Prólogo: A vida, nas manhãs que se acordam, deslizam entre o delírio e o encanto, uma meia infância que insiste em não crescer, em não largar os deslumbramentos de uma infância que ainda faz a cidade brincar de amarelinha. As linhas do chão parecem se rearranjar em quadrados, e tudo é um desafio para os pés que pulam de pedra em pedra, evitando o limite tênue entre o sonho e a realidade. (Continua…)
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A Crônica do vídeo é um preâmbulo, uma introdução. Complete sua experiência lendo o Conto que dela se originou, a complementa e, ao mesmo tempo, é complementado por ela. Esta é a proposta do Conversas Af.IA.das. Esta é a proposta do Barataverso!
Naquela cidade de infinitas manhãs, as ondas sussurravam segredos. Entre acordar e não acordar, entre meia infância e pré-adolescer, o bairro respirava, e a cada novo dia, trazia a promessa vaga de ser algo mais. As janelas se abriam aos poucos, respirando um ar que misturava maresia e os últimos acordes de uma festa de madrugada. Pelas calçadas, os transeuntes carregavam sonhos meio quebrados, suspensos como fantasmas de algodão-doce, que boiavam e se dissolviam com o sol.
Era o começo do dia, mas para algumas almas, era como se o ontem nunca tivesse acabado. Enquanto as sombras dos coqueiros balançavam, parecia que algo sussurrava em silêncio, uma espécie de monólogo entre a cidade e aqueles que se atreviam a ouvir. Uns se desviavam, pisavam cuidadosamente nas calçadas como se estivessem em uma enorme amarelinha, tentando evitar as linhas que delimitavam o real do delírio.
Então surgia o waldisney local. Um personagem peculiar, com olhos que cintilavam como as lâmpadas trêmulas do calçadão, passeava entre as mesas dos cafés e as esquinas com seu boné surrado, carregando o poder místico de quem parecia conhecer todos os mistérios do bairro. Suas palavras eram desfiadas como um novelo de histórias sem nexo, mas cada sílaba carregava uma verdade que ninguém ousava contestar. Para ele, ali não era apenas um lugar: era uma dimensão entre o ontem e o amanhã, onde até os pombos carregavam pequenos pedaços de sonhos em seus bicos.
A manhã avançava. O sol já aquecia o cimento e refletia nas vitrines, e um homem, sentado em um banco, observava as horas com olhos perdidos, seus pensamentos vagando em círculos. Ele era um dos capangas dessa fantasia disfarçada, um errante que, como tantos outros, acreditava que tudo tinha um sentido que ele ainda não havia desvendado. Às vezes, conversava com a sombra dos coqueiros, perguntando onde estavam escondidas as respostas para as perguntas que nunca ousava formular. E quando não conseguia resposta, apenas ria. Ria com aquele riso preso entre os dentes, uma risada de quem descobre que está jogando contra si mesmo, num jogo onde as regras se transformam a cada nova manhã.
Na calçada, uma senhora observava, enrolada em seu casaco xadrez, segurando uma bengala e o olhar de quem já viu todas as cidades se reinventarem. Ela parecia estar ali desde sempre, como uma sentinela das manhãs efêmeras. “O mundo é uma eterna saudade”, murmurava para ninguém em especial, e talvez ela estivesse certa. Para quem ouvia, seu murmúrio parecia ecoar, transformando o ar à sua volta num peso leve, um perfume de memórias que ninguém mais sabia onde encontrar.
Assim, naquele universo entrelaçado, onde sonhos, desenganos e promessas se dissolviam como grãos de areia na água salgada, a manhã avançava até o meio-dia. E enquanto o bairro seguia seu ciclo, a cidade, indiferente, continuava a respirar o vai-e-vem de esperanças vãs e modernidades que passavam, deixando apenas o rastro daquilo que nunca deixariam de ser: a cidade, com suas manhãs de realidade tingida de delírio.
À medida que o meio-dia se aproximava, parecia inalar o próprio delírio, cada raio de sol impregnando as fachadas dos prédios e as calçadas onduladas. Havia um velho parado em frente a uma loja de suvenires, encarando uma miniatura do calçadão, como se, por alguma razão misteriosa, aquele pedacinho de mosaico contivesse a chave de um mistério muito maior. Com um sorriso meio torto, ele girava o pequeno objeto entre os dedos, mas antes que pudesse entender o motivo do seu fascínio, ouviu uma voz rouca e familiar ao seu lado.
“Cada pedrinha desse calçadão tem uma história, sabia?” disse waldisney, aparecendo do nada, com um cigarro prestes a cair do canto da boca. O velho virou-se, surpreso com a presença inesperada, e respondeu sem hesitar: “E quem é você pra saber das histórias dessas pedras?”
Waldisney soltou uma risada, um som mais rouco que o mar de ressaca, como se ele realmente soubesse algo que ninguém mais sabia. “Eu sou só mais um personagem, amigo. Igual a você, igual a ela,” e apontou para uma senhora com um guarda-sol cor-de-rosa que dançava sozinha, embalada pelo som da música de uma caixa de som antiga.
Para waldisney, o velho e a senhora não eram apenas pessoas solitárias num bairro à beira-mar; eram fragmentos de uma época que existia num espaço além do tempo. Ele sabia que ninguém ali era apenas uma figura qualquer: cada um representava um ponto, um traço daquele imenso mosaico que, visto do alto, contava histórias que só o calçadão entendia. Ele sabia que o bairro não vivia apenas no presente; ele carregava as risadas dos anos 70, o saudosismo dos anos 80 e as nostalgias de cada década seguinte, tudo misturado numa atmosfera de sal e sol.
Enquanto o relógio ultrapassava o meio-dia, as sombras encurtavam, e a cidade parecia respirar mais rápido. O velho, agora hipnotizado pelas palavras de waldisney, sentiu-se parte daquele jogo surreal. Foi como se cada passo seu, ao longo dos anos, tivesse deixado uma marca invisível nas pedras; e agora, ele podia sentir uma conexão vibrante, quase elétrica, com cada centímetro do bairro.
“Já pensou se essas pedras pudessem falar?” waldisney murmurou, olhando fixamente para o velho, que, pela primeira vez em anos, se pegou pensando na vida de cada pedra, em quantos passos e quantas histórias estavam ali, entrelaçadas. E, por um segundo, ele jurou que o calçadão balançou sutilmente, como se tivesse se tornado um mar sólido, ondulando sob seus pés. A sensação era breve, mas clara; talvez fosse a cidade que falava, ou apenas o efeito da fantasia, que se tornava cada vez mais real nas manhãs daquele bairro encantado.
Então, enquanto o sol brilhava no alto e as ondas batiam nas pedras da orla, waldisney desapareceu em meio à multidão, deixando para trás a dúvida de sua própria existência. O velho olhou em volta, incerto se aquilo havia mesmo acontecido. Mas ao se inclinar para tocar o chão, sentiu como se uma energia quente lhe subisse pelos dedos, invadindo o corpo. E foi ali, naquele instante, que ele compreendeu: não era só um bairro; era um sonho coletivo, um delírio ao alcance de quem ousava acreditar.
E antes que pudesse se deter, sussurrou para si mesmo: “Bom dia de novo… Até amanhã…”
Com o murmúrio de sua despedida flutuando no ar, o velho se levantou e caminhou em direção ao horizonte dourado do mar. Cada passo, cada som de sapato contra a calçada, parecia uma despedida silenciosa ao dia que se esvaía, enquanto a cidade se reacomodava em seu ritmo eterno. O local, com sua vastidão de histórias, seus delírios entrelaçados e promessas sussurradas, deixava um rastro de possibilidades suspensas.
Na esquina, ele viu a senhora de guarda-sol rosa que, com um sorriso melancólico, acenou para ele como se soubesse de um segredo guardado apenas para aqueles que viam além das fachadas. E talvez ela soubesse mesmo, afinal, as manhãs se repetiam com a precisão de um relógio quebrado, sempre iguais e sempre novas, onde o real e o irreal brincavam de se misturar.
Quando o velho finalmente chegou à beira da areia, observou o sol baixando no mar e, com ele, as últimas promessas do dia. Sentiu-se parte de algo muito maior, como se cada detalhe daquela cidade tivesse esperado só por ele para testemunhar aquele instante final. E então, enquanto as luzes da noite começavam a acender, ele suspirou, sabendo que ao amanhecer, a cidade renasceria — como sempre — pronta para contar suas histórias a quem quisesse ouvi-las.
Até amanhã, sussurrou mais uma vez, certo de que a cidade, com suas fantasias e encantos, esperava pelo reencontro. E ao virar as costas, percebeu que, por mais um dia, ele também havia se tornado uma lenda, um fragmento imortal do delírio eterno que era viver ali.
Renato Pittas, Rio de Janeiro, RJ, é artista plástico, poeta, escritor e Livre Pensador. Autor de Tagarelices: Conversas Fiadas Com as IAs.