Atualizado em 02/11/2024 as 13:24:24
Há três anos moro em um apartamento, desses em prédio de quatro pavimentos, sem elevador nem nada. Não gosto de apartamentos, nunca gostei. E para não dizer que nunca morei, foram seis meses, no início do meu primeiro casamento, lá pelos idos de 1982, no centro podre de São Paulo. Mas ali eu tinha vinte e poucos anos e não permanecia naquela quitinete senão para dormir. Ah, quando a gente tem vinte e poucos, e acabou de casar, qualquer lugar serve para se permanecer.
Desde então, nunca mais. Morei em porões que, para pentear o cabelo, eu raspava a mão no teto, em cômodos e cozinhas em cortiços e até em quase favelas, mas nunca, nunca mais tinha morado em apartamentos. Apartamentos são, a não ser aqueles de ricos, apertados e sempre são, ou muito quentes ou muito gelados. Não há o confortável meio-termo de temperatura. Quem se preocupa, na construção, com o conforto de quem irá morar? Arquitetos e engenheiros é que não. Afinal, não serão eles que ali irão passar seus dias e noites.
Em apartamentos, moramos quase que todos juntos, como naquela velha canção do Arnaldo Baptista, “todos juntos reunidos numa pessoa só”. Interessante é que, desde lá dos meados dos setenta, quando ouvi essa música pela primeira vez, entendi algo muito diferente do que a imensa maioria, que entendia como unidade, comunidade, pessoas como se fossem apenas uma. Mas eu, ah, não eu. Eu entendia sobre estar juntos e reunidos como uma pessoa só… Entendem? Só de solitário, de solidão, não de uma pessoa só, de… Uma apenas…
Isso foi nos anos setenta, e nunca mais eu tinha lembrado disso, dessa minha interpretação da música do Arnaldo, até passar a morar em um apartamento. Certo, o imóvel em si é bem bom, e por ser antigo, tem uma cozinha enorme, janelas amplas e outras “comodidades” que os mais modernos não têm. Mas o problema não está nas acomodações, nada disso, e é por isso que tornei a lembrar frequentemente de “todos juntos reunidos numa pessoa só”.
Mesmo que colados, parede com parede com outras pessoas, mesmo que não sejamos vizinhos, mas cúmplices, já que podemos ouvir gritos de brigas e gemidos eróticos, mal nos vemos, mal nos falamos, mal sabemos os nomes uns dos outros. Apenas um bom dia ou boa noite, em muito esporádicos encontros casuais na portaria ou escadaria. Uma dinâmica de vida que realmente não me agrada, mas que, pelas minhas circunstâncias financeiras, sou obrigado a aceitar.
No condomínio onde moro, são 16 apartamentos e menos de 30 moradores, já que boa parte são de senhoras e senhores idosos, viúvos ou divorciados e, no máximo, casais sem filhos, o que faz com que o prédio seja um lugar muito quieto e silencioso, que, para um também idoso como eu, seja um local perfeito, já que não há crianças remelentas berrando e correndo pelos corredores. Mas isso é realmente a perfeição?
Claro que não, pois, como na reminiscência que compartilhei sobre o meu entendimento pueril de “estamos todos juntos numa pessoa só”, é assim que sinto, dentro daquela antiga percepção juvenil: estamos aqui todos juntos reunidos, mas é como se fôssemos, todos juntos, uma única pessoa: Solitária!
“Ficamos até mesmo todos juntos reunidos numa pessoa só. Eu sou velho, mas gosto de viajar por aí. Cê tá pensando que eu sou loki, bicho?”
Escrito e Publicado em 29/09/2024
Uma Pessoa Só
Arnaldo Baptista
Eu sou
Você é também
E todos juntos somos nós
Estou aqui reunido
Numa pessoa só
E todos juntos somos nós
Uma pessoa só
Você também está tocando
Você também está cantando
Estamos numa boa pescando pessoas no mar
Aqui
Numa pessoa só
Eu sou o começo, sou o fim
Sou o “A” e o “Z”
Todos juntos reunidos
Numa pessoa só
Barata Cichetto, Araraquara – SP, é o Criador e Editor do BarataVerso. Poeta e escritor, com mais de 30 livros publicados, também é artista multimídia e Filósofo de Pés Sujos. Um Livre Pensador.
Nunca morei em apartamento. Não sei se me adaptaria a esse tipo de moradia, talvez em razão de umas neuras relacionadas à sensação de vigilância constante. Obviamente, de acordo com o meu perfil sócio-econômico, e não havendo uma alternativa, eu seria obrigado a residir em um apartamento semelhante aos que você detalhou. No entanto, imagino perfeitamente a forma como você encara a vida dentro de um espaço restrito, cercado de pessoas semiconhecidas/semidesconhecidas, as quais, guardadas as devidas proporções, também vivem conforme a letras de Arnaldo Baptista, por livre e espontânea força das circunstâncias. Ou seja: todos juntos reunidos numa PESSOA SÓ.
Como sempre dei jeito nos lugares onde morei, aqui não foi diferente. Sempre há madeiras disponíveis para moveis, coisas assim. E como, da forma belíssima que definiu Quintana, eu não preciso de muito espaço, pois moro dentro de mim mesmo.
De certa forma, também moro dentro de mim. Entretanto, também aprecio um pouco de espaço externo.
Belíssimo texto! O disco “Loki” é uma pérola da música brasileira. O versos “Estou aqui reunido; Numa pessoa só ” é paradoxalmente tão triste e consolador. Barata, obrigado por colocar em palavras o que muitos de nós sentimos.
Talvez essa minha interpretação “errada” perante a maioria, na época, nem o seja tanto assim, já que é sabido que Arnaldo estava numa vibe bem solitária na época. E vou soltar uma pérola podre que pode parecer idiota e piegas, mas … O bom de ficar velho é não ter não ter morrido jovem.