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Do “Isto Fica Feliz Em Servir!” Ao Isto Fica Feliz em Ser Vil

Atualizado em 02/11/2024 as 13:12:49

Quem sou eu, afinal? O Senhor Romney Wordsworth de “O Homem Obsoleto” em Além da Imaginação, um bibliotecário que é julgado dispensável pelo sistema vigente e que é condenado à morte? Andrew Martin, o androide que quer apenas ser reconhecido como humano, em “O Homem Bicentenário”? Ou talvez Malcolm Crowe, de “O Sexto Sentido”, um psiquiatra que pensa que seu paciente tem visões com mortos, sem entender que é ele quem está morto?

Que outros filmes, séries, livros, contos, histórias, eu poderia citar como referência e comparação? Decerto há muitos outros, porque é certo que muitos escritores ou mesmo pessoas que não têm essa “capacidade” se sentem, sentiram ou sentirão que simplesmente não existem? Escritores são seres humanos — quase — normais e assim, colocam nas suas obras, mesmo que sejam até ficção científica ou poesia, o que sentem e vivenciam como partes das personalidades, traumas e falas de suas personagens. É inevitável.

Questões como a aceitação de seu trabalho e, como decorrência ou incorrência, de sua pessoa, e o reconhecimento nos mesmos planos, como trabalho e pessoa, são traços inerentes a muitas obras de ficção — sejam ou não científica — que nos encantam e emocionam.

Não sou — nunca fui — de me emocionar a ponto de engasgar e lacrimejar, com nenhum filme, série ou livro, até porque não gosto de coisas “melosas”, mas a citação dessas três obras acima, sim, me fizeram embargar a voz ao falar e, mesmo contra a minha vontade consciente, deixar descer uma lágrima, mesmo que seca.

Claro que as emoções que sentimos ao assistir a um filme ou série ou ler um livro, etc., têm a ver com o momento pelo qual passamos quando o fazemos, e que passam, ou ao menos deveriam passar, quando novas realidades nos atingem. Mas… Às vezes não é bem o que acontece.

Apenas me restringindo às minhas três citações, e deixando claros os contextos, creio que certas experiências são tão traumáticas que, mesmo mudando nosso momento, nossa realidade, de estado de espírito ao local, e todos os outros elementos ao nosso redor, ainda guardamos a essência… Tem razão, querido ou querida leitor ou leitora mais astuto: é porque aquilo que nos causava incômodo se tornou tão recorrente, que parece que o tempo não passou.

O primeiro momento citado é do seriado Além da Imaginação que fora produzido ainda nos anos 50/60, mas eu assisti quando tinha cerca de 16 ou 17 anos, na década de 1970. Na época, minha única forma de ler livros era na Biblioteca Pública, e assim criei vínculos emocionais com bibliotecários, o que me fez sentir uma tristeza imensa em saber que poderia chegar um dia em que eles seriam exterminados por não serem mais necessários à sociedade. Mal sabia eu que sobreviveria para conviver com a quase inexistência de bibliotecas e a obsolescência ser determinada apenas por desinteresse nos livros. Creio que ali chorei por antecipação, lágrimas futurológicas, talvez.

O segundo, já bem no final do século vinte, o filme em que Bruce Willis dá um espetáculo de interpretação como o psiquiatra, tem muita ligação com o momento pelo qual eu passava, com um casamento de quase vinte anos dando seus últimos suspiros, embora eu ainda mantivesse minhas obrigações financeiras, morais e sexuais, mas sendo sonoramente ignorado por esposa e filhos. Cheguei até a duvidar de minha própria sanidade e me sentia realmente como uma pessoa que havia morrido e que não tinha tal consciência e assim tentava interagir com um mundo ao qual não mais pertencia. É… Eu não pertencia mais… Ao menos não ao mundo daquelas pessoas, mas ninguém ali tinha essa consciência.

Por fim — e esse é de longe o que mais me perturba até hoje, que foi realizado quase na mesma época que o anterior, mas que assisti poucos anos depois — “O Homem Bicentenário“. E os motivos são longos e vários, portanto tenham um pouco de paciência em continuar a ler. Tem várias camadas e aspectos a serem explanados. Obrigado!

A Eles:

Em resumo, a sinopse diz: “Um robô doméstico incorpora características humanas e emoções da família para quem trabalha há 200 anos. Um dia, um mecânico diz ao androide que pode existir uma maneira de transformá-lo em um ser humano.” Nada de diferente ou inusitado, ao menos numa época em que androide como sistema operacional de telefone nem sonhava em existir e o termo “Inteligência Artificial” não estava até nas bocas e cus de cachorros. E o primeiro detalhe que me chamou a atenção foi que a história era baseada num conto de Isaac Asimov, cientista e escritor que tinha me deliciado com “Eu, Robô”, e me preocupado com “Escolha a Catástrofe”, por exemplo.

Outro dos autores sobre o qual o filme tinha se baseado era Robert Silverberg, um escritor que me marcou na adolescência ainda nos anos 1970, quando li um conto de ficção científica de sua autoria presente numa coletânea chamada “Rumo Aos Mundos do Futuro“. A história, aparentemente simples, contava a saga de um herói do espaço que tinha travado e vencido guerras estelares, com uma longa folha de serviços. Mas… No final, era chamado à aposentadoria por estar já muito velho. O conto termina com o personagem resignado com seu afastamento por… Já ter vinte anos de idade. Essa era a idade exata que eu tinha quando li esse conto, em 1978, e nunca esqueci, sempre imaginando… Bem, acho que foram outras lágrimas futurológicas que deixei cair. Isso nunca saiu da minha cabeça.

Ah… O filme era protagonizado por um ator pelo qual eu era um grande admirador: Robin Williams, de “Uma Babá Quase Perfeita”, “A Revolta dos Brinquedos” e “Jumanji”, entre outros. Um ator que dava a sensação de ser sempre o certo para um papel. E um artista tão dedicado que aceitara participar do filme passando a metade dele sem mostrar o próprio rosto — conhecemos a vaidade de atores de Hollywood, né?!. — Quando assisti, a situação familiar que contei acima não apenas não tinha melhorado, mas piorado e muito, com filhos e esposa jogando na cisterna minha existência e afirmando a todo momento que nada de mim reconheceriam. Queriam minha história retirando-me das suas, substituindo minha presença por de qualquer outra coisa ou pessoa. Isso eram não apenas mentiras, mas uma desumanidade, com aquilo tudo o que eu tinha feito, suportado e suplantado, não por glória ou plateia, apenas porque queria que tivessem orgulho de mim. Mas a realidade era outra, e o maldito vírus já lhes tinha atingido não apenas a mente, mas o coração. No final do filme, quando Andrew se “programa” para morrer, depois de ter sido negado inúmeras vezes o “direito” a ser reconhecido como ser humano, pelo que tinha sido e feito e por mais nada, decerto me levaram a soluçar, porque também a mim foi retirado o direito a ser reconhecido como ser humano, pelo que fui e fiz. As cenas finais, quando a enfermeira diz: “Como dizia o grande Andrew Martin, ‘Isto fica feliz em servir‘”. Essa frase eu ainda repito, porque em nada mudou, apenas piorou. “Isto fica feliz em servir! Isto fica feliz em servir! Isto fica feliz em servir!”. Ah, mas eu nem sabia o que ainda viria… E que ainda pior ficaria e seria. Aquelas lágrimas secas que escorreram não pelos meus olhos, mas pela minha alma, decerto eram lágrimas futurológicas.

Quando alguns anos depois o ator tirou sua própria vida, minha carga emocional com relação a esse filme aumentou, e muito, pois a associação que eu fizera entre Andrew e Robin era impossível de ser desfeita, e o desejo de auto assassinato também me acometia.

Claro que não poderei deixar de juntar a esse corolário “A Metamorfose“, do genial František Kafka, que me deu, ainda na virada do século vinte para este em que ainda resistentemente habito, o codinome de Barata, pois embora em nenhum momento o autor use a palavra “barata” em sua história, é clara a referência ao inseto que a maioria tem medo, mas eu apenas aprendi a respeitar, com as ressalvas óbvias, como símbolo de resistência. (Desde então nunca mais esmaguei uma barata teimosa no ralo do banheiro: abro a janela e a deixo seguir pelo mundo). Gregor Samsa é como o senhor Wordsworth, um ser obsoleto, um mero caixeiro viajante. É como Malcolm Crowe, que está morto para o mundo e não percebe. E é, finalmente, como Andrew Martin, apenas um “Isto”, que era feliz em sustentar e prover a família como um obsoleto vendedor, sem que sua humanidade nunca fosse realmente reconhecida.

Que caminho então tomou?
Acordar “certa manhã transformado em um inseto monstruoso”, cuja família tem a preocupação não com seu bem-estar, mas por ele não mais poder trabalhar e sustentar, com aquelas patas e a aparência que ninguém iria suportar. Implorar pela misericórdia da própria família e amigos, para que ao menos, como Andrew, ser reconhecido como ser humano. E por fim, achar que está vivo, quando na verdade está morto.

Termino agora assinando meu nome por extenso: Barata Samsa Wordsworth Crowne Martin. O Cichetto eu renego. Podem ficar com ele pelas minhas lágrimas futurísticas derramadas, ao longo dos tempos.

Conclusão… Isto não mais fica feliz em ser útil. Isto não é inútil. Isto não fica feliz em servir. Porque se um dia Isto fui eu, agora que não sou mais Isto, fico feliz em ser vil. Viu? Ouviu? Aquilo, que não sou eu, queria reconhecimento, mas quem agora sou pede apenas… Esquecimento.

Escrito e Publicado em 16/06/2024

Barata Cichetto, Araraquara – SP, é o Criador e Editor do BarataVerso. Poeta e escritor, com mais de 30 livros publicados, também é artista multimídia e Filósofo de Pés Sujos. Um Livre Pensador

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Daniel Carneiro
Daniel Carneiro
16/06/2024 22:32

É, meu caro… tal como o amigo, às vezes também me vejo em alguns desses personagens!

Vinnie Blues
Vinnie Blues
16/06/2024 12:55

Muito bem Barata. As referências são perfeitas ✌️😉

Barata Cichetto
Administrador
Responder a  Vinnie Blues
16/06/2024 13:22

Valeu pelo comentário!

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