Há cerca de duas semanas, precisava atravessar a linha de carga da Rumo, mas como o trem tinha parado, tomei a decisão de contornar pelo fim da composição. O local é bem deserto, e ao andar sobre as pedras onde se assentam os dormentes, deparei com alguns ossos, e ao lado deles um crânio, que me parecia ser de cachorro. Apanhei, e notei que o mesmo deveria estar ali há anos, pois estava completamente limpo e seco. Decidi apanhar e levar para casa.
No dia seguinte com a ideia de procurar um pedaço de madeira, cerca de cinquenta metros do local onde encontrara a tal caveira. Logo de cara, um galho, parcialmente queimado, com uma forma que prontamente identifiquei, como um elefante, com a cabeça erguida e a tromba levantada, como se tivesse gritando de dor. Na hora a associação com as duas peças se fez, e a escultura se materializou na minha cabeça. O tronco, além de queimado tinha sinais que teria sido antes serviço de lar e alimento para alguma comunidade de cupins, o que aumentava mais ainda o conceito de vida e morte.
Trabalhei nos últimos dias preparando o tronco, aplicado óleo queimado para eliminar ainda possíveis cupins e removendo partes soltas de cascas. O crânio foi colocado de molho em uma solução para higienizar. A cada gesto, a cada atitude, minha cabeça viajava sobre as histórias de todas as vidas que tinham um dia habitado aquelas peças e que hoje não mais existiam. Aquele cão, qual seria sua história? Do que teria morrido? Há quanto tempo? Ele poderia ter sido de alguém, que pode ter ficado triste com seu desaparecimento. Um caudal enorme de vidas entrelaçadas, alegrias e dores, todas ali, naquele crânio de cão.
E o pedaço de madeira? A qual árvore teria feito parte, antes de servir de moradia de cupins vorazes, ter sido cortado e depois queimado? Quanta vida tinha existido naqueles pedaços de coisas mortas que agora eu tinha em minhas mãos? Uma enorme sequencia, decerto. Alguém matou o cão, alguém cortou e incendiou o galho, mesmo que sem qualquer intenção de matar. A selvageria natural.
Preparei tudo com muito respeito a essas vidas, e com o espírito de quem prepara um monumento. O resultado é uma obra de arte? Não sei, não entendo de arte, e nunca tinha feito nenhuma escultura. O máximo que cheguei foi há três anos, incentivado por minha “madrinha” Nua Estrela, pintar algumas coisas.
Por fim, penso agora que isso é alguma espécie de convergência, que me fez unir essas peças, como se estivessem me esperando para juntá-las, e senti uma espécie de conforto filosófico e poético ao concluir. Essas vidas tão dissociadas, ou nem tanto, agora estão interligadas e me soam como um tributo à selvageria natural, parte de toda vida.
13/09/2019
Barata Cichetto, 1958, Araraquara – SP, é poeta, escritor. Criador e editor do Agulha.xyz, e Livre Pensador.