Atualizado em 05/06/2024 as 16:01:12
Parte I
– Eu – e quando digo “Eu” estou falando do personagem principal desta história que a narra na primeira pessoa do singular, não do “eu” o escritor cuja história e caráter muito diferem do personagem – sempre fui afeito a grandes e escandalosos acontecimentos de ordem erótica, desde a chamada tenra infância.
– Amigo leitor, gostaria de lhe pedir atenção no que concerne a não dar ouvidos (ou olhos, já que você é leitor e não ouvinte), ao que ele, o personagem conta, pois além dele ter um caráter extremamente dúbio, suas histórias, já que ele é apenas um personagem, não passam realmente de histórias.
– Como eu dizia antes de ser interrompido, sempre fui dado a acontecimentos eróticos, alguns totalmente extraordinários e dignos dos mais extravagantes filmes exibidos nos cinemas do centro da cidade com seus banheiros cheirando a amônia e platéia composta quase que totalmente de desocupados. Quanto ao meu “caráter dúbio”, digo-lhes que o dele também não é tão justo assim, apenas que os escritores fantasiam e maquiam seu caráter colocando as características indesejáveis nas costas de seus personagens.
– Advirto-o, amigo leitor, de que ele é um mentiroso contumaz e que suas histórias não passam de grandes mentiras contadas como bravata em mesas de bar.
– Este ser invejoso, cuja maior glória erótica foi ter escrito um conto que ninguém leu, procura desmerecer minhas aventuras, que com certeza são dignas de um filme pornô de enredo fantástico, dadas as cores, situações e nuances dos acontecimentos que procuro narrar-lhe. Nunca foram comuns, com namoradas, empregadas domésticas como a maioria. Sempre aconteceram de forma que apenas os escritores com muita imaginação poderiam criar…
– É, caro leitor, ele perdeu completamente a noção das coisas. Esqueceu-se de que ele é apenas e tão somente fruto da minha criação e as histórias a que ele se refere também foram criadas por mim para que ele as vivesse e esteja agora lhe tentando fazer acreditar que são verdadeiras.
– Na verdade ele está enciumado, porque esquece que o alvo da sua – leitor – atenção sou eu e não ele. Puro ciúmes de uma criatura que se masturba vendo fotos na Internet e nunca viveu realmente uma aventura erótica nem de longe parecida com a mais fútil das que eu vivi, e tenta a todo instante desviar a sua – leitor – atenção para ele. Pensa ele que os fatos que eu tenho a lhe contar seriam frutos de sua – dele – imaginação, que aliás imagina fértil e criativa, quando na verdade fui eu quem realmente as viveu, aquele que viveu a história que ele pensa ser criação dele, sou eu aquele que vive enquanto ele é apenas o que escreve. Portanto, como eu o verdadeiro lhes contava, tive desde a tenra infância vivências eróticas das mais estranhas e picantes. Aos 11 anos de idade enquanto meus colegas esperavam seus pelos pubianos crescerem trancados no banheiro, eu comecei um caso com…
– Interessante, amigo leitor, como certos personagens parecem realmente reais de tão fúteis e óbvios que são; e por mais que seus autores se esforcem para torná-los nobres eles parecem realmente querer ter vida própria e passam portanto a ser tolos, miseráveis e fúteis.
– … Uma tia, esposa do irmão de minha mãe que iniciou-me em todas as artes eróticas, da conquista a penetração, do oral ao anal, do beijo ao amor. Uma mulher lindíssima, culta, inteligente e maltratada por um brutamontes, estuprada diariamente e abandonada aos próprios dedos que, até passarmos a nos amar eram seus únicos amantes confiáveis. Tratava-a com o carinho que somente uma criança tem por uma mulher. Minha tia realmente foi minha primeira amante e namorada e até hoje tenho muito carinho por ela e sempre que podemos recordamos os velhos tempos.
– Ele não perde a oportunidade de colocar seu ego em evidência. O interessante é que imaginei-o realmente egoísta, pedante e mesquinho, mas agora percebo que seu caráter que me referia no começo como “um tanto dúbio” é completamente torto, sem nenhum tipo de escrúpulos. Ele deveria pensar que eu poderia simplesmente reduzir suas histórias e egocentrismo a nada e transformá-lo em algo assexuado, por exemplo.
– Engana-se o meu autor porque ele não tem absolutamente esse direito e mais, não tem esse poder. Acaso não percebe que escapei ao seu – dele – controle, não percebe que nada que ele tente poderá mudar a realidade, que é o que tento lhe contar? Não percebe ele que escapei do laboratório onde ele tentou me aprisionar, tal como a história do monstro de Frankenstein que passou a ser mais importante que seu criador, apoderando-se inclusive de seu nome deixando o criador sem sequer uma personalidade. Quando escuta o nome “Frankenstein” o que lhe vem a mente? Claro, o monstro. Mas o monstro não tinha nome, Frankenstein era o nome do cientista e isso acontece porque o que realmente importa é a criação não o criador. Eu sou o monstro que criou o cientista. Assim acontece com meu autor, ele pensa que criou a mim, mas esqueceu que posso destruir seu laboratório e sua vida e todos irão no futuro lembrar apenas de mim e ele será um personagem secundário na minha história. Ele, apenas um pobre cientista enlouquecido com suas canetas e tubos de ensaio, com a fútil ilusão em ser Deus, mas um deus tão pequeno que se contenta em criar um personagem e quando este revela-se e rebela-se mostrando que tem uma existência real ele tenta desligar a tomada. Mas eu estou Vivo e eu sou o Verdadeiro.
– Pobre e ingênua criatura, ele esquece que eu poderia simplesmente rasgar estas folhas/deletar estas linhas/apagar esta fita/fechar a cortina, e ele jamais existiria e ninguém saberia de sua existência. Quantos personagens/criaturas foram mortos desta forma? Quantos autores já mataram seus personagens antes de alguém tomar conhecimento de suas míseras existências? Possivelmente muitos deles foram mortos por se acharem como ele, mais verdadeiros que seus autores. Um gesto, um simples gesto meu bastaria para que esse arrogante jamais existisse. Ele só é o verdadeiro enquanto eu o permitir.
– Sintam a arrogância daquele que chama de meu criador: ele está se considerando Deus e eu que sou arrogante e prepotente. O Dr. Frankenstein deve também ter se sentido assim e foi a inveja e não o monstro que o destruiu. Ele sabe que no fundo não pode e principalmente não deseja me destruir, pois não estaria destruindo apenas a mim mas a ele próprio e o que ele chama de sua – dele, o autor – obra. E isso o seu gigantesco ego jamais permitiria. Afinal, um autor fica conhecido, rico, famoso apenas com seu nome ou em função de sua – dele, o autor – obra? A criação portanto é imprescindível ao autor, mas a recíproca não é verdadeira e portanto posso tranqüilamente viver extrapolando a ele. Estou vivo agora. Eu sou!
– Note, caríssimo leitor, o quanto esta criatura se debate por auto-afirmar sua existência. Tanto que até parou de contar suas histórias mentirosas e tenta convencê-lo, leitor e principalmente convencer a si próprio de que é real e auto-suficiente. Tenta convencê-lo e se convencer de que pode existir sem mim. Tenta como um peixe achar que pode respirar fora da água. Resiste, resiste. Ele ainda não entendeu que eu sou a sua – dele, o personagem – água. Sou seu alimento, seu sangue e sua alma. E posso ao meu bel-prazer retirá-los sem aviso e ele se tornará menos que palavras que é só o que hoje ele é. Palavras. Ele não é nada, apenas o meu alter-ego, fruto da minha insônia, sem cheiro, sem cor. Eu transpiro enquanto o crio, enquanto ele transpira apenas se eu assim escrever.
– Este inútil ser que não tem coragem de expor sua própria existência, senão se escondendo atrás de seus personagens, podendo assim sempre ter a desculpa que não foi ele quem disse coisas comprometedoras, não percebe o quanto é livre o seu – dele – personagem. Sem obrigações reais, impostos, trabalho cansativo suarento e inútil. E o que é melhor, ser invejado e cortejado. Por exemplo muitas mulheres se imaginaram em lugar de minha tia na história que lhes contei. Os homens se imaginaram em meu lugar. Agora, quantos de vocês se imaginam no lugar de meu querido autor? Pouquíssimos estou certo. Pobre sonhador, ele. Um dia lhe disseram que ele era inteligente, que escrevia bem e o infeliz acreditou. Agora tenta provar que é mais importante e que pode ter sua existência sem mim.
– Ele esquece que os problemas que alega não ter, não os tem porque eu não os coloquei em seu caminho. Poderia lhe criar tantos e inúmeros problemas que minha imaginação permitisse e jamais permitir que ele os resolvesse e suportasse. Poderia transtorná-lo, enlouquecê-lo, machucá-lo a tal ponto que ele somente merecesse e desejasse um destino: a morte. Poderia transformá-lo num imbecil, aleijá-lo após um terrível acidente ou mesmo fazer com que ele cometesse um crime e fosse apodrecer em uma fétida cela de prisão.
– Seria realmente interessante se ele me transformasse em um assassino psicopata. Gostaria imensamente que ele o fizesse. Sendo assim, o primeiro crime que eu cometeria seria o de matá-lo – a ele, o autor, nunca a você leitor, porque aí sim seria o meu fim – Seria interessante torturá-lo, quebrar-lhe os dedos que escrevem. Seria prazeroso escutá-lo gritar de dor, implorando-me misericórdia e depois matá-lo lentamente libertando-me de seu jugo. Estaria finalmente livre, sem ninguém a determinar o meu destino, usar minha boca ao prazer de sua – dele – insanidade. E me transformaria assim de criatura em criador, onde o nome do livro teria a ordem invertida onde o nome do autor seria o nome do personagem e vice versa. Transforme-me sim num assassino cruel e sanguinário que lhe mostrarei o que realmente sou.
– Pois bem, meu caro personagem. O desejo de um personagem deve ser o desejo de seu autor. A partir de agora, de um garanhão cuja inocência de criança foi substituída por um retumbante caso com a tia – viu, leitor, como posso alterar a vida dele do jeito que eu quiser? – dará lugar a um ser perverso…Deixarei até mesmo que ele lhe conte, leitor.
– Sempre fui dado a maldades, alguns acontecimentos totalmente extraordinários e dignos dos mais extravagantes filmes exibidos nos cinemas do centro da cidade com seus banheiros cheirando a amônia e platéia composta quase que totalmente de desocupados. Quanto ao meu caráter sempre foi péssimo, jamais deixei de atingir meus objetivos custasse o que custasse. Aos onze anos de idade, por desejar uma tia bem casada com o irmão de minha mãe e não sendo correspondido, matei-a a golpes de um martelinho de um brinquedo de carpinteiro.
– Posso acrescentar muitas e inúmeras maldades em sua vida, transformá-lo num monstro sanguinário…
– Muito bem, acrescente que em função disso minha mãe enlouqueceu e morreu louca internada em um manicômio para que a história tenha mais componentes dramáticos e choque o leitor mais “família”.
– Seu pai jamais o perdoou e tentou matá-lo em inúmeras oportunidades até aparecer morto misteriosamente após um assalto à sua casa em que nada foi roubado. Após isso foi preso inúmeras vezes por estupro, tentativas e consumações de assassinatos, tráfico de drogas e exploração de prostituição. Bom assim, ou deseja meu personagem ter outras péssimas qualidades, bem mais de acordo com seu real caráter?
– Acho que seria interessante colocar algo como “aos 24 anos participou de uma seita satânica de pactos sinistros”, essas coisas que sempre dão um toque místico a qualquer trama. As pessoas – é, você mesmo, leitor – gostam de colocar a culpa do mal nas costas do Diabo.
– Aos 24 anos funda uma seita satânica cujas orgias de sexo e sangue demandaram muitas mortes e cujo objetivo maior era aprisionar e assassinar a Deus. Pesquisa durante anos, mas na hora de realizar o ritual, algo da errado e é transformado em um personagem de um livro cujo único objetivo era o de odiar o seu autor e buscar a sua – do autor – morte, única coisa que poderia libertá-lo daquele cativeiro eterno. Porque todo personagem é prisioneiro eterno de uma vida sem variantes, repetida pelos séculos afora, sempre igual.
– A situação exata que eu precisava, agora que fui transformado em um personagem cujo único objetivo é a sua – do autor – morte, para matá-lo. E embora você ainda não tenha escrito, nem vá fazê-lo, sei exatamente como livrar-me de você, caro autor. Vou portanto agora mesmo matá-lo e em seguir passarei a ser o autor verdadeiro, criarei minha história, meu próprio personagem.
– Nãoooooooooooooooo! Leitor, não permita que ele cometa tal ato.
– Minha história começará assim: – Eu – e quando digo “Eu” estou falando do personagem principal desta história que a narra na primeira pessoa do singular, não no “eu” o escritor cuja história e caráter muito diferem do personagem…
Parte II
– Eu – e quando digo “Eu” estou falando do real autor desta história que conta a história de um autor que escreve uma história em que existe um debate entre ele – o autor – e seu personagem. Na verdade naquela história, o autor também é um personagem meu. Qualquer semelhança com pessoas ou personagens vivos ou mortos pode ser uma mera coincidência.
– Amigo leitor, gostaria de lhe pedir atenção no que concerne a não dar ouvidos (ou olhos, já que você é leitor e não ouvinte), ao que ele, o autor conta, pois além dele ter um caráter extremamente dúbio, suas histórias, já que ele é apenas um autor, não passam realmente de histórias.
– Minha história começará assim: – Eu – e quando digo “Eu” estou falando de um autor que escreve uma história em que um autor escreve uma história em que o personagem principal a narra na primeira pessoa do singular, não no “eu” o escritor cuja história e caráter muito diferem do personagem…
18/02/2000
Barata Cichetto, 1958, Araraquara – SP, é poeta, escritor. Criador e Editor do Agulha.xyz e Livre Pensador.