Vergonha Alheia

Atualizado em 06/06/2024 as 15:24:16

(Ou: Outro Textão Daqueles Que Ninguém Lê Além do Título e o Primeiro Parágrafo e Depois Clica Em Curtir e Ainda Comenta Que é do Caralho e Que Pensa Exatamente Igual, Ou Ainda: Afinal Ninguém Lê Textos no Facebook Além Disso) (Ou Outro Subtítulo Grande: Outro Textão Chato, Barata?)

Acredito que a maioria saiba o que significa “vergonha alheia”. Mas para quem não sabe, a definição: “Vergonha alheia é uma locução da língua portuguesa que define o sentimento de vergonha que uma pessoa sente ao testemunhar algo que outro indivíduo disse ou fez; o ato de sentir vergonha pelo próximo.”

Então, é o que sinto por algumas pessoas que figuram na minha lista de “amigos” neste Facebook. Vergonha por pessoas, que em certos casos eu conheço pessoalmente, e sei que não concordam com minha maneira de pensar. Mas, claro, ninguém é obrigado a concordar com minhas posições artísticas, políticas ou sobre qualquer questão.

Entretanto, essas pessoas pelas quais eu sinto vergonha, sempre leem religiosamente o que escrevo, as fotos que posto, os comentários que faço. Mas, a não ser que seja uma foto tirada onde estou trabalhando ou de minhas gatas, simplesmente ignoram. Ora, não precisam comprar meus livros, por não quererem e ou não concordar com o que escrevo, mesmo que não tenham lido nem dez por cento do que eu escrevo (a maior parte do que escrevo não publico na Internet).

Não precisam concordar com minha forma de vida, mas o que espero dessas pessoas, muitas conhecedoras de todo o trabalho e dedicação que tenho, e as dificuldades em fazê-lo, ao menos dissessem, até sob a forma de um simples clique de “mouse”: “Olhe, eu não concordo com o que escreve, mas o apoio por escrever, o apoio por produzir, o apoio por trabalhar”… Algo assim.

Ficam a espreita de algo em que possam se apegar, algo que destrua suas frágeis convicções ideológicas e de vida, e ai então partem para o ataque violento, sem respeitar nem a mim, nem aqueles que ousam concordar comigo. Afinal, leio os livros errados pelo ponto de vista deles; penso errado por não pensar igual a eles; ajo errado por não agir igual a eles… Enfim… Sou um “errado” diante de suas certezas tão sólidas.

Há dias atrás completou 44 anos desde que comecei em meu primeiro trabalho, de office boy, aos 14 anos de idade. Antes já tinha trabalho de auxiliar de vendedor de vasos com meu avô. Desde então, exerci inúmeras profissões, de bancário e auxiliar de escritório, de balconista a projetista de brinquedos. Há seis anos criei uma editora artesanal pela qual já publiquei 25 livros meus e outros 50 de outros autores. Trabalhando sozinho, sem apoio, sem dinheiro publico, sem nada. Num canto da minha casa, com moveis e ferramentas que eu mesmo fiz. Isso não bastaria para que meus pares ao menos respeitassem, de alguma forma, aquilo que no fim é minha luta? Parece que não!

E sinto muita vergonha alheia, uma vergonha quase insuportável, em perceber que por não concordarem com meu posicionamento a respeito de política e com meu modo de vida, fazerem disso motivo para se esquivarem de mim, como se esquiva de alguém com doença contagiosa; se ignorarem como se ignora alguém que se tem tanto medo que a simples menção do nome causa tremor. Seria mesmo temor, ou seria outro sentimento?

Dentre essas pessoas, que leem tudo àquilo que escrevo, uma boa parcela não o faz por não concordar. Algumas até concordam, mas não “curtem” para que seus pares ― colegas de faculdade, professores, amigos de coletivos de arte, etc. -, não os vejam como “reacionários”. Em outras palavras, são carneiros pensando que são touros. Carneiros não pensam. Do mesmo jeito que porcos não usam colares.
Há pouco tempo escutei de uma pessoa, diante de um comentário meu sobre a dificuldade que tínhamos depois dos cinquenta anos, de conseguir um trabalho formal, de conseguir sobreviver, que eu não conseguiria trabalho nem de faxineiro. É… Estamos condenados à morte em vida, a depender de favores para sobreviver, a sermos ignorados sob todas as formas para que nossas vozes não possam ser ouvidas. Aprisionam-nos nas masmorras da solidão, nos condenam a fome e a miséria. Afinal, nada nos devem. Afinal, foram gerados entre si mesmos e educados pelos mestres das faculdades. A história lhes mente, pois está sendo escrita com olhos estrábicos. Ah, sim… Esqueci-me de dizer: essa geração nos confronta, agindo diametralmente oposta a nossos pensamentos não por terem pensamentos divergentes, o que seria saudável, mas por transtorno de oposição, para terem a sensação de uma vitória com a qual nunca colaboraram. Gozam por conquistas que não tiveram participação, usufruem de uma colheita que não plantaram e reclamam da qualidade do fruto.

Outro ponto interessante, cuja representação me veio através de uma fotografia de uma garota numa manifestação pseudo-política, que ostentava uma placa: “Meu pai é direita e não me representa.” Há dois aspectos nisso: um é a rebeldia adolescente ― não sei a idade da moça, mas não me pareceu ser uma adolescente -, que é natural, que diz que o primeiro passo para a “vida adulta”. Mas o que me preocupa é até que ponto isso, esse fanatismo religioso travestido de ideologia, pode nos levar. Tenho medo, sim, de que numa situação de exceção, esses mesmos filhos denunciem seus pais como inimigos.

Essas mesmas pessoas que me leem, mas me querem cego; que me escutam, mas que me querem mudo, nada mais são do que mentirosos, que mentem a si mesmo, fingindo que lutam, mas que são incapazes de lutar pela própria vida; que fingem ser independentes, mas que são sempre dependentes daquilo ou daqueles que atacam e condenam. Que são incapazes de fazer algo por si próprio, quem dera por seus semelhantes, por achar que isso é dever do Estado. Não há Estado, há pessoas; não há humanidade, há humanos. E essas mesmas pessoas são as que emporcalham as ruas, que queimam bandeiras, monumentos e trocar nomes de ditadores por nomes de ditadores, nas ruas das cidades. A eles o crime e o criminoso devem ser perdoados, mas desde que seu crime seja justificado por sua causa. Segundo sua ótica Hitler foi um monstro, mas Stalin, que matou muito mais pessoas que ele, foi alguém que em nome de uma revolução popular, é quase elevado à categoria de herói.

Eu defendo que cada um propague e lute por sua ideologia, mas defender um criminoso quando ele representa sua ideologia é dantesco e desumano. Quando uma criança comete um crime, ela deixa de ser criança e se torna um criminoso, mas pela ótica distorcida dessas pessoas, ele sempre será uma vitima, e a verdadeira vitima dele será apenas um inocente util. Tudo em nome de uma revolução que só existe dentro dessas mentes, que a mim são muito, mas muito doentes. São fanáticos, e como fanáticos são muito perigosos.

Estou com 58 anos de idade e abri mão de muitas coisas na vida em função de meus objetivos, desejos e sonhos. Em parte me arrependo, pois ao chegar num ponto em que a saúde começa a fraquejar, os olhos não enxergam tão bem, os dentes quase não sobraram, esperava que pudesse obter ao menos algum respeito pelo que construí, incluindo aí meu pensamento. E respeito não significa concordar, mas respeitar, mesmo. E reconhecer o que causei de bom, ao menos na mesma proporção que reconhecem o que causei de ruim.

Sim, eu sinto vergonha alheia, pois tristeza só se sente pela gente mesmo. E piedade por ninguém. Mas, ao expor meus pensamentos, que afinal de contas é contra aquilo que é ensinado nas escolas, e parece ser algo deplorável, eu exerço algo que sempre preguei e vivi. Não tenho um discurso e uma pratica diferentes. Meu discurso e minha prática são os mesmos. E parece ser esse o motivo do desprezo que sentem por mim. Então eu poderia dizer que estamos empatados na questão desprezo, mas não sinto desprezo pelos que agem assim comigo, sinto vergonha!

O que me resta nesta história? Arrastar-me feito uma barata? Prostrar-me de joelhos e pedir clemência? Cooptar as ideologias com as quais não concordo? Ou sucumbir na tristeza e angústia que leva ao infarto ou ao derrame cerebral? Ou simplesmente pendurar uma corda no alto do meu barraco e acabar de vez com a minha história, deixando que continuem a contá-la sem mim até virar esquecimento?

Querem-me de pijama, com gorda aposentadoria e jogando dominó no bar da esquina. Querem-me calado, fútil e dependente. Querem-me limpando os narizes ranhentos de seus filhos. Querem-me consertando seus telhados, regando seus jardins, carregando suas compras com um sorriso patético no rosto. Querem inerte e friorento, de dentadura caindo da boca, babando na camisa. Querem isso e aquilo. Mas não, não serei assim. Mas eu continuo a escrever pelado, trepando e bebendo. Tudo por prazer. Vou espernear até morrer e incomodar o quanto puder.

Já enterrei muitos ídolos, e de fato não preciso deles. E nem de suas “curtidas” numa rede social! Fiz muito além disso. E vou continuar fazendo. E qual é seu papel, mesmo? O seu feito é o quê, mesmo?
É… Sinto vergonha alheia!

22/09/2016

Barata Cichetto, 1958, Araraquara – SP, é poeta, escritor. Criador e editor do Agulha.xyz, e Livre Pensador.

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