Foto: Pexels - Josie Stephens

Senso Incomum

Atualizado em 05/06/2024 as 15:58:53

Quero agora contrariar o senso comum de escritores, particularmente dos que escrevem poesia, de que somos escravos das palavras. Isso é mentira e hipocrisia. Pobres palavras, não merecem tal tratamento. Serem senhores, proprietários, de seres tão pequenos e fracos a ponto de se deixarem escravizar. Não, eu não sou escravo das palavras, de nenhuma palavra, de palavra alguma. Sou senhor delas, feitor, dono, proprietário. Eu as procuro, caço pelas matas feito capitão do mato; as pesco no fundo dos rios, no alto dos prédios. E as arranco de dentro dos bueiros, do fundo de sepulturas e de todos os buracos. Escavo e as retiro de dentro de bucetas e cus fedorentos de putas mal lavadas, de bocas de políticos imundos e suas taras por poder, das bocas podres de mendigos, dos vãos dos dedos de ladrões, e das tocas dos insetos. Sou caçador e não caça, pescador e não pesca. As recolho nas calçadas feito polícia a bandidos, religiosos a pecadores, e políticos a eleitores. Eu as encontro, por horas perdidas e sujas, mal tratadas e estupradas. Estão imundas e prostituídas, mas muitas ainda, por força de sua natureza escrava ainda me sorriem. Eu as levo para casa, lavo-lhes suas partes íntimas, as penteio e perfumo. Não como filhas, nem como irmãs, mas amantes com quem quero ter prazer. Depois as escravizo. Deito-as no chão e as transo com elas, amarro-as na cama, fodo-as sobre a mesa, sobre as tumbas dos cemitérios. Faço toda sorte de sacanagem com elas, as faço gemer, gozar litros. E elas se apaixonam, como putas a seu cafetão, como esposas a seus maridos. Palavras são sempre carentes, portanto, há uma facilidade imensa em torná-las minhas escravas. Todos os seres carentes são assim, e eu as entendo. E apenas quem entende as carências é capaz de dominar. E depois de nos darmos todo o prazer, deixo-as ir, porque o êxtase de qualquer dono de escravo é saber que seu escravo se tornou livre, e a este que libertou seu senhor do peso da sua responsabilidade. O prazer de servir e o prazer de ser servido. Elas agradecem e saem por ai, livres para serem lidas e tidas como importantes, conscientes de seu papel de senhoras. Aí, sim, se tornam senhoras, mas daquele que as lê. Dos leitores as palavras são senhoras, e fazem dele tudo aquilo que o escriba faz com elas. Escravos se tornam senhores e senhores se tornam escravos. Até que esses aprendem a ser senhores. Um ciclo de escravidão interminável.

Assim são as palavras. E assim as trato. Numa troca de prazer, entre o escravo e o senhor, diferentemente daqueles que das palavras se dizem escravos, tolos e hipócritas escritores, que são de fato como qualquer ser que se acredita humilde, ditadores. E estes não são escravos, nem senhores, nem proprietários. São apenas ditadores, que torturam as palavras para que elas lhes confessem o que não há para ser confessado, como se as palavras fossem as culpadas da rebelião de criação e capacidade que eles não tem. São ditadores sanguinários que as assassinam sem piedade, apenas por elas não serem o que eles aprovam e querem.

Há, portanto, uma imensa diferença entre ser o senhor das palavras e um ditador. O senhor conhece sua natureza e faz uso dela. O ditador faz com que elas sejam aquilo que apenas eles querem que sejam. Até a morte. Sem trocas. É da natureza das palavras escolher entre senhores e ditadores. Aos senhores é dada recompensa de ser um escritor, aos ditadores, a esses sobra o consolo do sangue derramado. Das pessoas e das palavras. A propósito, aparte o que desejam os teóricos do comunismo, e das esquerdas em geral, as palavras não são coletivas, nem do coletivo, nem socializáveis, as palavras são individuais, do individuo, e da mesma forma que à alma de cada homem, somente a ele pertence. Mesmo as palavras mais comuns tem, a cada um a propriedade de uso. Cada um a usa ao seu bel prazer. E eu, que detesto a palavra comunismo, faço dela o uso mais imundo que uma palavra possa merecer.

26/10/2017

Barata Cichetto, 1958, Araraquara – SP, é poeta, escritor. Criador e Editor do Agulha.xyz e  Livre Pensador.

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