmo, ela não me preservou dos dissabores da vida. Em relação ao meu pai, pelo menos, ela me contou o que sabia e o que lhe foi revelado. Ela me contou, que depois da prisão do meu pai e sua partida para o exílio, a minha mãe, grávida de mim, partiu do litoral agitado. E se mudou para uma tranquila e pequena cidade no interior do nosso estado. A minha mãe, foi se dedicar ao magistério, foi ser uma professora de crianças por fim.
Estranhamente, sempre senti a forte presença do meu pai, a cada passo que a minha mãe, dava na vida, a cada decisão que ela tomava, eu sentia as digitais dele. Primeiro eram pequenos ruídos aleatórios, sempre na alvorada, no rubro arrebol, sempre à tardinha, sempre no pôr-do-sol e sempre em breves momentos apenas. Depois, em horas variadas, vieram as vagas sombras e os leves ruídos suspensos no ar, que logo se transformaram em palavras difusas e em imagens etéreas. E pôr fim, ações e decisões no plano da materialidade, no mundo real. Quando criança, eu ouvia os meus pais, os dois sempre sozinhos conversando baixinho e na solitude, na quietude e na paz nas alvoradas rubras.
Assim a minha mãe se casou novamente, com um dedicado professor de português e inglês do ensino médio. Tivemos uma vida tranquila, tivemos uma vida estável e eu tive uma educação acima da média, das outras crianças da minha realidade, de então. Apesar do fato que vivíamos em uma cidade pequena e longe de médios e dos grandes centros urbanos. E sobretudo, apesar de não sermos uma família de muitas posses, sempre tivemos acessos a muitos livros, revistas diversas, vastos catálogos de filmes variados, músicas diversificadas. E tinham também longas conversas, sobre belas-letras e belas-artes.
Em meio a estas pequenas e grandes agitações, ao longo desta parte da minha vida, primeiro eu era uma simples espectadora e depois incentivada pelo meio, era um elemento integrante, deste pequeno universo cultural. Pois a nossa casa era sempre frequentada por, professores, artistas variados e intelectuais da localidade e em trânsito. Isso desde a minha mais, até a minha tenra idade, até eu ter idade de bater asas e sair de casa, dos meus pais aquele pequeno universo, que era bom para mim e não me desafiava em nada.
Peço desculpas, para quem lê esta pequena digressão, desculpas os grandes saltos temporais, e as letras vagas, difusas e desencontradas, mas este relato tem que ser breve. Fatos de eu estar sempre sozinha, sempre ter poucos amigos da minha idade, até a chegada da vida adulta, eu me sentia bem assim, e não é um fato, irrelevância para este relato. E assim será este meu breve relato íntimo! Falo breve, pelos saltos temporais.
Mas as sensações, as contradições, as falas e imagens dispersas no ar? Desde criança, tive somente a ausente fisicamente o meu pai, na minha vida, não digo que eu conversava com o meu pai no vazio, ou que sonhava com ela acordada. Digo que as mensagens dele, chegavam a mim, primeiro difusas e depois claro e cristalina, trespassava o tempo e o espaço eu bem sabia. A minha mãe nunca teve coragem de me dizer que ela passava pela mesma situação. A minha mãe, foi e é materialista e ateia, demais para isto, presa na hirta realidade, ao mundo da matéria. E creio que divido com ela, a mesma posição, mas tenho uma ligação de descendência e ascendência, com o meu pai, com uma ligação afetiva, efetiva e mesmo etérea. Com Eleonora, a sólida realidade ordena, a vida dela e os pequenos lampejos quiméricos, no alvorecer, que eu me irmanar com ela e éramos iguais nesses momentos.
Crescida, fui procurar o meu pai, por fim, fui percorrer os passos dele, fui cursar belas-letras na faculdade, como quem procurar algo, procura preencher lacunas na própria existência. Fui vasculhar o mundo, que outrora foi do meu pai e a minha mãe também, o mundo em que ambos estavam imersos e submersos. Eu fui ter as minhas próprias impressões e sensações deles, dos meus pais.
E descobri pôr fim, a longa produção textual, do meu pai, das críticas de artes, dos poemas milimetricamente construídos, das poesias livres em versos herméticos, das novelas e dos romances. Muitas coisas publicadas para um circuito alternativo e acadêmico somente, a produção do meu pai, não era para o grande público, para as massas.
Descobri também, a militância de oposição de meu pai, ao regime brutal que tomou o poder no país, a tempos idos. Encontrei referências do núcleo artístico, que meu pai integrava, e para a minha surpresa o grupo ainda existe, sobreviveu à censura da forte opressão brutal, por parte do regime opressivo.
O grupo, estava disperso e seus elementos ainda ativos, se reorganizou a pouco tempo e, para a minha surpresa, não eram somente artistas, passaram a integrar o grupo. Na atualidade, são impressores de livros e revistas, pintores de várias tendências, artistas-plásticos, produtores de veículos de comunicação e também influentes comunicadores locais de rádio, TVs e influenciadores locais de canais da internet. E uma gama variedade de trabalhadores, no mundo das artes, maquiadores, assistentes de produção, iluminadores, fotógrafos amadores e profissionais, revisores de textos, apreciadores e simplesmente consumidores de artes em geral. E por fim uma série de profissionais liberais e uma gama de pequenos empreendedores e prestadores de serviços.
Todos, ligados de forma direta ou indireta, ao mundo das belas-artes, belas-letras e cultura popular, ao entretenimento, música popular e erudita e comunicação em geral. Através deles, eu colhi muito material escrito, gravações em áudio e em vídeo e também colhi depoimentos, tudo sobre o meu velho pai, por fim foi isso. O meu pai era querido e bem aceito, em variadas esferas e unia todos esses universos interligados e despertos. Até entre os opositores e críticos do trabalho dele, o meu pai era e é bem visto.
Mas uma sombra se ergueu, palavras ditas entredentes, sussurradas e entrecortadas, pois se a vida profissional e artística do seu pai foi desvendada a final de contas, faltava algo. As atividades políticas do meu pai, simplesmente não existiam, subsequentemente ao grupo político que ele integrava não existia de fato e de direito. Simplesmente, ninguém falava e apontava o caminho para eu percorrer. Então se assim fosse, eu deixei que as coisas simplesmente acontecessem sozinhas, pura e simples, que se destino bem quisesse, que permanecessem nas imensidões das profundezas das escuridões abissais dos subterrâneos do mundo das lides política, para todo o sempre.
Falo agora sobre a minha pessoa, ao final da minha vida acadêmica, lá estava eu e o meu gato, o meu bichano, o meu animal de estimação, que um dia simplesmente apareceu na minha casa e nunca mais foi embora. Eu estava em paz e na paz comigo mesma, pela primeira vez na minha vida. Eu e o meu fiel companheiro, por horas gostava de se esconder debaixo da minha cama, eu ficava preocupada e levantava a pesada cama para ver se ele estava vivo ou morto. Mas, em uma noite remota, o meu amigo de quatro patas pulou pela janela do meu pequeno apartamento. Ele se espatifou do terceiro andar, vi o pequeno corpo morto do meu bom amigo no meio da rua deserta, se retorcia, agonizava, uma tragédia para mim. Não tive nem coragem de recolher o corpo do meu amigo e dar um fim digo aos restos mortais dele. A tristeza se abateu em mim.
Até que, simplesmente, o vi dias depois caminhando calmamente pelos telhados das casas próximas. E, não demorou muito para vê-lo vagando pela minha casa, e foi assim por dias e meses, a via morrer e renascer por várias vezes de várias formas. Estava vivendo esse pesadelo muito particular, os olhos, tinha os olhos castanhos claros brilhando do gato amarelo malhado, que um dia fora meu. Os olhos vazios, de significados simplesmente me encaravam, os miados e ronronados desapareceram por completo. E a tigela de água fresca e ração sempre estavam intocadas. O que sobraram foram somente as carícias gélidas de corpo sem vida nas minhas pernas e pular dele em cima de mim quando estava sentada no sofá e deitada na minha cama.
Era um prelúdio, que algo ou alguma coisa que estava chegando e pôr fim chegou atrás de um convite de gente próximas de meu pai. Um convite para integrar um coletivo literário recém aberto. De fato, o mesmo grupo que o meu pai um dia fez parte que foi recém reativado. Era para ser um grupo de debates, cursos rápidos, palestras, aulas, leitura de textos e por tudo que se refere à produção e difusão de textos, escritos e falados. Sem início, meio ou fim, sem locais, datas e horários pré-definidos, com muita antecedência, ou sem métodos e sem as hierarquias predefinidas das academias. Nem tendo tabus, somente o respeito às pluralidades de ideias era a lei. Vários profissionais e amadores do texto escrito e falado se reuniam esporadicamente em locais variados para ler, recitar, debater e apreciar textos variados em mídias variadas do moderno ao antigo.
Como nunca gostei de me misturar, com outras pessoas, de coletivos e de multidões aleatórias, escutava mais do que falava nas reuniões. E foi assim que ele entrou na minha vida, Adérito Muteia, um expatriado emérito professor luso-africano. Um pós-doutor a bem da verdade, conheceu o meu pai no exílio, no velho mundo, no distante e gélido leste europeu. E através dele, descobrir muito de quem era o meu pai, de boa parte das atividades de resistência políticas dele. Aquela figura difusa e distante que mais de repente tomou formas mais concretas. E descobri muitas coisas, o professor, também não me poupou detalhes, por mais que cruéis que fossem, a fala do professor doutor Muteia, que teve a mesma atitude de Eleonora, da minha mãe. O como, o quem, e os muitos porquês do exílio forçado do meu pai, se afloraram como uma torrente de dores, amores e paixões desmedidas e entregas totais. Descobrir o irmão do meu pai, um delegado da polícia civil, que hoje é aposentado e sua neta, depois falo deles, aqui o foco é outro. O papel desempenhado pelo meu tio delegado, na evasão, a presa, do meu pai, para o estrangeiro, fora preponderante.
Agora, relato que as minhas percepções da realidade, pura e simples, para mim se converteu em outras coisas, o professor luso-africano desnudou os multiversos infinitos, para além das minudências que nos permeia. O professor Adérito Muteia, pois um ponto final aos ruídos e sombras, que sempre teimam em me acompanhar desde a minha tenra idade.
Agora posso dizer que escrevo e reescrevo, com sangue e com as iras dos deuses e deusas que reinam no além do tempo e do espaço, para o além da realidade em que existo neste plano. Não como uma profissão de fé, componho para mudar a minha realidade como alguém preso a uma realidade agonizante e cruel.
Eu não sei quem lerá este relato, que a princípio é somente meu. Simplesmente eu não suportaria vê-lo em outras mãos. Quem sabe o futuro as coisas possam ser de outra forma e de outro modo, mas agora não. Encerro aqui este meu breve relato e volto a preencher este doloroso relato de outra forma. Espero que alguém de alguma forma retrate em outras cores o que eu desejo fazer, o caminho que pretendo percorrer.
Assinado: Antonella Manzini Di Santis.
Nota de Abertura do Livro Em Perpétuos Ciclos
Argumento de Fabiane Braga Lima, contista, novelista e poetisa em Rio Claro, São Paulo.