Atualizado em 07/08/2024 as 03:35:30
— Sabe quem morreu?
— Não! Quem?
— A Liberdade.
— Não diga! A Liberdade?!… Ela parecia tão bem.
— Engano seu. Há tempo que ela vinha definhando, se sentia muito fraca, quase não comia.
— É mesmo? Mas quando foi que ela adoeceu?
— De fato ela nunca esteve muito bem de saúde, mas de uns anos para cá piorou muito. E quando chegou a Fraudemia, então, ai sim que ela piorou de vez.
— Como assim, ela pegou o Corona?
— Não, meu caro, foi algo muito pior. Naqueles tempos ela sofria ataques todos os dias. E foi quando a gente percebeu que ela realmente não estava bem, e que logo o pior aconteceria. Diziam os tais cientistas, os políticos, que ela fazia mal, que era prejudicial à saúde. Imagine a tristeza que a coitada sentia.
— Imagino… Pobrezinha dela.
— Achamos que depois de tudo aquilo acabado ela se recuperaria, mas ledo engano, porque logo depois, no ano de 22, aconteceram eleições. E foi aí que a saúde dela piorou. Ela era atacada todos os dias, vilipendiada, cuspida, escarrada. Diziam os Juristas que era para o bem da Democracia, e até chegaram ao absurdo de afirmar que ela não era necessária. Assim, de forma arbitrária. Então ela começou a definhar a olhos vistos. Já não conseguia nem falar no último ano. Entrou em profunda depressão, tinha constantemente crises de choro.
— Mas não chamaram médicos para ajuda-la? A Medicina poderia salvá-la.
— Meu amigo, os médicos chamados ou eram incompetentes ou foram impedidos de ajudá-la. E, enfim, agora ela está morta. Nada pode salvá-la, nem mesmo pessoas de bem, leigos até, que lutaram por ela, gente simples que acreditava nela e lutava para que sobrevivesse. Esses também sofreram por tentarem salvar a pobre da Liberdade, que não resistiu a tantos ferimentos, tantas injúrias. E, pasme, meu amigo, aqueles que prometeram protegê-la e defendê-la, foram os que mais a machucaram. Ela confiava neles, e assim ficou mais vulnerável. Pobre ingênua Liberdade.
— Muito triste, muito triste mesmo! Decerto irá fazer muita falta. Era tão boa!
— Decerto que fará falta, mas como sempre, logo as pessoas se esquecem e tocam suas existências sem lembrar, a não ser quando leem algo a respeito ou veem alguma fotografia. Quanto à falta que ela fará, com certeza, mas essa falta só será percebida tarde demais, quando da Liberdade não restar sequer os ossos, tendo sido roída por vermes. Dela nos restará apenas à lembrança, uma lembrança triste de como éramos quando tínhamos esperança.
— É triste demais. Eu gostava muito dela, embora fosse um tanto exigente.
— Exigente, sim. Mas nunca mesquinha nem egoísta. Acredito que tenhas conhecido suas irmãs, a Responsabilidade e a Fidelidade? Essas sim eram exigentes, e tomavam conta direitinho da irmã mais velha.
— Como assim, “eram”, vai me dizer que também morreram?
— Não morreram, mas a Responsabilidade anda desaparecida, ninguém sabe do seu paradeiro. Quando a Fidelidade, dizem que essa virou prostituta.
— E quanto à Liberdade, quando será o velório?
— O velório está acontecendo agora mesmo no Congresso Nacional, mas ninguém pode adentrar ao recinto, porque dizem, o caixão é lacrado para evitar contaminação.
— Contaminação?
— Imagine os ares que o cadáver da Liberdade pode exalar. Isso pode ser muito perigoso para o ar puro daquela casa Legislativa. Por isso também a população foi impedida de prestar as últimas homenagens à Liberdade.
— Que ela descanse em paz!
— Duvido!
05/06/2024
Barata Cichetto, Araraquara – SP, é Criador do BarataVerso. Poeta e escritor, com mais de 30 livros publicados, também é artista multimídia e Filósofo de Pés Sujos. Um Livre Pensador.
Perfeito ! Muito bom meu brother…
Obrigado pelo comentário!
Para ser franco, a Senhora Liberdade nunca teve uma saúde de ferro. Ela, que foi enxotada em 31 de março/1º de abril de 1964, só retornou à Pátria, devidamente documentada, em 1988. De lá para cá ela aparentava vitalidade por causa dos hormônios, vitaminas, sais minerais, e até chazinhos da vovó. Todo mundo acreditava (inclusive este escriba) que ela estava bem, mas era tudo fake. De 2018 para cá, vira e mexe ela respira por aparelhos. Afinal de contas, alguém roubou as fórmulas que a mantinham corada. De todo modo, as aparências precisam ser mantidas a qualquer custo, para desespero de seus algozes.
A Senhora Liberdade não morreu ainda, e nem se sabe por quanto tempo ela ainda vai continuar. Mas quando isso acontecer, talvez seja empalhada e exibida ao público, só para lembrar que ela existiu um dia.
Concordo que a tal senhora, como uma uma entidade, vive dentro de muitos, mas infelizmente não consigo ter o seu otimismo na ressurreição de Liberdade, essa dama tão formosa, e hoje tão pouco famosa,.
Em breve falarei sobre sua mãe, a Dona Democracia, que por descogoto virou puta, na Juristocracia.
Nem me dei conta da existência da matriarca, que anda rodando bolsinha nas esquinas mal iluminadas da política.
Hoje publiquei um texto sobre a Matriarca, inspirado nesses comentários!
O texto é maravilhoso, pena que seja verdade.
Obrigado. Foi algo que saiu assim, numa enxurrada. Quando certas ficam guardadas dentro da cabeça, uma hora saem assim, num impulso.
A democracia, assim como a liberdade, morrem aos poucos. No Brasil arrumaram um jeito de mata-la numa única facada.
Belo texto!
Sim! Podemos dizer que a Dona Democracia é a mãe das três filhas que citei no texto. E que do jeito que a tratam, posso dizer que são elas autênticas filhasdeumaputa!
Muito bem escrito. Ao contrário do que possa parecer, escrever um texto apenas com diálogos, sem a contextualização das descrições de cenários e personagens, não é nada fácil. Infelizmente, este texto é tudo, menos ficcional.
Obrigado, Celso! E olha que partindo de ti esse elogio, me deixa muito envaidecido, por saber do seu rigor (necessário) quanto à língua e a escrita. E, vou te confessar, foi escrito num pulo, ou seja foi vindo tudo na na cabeça de uma vez, sem nenhum rascunho, mental que seja.