Arte: Vinícius Pereira

A Morte Dorme Em Veneza

Veneza, verão de 1992.
O calor não apenas queimava — derretia as certezas. A cidade flutuava num espelho de ouro gasto, e o ar tinha cheiro de vinho azedo, maresia e tempo. O sol refletia nas águas dos canais, tornando o próprio céu um lago de bronze líquido.

Baratex caminhava pela ponte de Rialto com o cigarro aceso e uma garrafa de Chianti pendendo da mão. O sobretudo surrado carregava o peso de outros invernos, e o olhar, o tédio de quem já viu o fim do mundo mais de uma vez e achou pouco. José Cat o acompanhava em silêncio. A pelagem prateada brilhava sob a luz, e os olhos âmbar refletiam o caos da cidade — como se buscassem Deus entre as gôndolas e os reflexos distorcidos do canal.
“Você sente esse cheiro, Zé?”, perguntou Baratex, sem virar o rosto.

José Cat ergueu o focinho, farejando. “Cheiro de mofo e arrependimento.”

Baratex sorriu. “Veneza fede a beleza vencida. É o perfume das cidades que aprenderam a envelhecer devagar.”
“Faz tempo que não vínhamos para a Itália. A última vez foi em Florença”, murmurou o felino.

Baratex riu. “1984. Ô, se lembro… Saudades da Cleuzeni.”

“Vaqueiro tonto… A primeira coisa de que logo se lembra é de sua luxúria desenfreada. Eu, particularmente, me lembro de interagirmos com o Doutor Sócrates”, rebateu José Cat.
“Ah, mas, tratando-se do nosso querido Magrão, aquele ano foi péssimo pra ele. Coitado, não se deu bem com a camisa da Fiorentina. Paciência”, Baratex deu de ombros.

Eles pararam diante de um pequeno café à beira do canal. As cadeiras eram de ferro enferrujado, e o toldo, manchado de vinho e sol. Lá dentro, um homem enxugava copos, cantarolando um samba antigo com sotaque misturado — metade italiano, metade brasileiro.
“Olha só quem está cantando… Olha o danado aí!”, brincou Baratex, olhando para José Cat e, em seguida, para o interior do café.

Quando o homem viu Baratex, imediatamente abriu um sorriso largo e vivo, desses que iluminam até o lado podre do mundo. A pele morena reluzia como cobre, e os cabelos curtos, encaracolados, pareciam brincar com o vento salgado. Os olhos escuros brilhavam com aquela alegria teimosa dos que aprenderam a rir mesmo com as piadas sem graça que a vida nos proporciona às vezes. O corpo, firme e ágil, movia-se com a natural elegância de quem carrega o sol dentro dos gestos — um homem acostumado a vencer o cansaço sem nunca perder a graça.
“Olha só quem resolveu pisar em Veneza!”, gritou ele, abrindo os braços.

Baratex não conteve o riso. “Luís Antônio, seu desgraçado! Pensei que o Adriático já tivesse te engolido.”
“Nem o mar me aguenta, poetinha!”, respondeu o homem, abraçando-o com força. O cheiro de café, sal e suor era o mesmo de vinte anos atrás, quando haviam se conhecido num cais esquecido de Lisboa.

José Cat observava, curioso. Luís Antônio o cumprimentou com naturalidade, sem espanto nem cerimônia. “E aí, meu amigo? Continua de olho no poeta, né? Esse cara precisa de anjo da guarda e exorcista.” José Cat riu baixo. “Sou as duas coisas, quando ele me deixa.”

Luís Antônio bateu nas costas de Baratex e o conduziu até uma mesa. “Senta aí, vou trazer café fresco. Aqui, o espresso é tão forte que ressuscita até ideia ruim.”

Voltou pouco depois com três xícaras fumegantes e um copo de água com limão. Sentou-se de frente, apoiando os cotovelos na mesa. “O festival tá pegando fogo, Barata. Poeta de todo canto. Uns escrevem por amor, outros por dívida. De todo modo, o vinho é de graça pra todos.”

Baratex sorriu de canto. “Um bom motivo pra acreditar na cultura.”

Luís Antônio baixou o tom, conspiratório. “Mas tem coisa errada no ar. Dois poetas foram encontrados mortos esta semana. Afogados. O gozado é que ambos estavam com uma rosa vermelha na boca. A polícia acha que foi suicídio. Eu acho que foi encenação.”

José Cat apoiou a xícara. “E o motivo?”

“Um deles tinha o peito riscado com umas palavras… Uns versos, entende? E o pior: escritos com sangue.”
“Misericórdia, Senhor”, sussurrou José Cat.

“É aí que entra o motivo de eu ter enviado uma carta pra você”, Luís Antônio se aproximou do rosto de Baratex. “O verso escrito no cadáver era um dos seus.”

Baratex levantou a sobrancelha. “Meus versos sempre matam alguém, mas nunca literalmente.”

Luís Antônio riu, se afastando. “Essa cidade tá doente, poetinha. Veneza apodrece devagar. Tem gente demais viva por engano.”
“Então é o lugar certo pra mim”, disse Baratex, acendendo outro cigarro.

José Cat olhou para o amigo com severidade silenciosa. “Você veio pra investigar ou pra se perder de novo?”
“Depende das circunstâncias, Zé. E da eventual companhia, é claro. O mundo é recheado de damas, como um jardim repleto de flores.”

Luís Antônio interrompeu, servindo mais café. “Vai ter leitura no Palazzo dei Miracoli, hoje à noite. O tal do Augusto D’Amore, diplomata brasileiro, tá bancando o evento. Um sujeito elegante, mas com o olhar de gente marrenta.”

Baratex soprou a fumaça e murmurou: “Sei…”

“Então tenha cuidado”, alertou o barqueiro. “Aqui, quem não morre afogado, morre esquecido.”

Baratex se levantou, pegando a garrafa de Chianti e o chapéu. “O esquecimento é o único descanso que ainda me parece justo.”

José Cat bufou. “Vamos investigar isso. A Palavra do Senhor diz, em Lucas, que ‘não há nada oculto que não venha a ser revelado’. Todo aquele que pratica o mal acaba caindo em nosso caminho. Eu e Baratex fazemos a obra.”
“Não. Na verdade, é você que faz a obra aí, Zé. Eu sou eu, ajo por mim mesmo”, o caubói filosófico cutucou o amigo felino.
“Tolo… É um instrumento da justiça do Senhor há tempos, querendo ou não.”

A noite caiu sobre os canais com a delicadeza de um véu de luto. O Palazzo dei Miracoli resplandecia sob a luz dos candelabros, e os ecos dos passos se misturavam a risadas e taças tilintando. Poetas, críticos, diplomatas e diletantes circulavam pelo salão, cada um fingindo entender a alma dos outros.

Baratex bebia devagar, observando como quem estudava uma espécie ameaçada. José Cat, imóvel, encostado numa coluna, parecia um ídolo guardião entre os convidados.

Um homem de aparência nobre se aproximou, carregando uma taça com a lentidão estudada de quem domina o próprio tempo. Tinha o rosto pálido, marcado por rugas finas que não denunciavam fraqueza, mas experiência. O cabelo, grisalho e cuidadosamente penteado para trás, brilhava sob a luz dos candelabros como prata polida. Os olhos — de um cinza cortante, quase translúcido — observavam Baratex com o mesmo interesse clínico de um cirurgião diante do coração aberto de um paciente. O sorriso era contido, educado, mas sem calor algum. Havia nele algo de encantador e, ao mesmo tempo, ameaçador, como em um homem que aprendeu a usar a gentileza como faca.

A voz, quando falou, soou grave e sedosa, carregada de uma calma artificial que escondia domínio absoluto da cena.
“Luiz Carlos Barata. Ou devo dizer… Baratex, o poeta indesejável do Brasil?”

Baratex virou-se, sem pressa. “E o senhor deve ser o anfitrião das vaidades… Augusto D’Amore, certo?”

O homem sorriu. “Admiro quem ainda acredita em insolência como arte.”
“E eu admiro quem acredita em arte como desculpa”, respondeu Baratex, servindo-se de vinho.

D’Amore ergueu a taça. “Brindemos, então. À eternidade dos versos.”
“E à brevidade dos autores”, completou Baratex.

Mas o brinde nunca se completou. Um grito atravessou o salão. O som das cordas do quarteto parou abrupto. Todos se voltaram para o canal interno que cortava o palácio.

Um corpo boiava sob as luzes — um jovem de terno escuro, uma rosa vermelha na boca e uma ferida no peito. No peito, escrito em sangue, um verso:
“O sangue seca, o amor evapora, e o resto é só memória com cheiro de vinho.”

Baratex sentiu o ar sumir. José Cat o olhou, desconfiado. “Esse verso é seu.”

O poeta tragou o cigarro, o olhar perdido no cadáver. “É”, murmurou. “Mas não fui eu que escrevi dessa vez.”

O corpo do poeta foi retirado do canal sob a constante observação das câmeras de jornalistas. Em Veneza, até a morte tinha plateia. Os convidados do festival se dispersavam entre taças de vinho e murmúrios discretos, como se a tragédia fosse apenas parte da programação cultural.

Baratex observava tudo em silêncio, encostado na balaustrada, tragando devagar. José Cat o olhava de lado, entre curioso e irritado.
“Você podia ao menos demonstrar espanto, Baratex.”
“Espanto é luxo de quem ainda se comove, Zé. Eu só tô cansado. O pior de tudo é saber que eu tenho um admirador secreto.”

José Cat suspirou. “Mesmo diante da morte, você ainda zomba.”
“Zombar é minha forma de rezar, meu caro apóstolo.”

Um policial se aproximou, gesticulando com impaciência.
“Signore Cichetto, la polizia desidera parlare con voi. È importante.” Baratex assentiu com um aceno displicente. “Claro, claro… Achei até chique eu ter sido chamado pelo meu sobrenome. Por isso, mais do que nunca, irei acompanhá-lo, policial.”

José Cat revirou os olhos com o comentário do amigo. O felino antropomórfico se questionava o quanto Baratex era tão implacavelmente azedo.

A delegacia era um labirinto úmido e mal iluminado. O inspetor responsável, um veneziano obeso de bigode grosso e paletó gasto, fumava charutos como se quisesse competir com o tempo.
“Dizem que o verso no cadáver é seu”, disse ele, com o tom de quem acusa e pede autógrafo ao mesmo tempo.
“Meu, sim. Mas foi publicado há uns catorze anos. Era a década de 70 ainda. O assassino tem bom gosto literário, ao menos.”

O homem bufou. “Aqui em Veneza, nada envelhece direito, senhor Barata. Nem os crimes.”
“Chame de Baratex. Prefiro. Se quiser ser mais formal, até que gostei do Cichetto”, o caubói filosófico retrucou.
“Ah, vejo que tem bom humor…”, o inspetor bateu um maço de folhas com força sobre a mesa.

José Cat, sentado numa cadeira de madeira, observava atento. “Há algo de espiritual nisso. O assassino está fazendo rituais com palavras.”

O inspetor o olhou de soslaio. “Inteligente o felino ali, não?”
“Ele é, sim. Basicamente o Tom. Só não sou o Jerry, por favor.”

Antes que o inspetor explodisse, uma voz feminina interrompeu: “Com licença. Ah, o famigerado Baratex…”

Ela entrou com um porte sereno, quase litúrgico, mas havia algo de pecado em cada gesto. Vestia preto da cabeça aos pés — tecido leve, que se movia como fumaça ao redor do corpo esguio.

Os cabelos, presos num coque despretensioso, deixavam escapar algumas mechas rebeldes que caíam sobre o rosto como linhas desenhadas por acaso. Os olhos, de um verde profundo, tinham o brilho incômodo de quem enxerga o que os outros escondem. O batom era vermelho-escuro, e o contraste com a pele clara dava a impressão de um quadro antigo ganhando vida sob luz indecente. Havia nas mãos vestígios de tinta azul, como se tivesse acabado de tocar o céu e trazido prova. O perfume que a antecedia era discreto, mas inconfundível — jasmim e pólvora.
“Lucia Moretti”, apresentou-se, com voz baixa e música nos intervalos.
“Sou restauradora da Basílica de São Marcos. O festival me pediu ajuda para identificar o manuscrito usado no corpo.”

Baratex a encarou com interesse imediato. “Primeiramente, é um prazer. E como anda sua investigação, senhorita?”

Lucia abriu uma pasta de couro e mostrou uma folha manchada de sangue seco.
“É papel artesanal, fabricado em Murano. O mesmo tipo usado nos convites do diplomata D’Amore. O assassino teve acesso à gráfica particular dele.”

José Cat arqueou as sobrancelhas. “Ou trabalha pra ele.”

Lucia assentiu, sem hesitar. “Ou o odeia o suficiente para se disfarçar
de aliado.”

Baratex pegou a folha e cheirou. “Bem, só o fato de provar que não tenho envolvimento nisso já me encanta. Cheiro de tinta e… jasmim?”
“E quem disse que você não é suspeito?”, rebateu o inspetor.
“Um momento, senhor”, Lucia interrompeu o inspetor e voltou a fitar

Baratex. “Sim. O papel foi perfumado. O mesmo perfume que D’Amore usa — Eau de Jerez. Uma mistura de jasmim e vinho.”

O poeta sorriu. “O perfume da inveja, Zé. Nada mais venenoso.”
“Estamos progredindo, pelo visto”, José Cat sorriu.

Horas depois, no cais, a névoa se arrastava como se o mar fumasse em segredo. Luís Antônio esperava com um jornal amassado nas mãos.
“Você virou notícia, poetinha. O festival vai te adorar agora. Metade te acha um assassino, a outra metade quer te dar um prêmio.”

Baratex tomou o jornal, leu a manchete:
“Poeta brasileiro ligado a crimes passionais em Veneza.” Riu. “Pelo menos acertaram a nacionalidade.”

José Cat, sério, observava o canal. “Quem mata com poesia quer ser lembrado. Não é ódio, é carência. Só o Senhor preenche esse vazio em nossa essência.”

Luís Antônio olhou para ele. “Você fala como padre.”
“Eu preferiria ser denominado um pastor.”

Luís Antônio riu. “Tudo bem. A seu critério. Cresci em família evangélica.”
“Bom. Pelo menos alguém com uma base lúcida por aqui”, José Cat sorriu.

Baratex tragou o cigarro, olhando o reflexo das luzes sobre a água. “Eu sou um sujeito sortudo. As mulheres são sempre uma luz no fim do túnel pra mim. Essa Lucia Moretti aliviou minha barra com os tiras.”

“É um fato. Mas tenha cuidado, meu nobre amigo”, José Cat pôs a mão felpuda no ombro de Baratex. “Não acha conveniente demais esse auxílio dela?”

“Acredito que a conveniência é meu bom e velho charme”, o caubói filosófico riu.

Naquela noite, Lucia foi até o pequeno quarto de pensão onde o poeta e o felino se hospedavam. Levava consigo um caderno de capa azul.
“Encontrei isto no depósito da gráfica. Tem anotações em latim e fragmentos de poemas seus, recortados de revistas. O assassino está montando uma colagem da sua vida.”

Baratex folheou o caderno. As páginas tinham fotos antigas, versos riscados, desenhos de rosas e manchas de vinho. No centro, um título: “A Última Leitura de Baratex.”

José Cat aproximou-se. “Isso é um epitáfio.”

Lucia fitou o poeta. “Seja quem for, ele quer transformar sua morte em performance.”

Baratex fechou o caderno e acendeu outro cigarro. “Então ele vai ter plateia. Mas quem escreve meu fim sou eu.”

Na madrugada, o vento soprou vindo do mar, trazendo o cheiro de chuva e sal. De uma sacada alta, Augusto D’Amore observava a cidade adormecida. O rosto pálido estava sereno, quase beatífico. Em suas mãos, segurava uma rosa vermelha e um bilhete manchado de vinho. Sussurrou para si mesmo:
“Os poetas são deuses que sangram bonito.”

Na noite seguinte, ocorria um baile no Palazzo D’Amore, que se estendia como uma ópera em chamas. O vinho era derramado como se fosse bênção, e as risadas ecoavam com a leveza de quem nunca acreditou em culpa. Candelabros tremulavam sob o teto dourado, projetando sombras que dançavam sobre os rostos mascarados.

Baratex observava de longe, cigarro aceso, como quem assiste ao fim do mundo pela segunda vez. Ao seu lado, José Cat se equilibrava em uma taça de leite, olhando para as pessoas como um teólogo entre pecadores.
“Isso aqui parece o inferno com ar-condicionado”, murmurou o felino.
“E com música melhor”, respondeu Baratex, tragando a fumaça.

Lucia Moretti chegou pouco depois, deslizando pelo salão. Vestia preto e prata, e o olhar dela cortava o ambiente como lâmina coberta de perfume. Aproximou-se dos dois com um sorriso estudado, tão leve quanto perigoso.
“Vocês parecem deslocados, senhores. Este é um baile, não um velório.”
“Depende de quem está sendo enterrado”, respondeu Baratex, servindo mais vinho. “Alguns dançam melhor mortos.”

Lucia riu e pousou a mão sobre o ombro dele. “Cuidado, poeta. Em Veneza, as palavras escorregam.”

Antes que o comentário rendesse, uma voz macia e autoritária os interrompeu.
“Boa noite, meus convidados preferidos.”

Augusto D’Amore surgiu por trás deles, impecável, de fraque negro e luvas de couro. O rosto pálido refletia a luz das velas, e os olhos cinzentos continham a calma cruel dos que já decidiram o destino dos outros.
“Luiz Carlos Barata Cichetto… Cá estamos nós de novo, frente a frente, como dois gladiadores da nobreza.”
“E o senhor continua o mesmo patrono da decadência”, respondeu Baratex, com o mesmo tédio afiado de sempre.

D’Amore sorriu, satisfeito. “Decadência é apenas civilização com boa memória.”

Lucia interveio, desconfortável. “Com licença, senhores. Vou ao toalete.”

Ela desapareceu entre os convidados, deixando atrás de si o cheiro de jasmim e tensão.

D’Amore serviu mais vinho nas taças. “Sabe o que me fascina em você, Baratex? Você carrega a morte como quem carrega um instrumento musical. Toca a desgraça com maestria e chama isso de arte.”

Baratex sorriu de canto. “E o senhor a financia. Somos cúmplices, no mínimo.”

O diplomata ergueu a taça. “Brindemos, então. À arte que mata seus autores.”

Antes que o cristal tocasse, um grito cortou o salão. O som das cordas cessou abruptamente, e um turbilhão de vozes se ergueu.

Outro corpo — mais um poeta. Caído próximo ao palco, o peito marcado com versos. O vinho e o sangue se misturavam no chão, como se a própria cidade bebesse seus artistas.

José Cat arregalou os olhos. “Ali! Uma figura mascarada, fugindo pelos fundos!”

Sem hesitar, o felino saltou da mesa e correu entre os convidados, abrindo caminho em meio ao pânico. Baratex tentou acompanhá-lo, mas foi impedido pelo tumulto.

A perseguição do felino antropomórfico ao mascarado se estendeu até os Jardins do Palazzo. A lua se refletia no espelho d’água enquanto José Cat corria com todas as forças extraídas de seu interior. O vento balançava as árvores, e o som das folhas era o único aplauso daquele duelo iminente.

O mascarado parou, girando o corpo. José Cat rosnou. “Mostre o rosto, covarde!”

A resposta veio em silêncio, em um golpe seco, rápido, preciso. A luta começou.

Corpos colidiam como notas dissonantes de uma sinfonia desesperada. O felino era ágil, mas o mascarado lutava com a frieza de quem não teme a dor.

Socos, quedas, arranhões — até que José Cat foi lançado contra uma estátua, caindo de joelhos, atordoado.

O mascarado sacou uma adaga, e se aproximou para o golpe final. Foi então que um disparo cortou o ar.

A bala acertou o ombro do mascarado, que tombou com um grito abafado. Baratex surgiu na beira do jardim, revólver em punho, respiração pesada.
“Fica parado, ou eu transformo poesia em obituário.”

Ele se aproximou, chutou a arma branca do chão e arrancou a máscara do ferido. Por um segundo, o mundo parou.

Luís Antônio.

O sangue escorria do ombro, e o olhar dele misturava dor e vergonha. “Poetinha… você… sempre foi… meu herói.”

Baratex ficou mudo. José Cat, ainda caído, apenas observava, atônito. Luís tossiu sangue e continuou, com a voz fraca: “Não queria te ferir… mas D’Amore… ele… ele fez a gente acreditar… que a arte só vale… se custar uma vida.”
“Cala a boca, Luís. A gente conversa depois, entendeu? Você vai sobreviver.”

O barqueiro sorriu, fraco, o olhar perdido no céu. “Em Veneza… ninguém sobrevive. Só… afunda bonito.”

E então, o peito dele parou de se mover. Um som metálico ressoou atrás deles. Baratex virou-se, avistando Augusto D’Amore, de pé, com uma pistola prateada apontada para o peito do poeta. O terno impecável, o olhar sereno.

“Bravo, Baratex. Um belo final de ato. A plateia invisível deve estar emocionada.”
“Você é doente, D’Amore.”
“Sou apenas coerente. A arte é o único crime aceitável, e você é a prova viva disso. Eu o trouxe aqui pra escrever o último verso da humanidade.”

Baratex deu um passo à frente. “E quem vai escrever o seu epitáfio?”

D’Amore sorriu. “Eu mesmo. Sempre tive boa caligrafia.”

Mas antes que o disparo viesse, um som de vidro quebrando ecoou. Lucia Moretti surgiu por trás, golpeando D’Amore com um jarro de cristal. O diplomata tombou, desacordado.
“Touché”, ela disse, colocando fios de seu cabelo que escorriam em seu rosto para trás da orelha.
“Acho que estou apaixonado”, brincou Baratex.
“Chegamos ao fim do poema, Baratex”, disse José Cat.

Na manhã seguinte, o sol nascia sobre os canais, dourando as águas como se o mundo fingisse inocência. Baratex e Lucia seguiam de gôndola, em silêncio.

“Disseram que D’Amore foi preso. Vai passar o resto da vida trancado, sem plateia”, disse ela, baixinho.
“Não existe prisão pior que o esquecimento”, respondeu o poeta.
Lucia o olhou de lado. “E Luís Antônio?”

Baratex tragou o cigarro, olhando o horizonte. “Virou metáfora. A mais triste que já escrevi.”

Ela encostou a cabeça no ombro dele. “Ele te amava.”
“E me matou por isso. Como todo bom leitor.”

Ficaram em silêncio por um tempo, ouvindo apenas o som do remo cortando a água. Lucia apertou a mão dele. “E agora, pra onde vai, Baratex?”

Ele sorriu, amargo. “Pra onde o vinho for mais barato e o pecado, mais poético.”

José Cat, do outro lado da gôndola, bufou. “E onde o diabo ainda serve café.”

Baratex riu. “Então continuamos juntos, meu velho.”

O caubói filosófico tomou Lucia em seus braços, que retribuiu, fazendo com que o poeta se afogasse em seu doce beijo. A gôndola seguiu pelos canais, desaparecendo entre as pontes. Veneza, eterna e podre, voltou a dormir — embalada pelo sangue, pelo vinho e pelo verso.  

Vinícius Pereira , Nova Iguaçú, RJ, já teve vários perfis em sites de fanfics. Após um longo hiato, por intermédio do destino (ou o que quer que prefira definir), ele retorna à escrita com a série de contos das aventuras do Baratex, figura que homenageia o grande Barata Cichetto.

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