Atualizado em 05/06/2024 as 15:58:46
Eu poderia ter sido muitas coisas, pois afinal sempre fui muito curioso, sempre apreciei leituras e musicas, sempre gostei de aprender e de pensar. E principalmente sempre fui muito apaixonado por tudo aquilo que me interessava e, portanto muito dedicado a meus interesses. E aprendia com muita facilidade por esses motivos. Sem muito esforço, durante o curso primário (designação do 1º ao 4º anos do que seria hoje equivalente ao ensino fundamental) durante três dos quatro anos fui considerado o melhor aluno da sala e da escola. Era natural para mim ser dessa forma. No Ginásio (equivalente a 5ª a 8ª séries do Ensino Fundamental hoje) tive meu primeiro contato com o Inglês e aprendi com muita facilidade.
Aos 12 anos de idade era um “Auxiliar de Ambulante”, puxando um carrinho de mão pesado e repleto de vasos de plantas que meu avô fabricava, isso depois de ser o responsável pela alimentação do viveiro de coelhos da criação doméstica de meu pai. Aos 14, um eficiente Office-Boy que rasgava a jato as ruas de São Paulo entregando encomendas e envelopes. Aos 15 e 16 bancário de gravata e paletó. Dos 17 aos 20 um dedicado funcionário de arquivo com especialização no que se desenhava como a panacéia aos montes de papel: Microfilmagem. E neste ponto o que eu poderia ter sido se contorce de raiva em relação ao que fui.
Desde garoto sempre gostara de escrever. E sempre rabiscava minhas histórias, contando coisas simples de um garoto de 10, 12, 14 anos. Eram contos no início, poesias depois. E eu queria ser Jornalista. E teria sido um bom jornalista, acaso não tivesse dado ouvidos a um primo mais velho que eu respeitava como a um irmão. Não fui, mas poderia ter sido… O tempo passou e com ele o desejo e as oportunidades…
Mais tarde, comecei a escrever e mimeografar “jornaizinhos” e distribuir em portas de teatros. Depois veio a edição de livro de poesia e depois… Depois o abandono dos estudos no final do que seria atualmente o Ensino Médio. O fascínio pela escrita, pelas histórias de vida das pessoas e principalmente pelas putas da Boca do Lixo era maior que o desejo de ter uma profissão, uma formação e consequentemente dinheiro. Cursar uma faculdade na época era muito difícil, muito mesmo. As faculdades eram raras e ou caras. E as putas eram abundantes e baratas. Ah, as putas e suas histórias eram o que alimentavam minha paixão. A paixão pela escrita e pelas coisas “proibidas”. Nessa época, tive muitas oportunidades de ser cafetão em função possivelmente da forma como eu tratava aquelas mulheres. E então… Não fui, mas poderia ter sido…. O tempo passou e com ele o desejo e as oportunidades…
Paralelamente, gastava quase todo meu dinheiro em discos, shows e revistas de musica. Criei bandas imaginárias como a maioria dos caras da minha idade. Alguns deles transformaram essas bandas em realidade, mas não eu. Adorava o som do contrabaixo e, ao contrario de meus amigos, eu nunca quis ser guitarrista ou vocalista. Não tinha dinheiro para comprar ou aprender instrumentos musicais e no fim achei que meu papel na musica seria o de falar sobre ela e o fazia nos “jornaizinhos” mimeografados impressos por amigos. Eu poderia ter sido músico. Não fui, mas poderia ter sido… O tempo passou e com ele o desejo e as oportunidades…
Mas num determinado momento nada mais parecia me encantar, nem putas, nem musica, nem sonhos. Tinha algo faltando e eu não conseguia mais sonhar. Ao menos não a sós. E fui ser casado, fui ser pai. Não queria mais criar sonhos, nem idéias, nem mais nada. Apenas filhos. Abri mão dos desejos de ser cafetão, músico, jornalista e principalmente abri mão da poesia e fui ser pai. Fui presente, ensinei meus filhos a pensar com sua própria cabeça, a não acreditar em verdades absolutas. Fui contra todas os ensinamentos pedagógicos e psicanalíticos e desejei transformar filhos em amigos e ensinei-lhes o valor da leitura dando a eles desde muito pequenos, livros para que tomassem contato. FUI, mas poderia NÃO ter sido… O tempo passou e com ele o desejo e as oportunidades…
Abri mão de minhas vaidades pessoais, de meus desejos mundanos e aceitei a tudo, resignado e absorto na única coisa que me era importante: filhos. E aos 25, 35 e 45 anos de idade fui muitas coisas, de datilografo a projetista de brinquedos, de desenhista de concreto a sócio de pequena empresa. E fui tudo isso por ser pai. E FUI, mas poderia NÃO ter sido…. O tempo passou e com ele o desejo e…
Aceitei mentiras, acreditei em deuses, santos e milagres. Queimei livros “proibidos”, escrevi receitas de bolos, cacei bruxas e fui caçado por santas e putas. Fui ao Inferno, ao Purgatório e a lugares “onde ninguém jamais esteve.” E era assim a minha Jornada. Uma jornada sem palavras, sem estrelas e sem volta à Terra. Fui um passageiro da minha própria nave. Sem comando. E fui tudo isso por ser pai. E FUI, mas poderia NÃO ter sido…. O tempo passou e com ele…
E decidi que agora que eram homens, seria também o momento de eu tornar a ser. A poesia teria ficado esperando? Meus sonhos ainda estariam a minha espera? E o que mais? As oportunidades ainda existiriam? Queria sonhar outra vez, queria fazer outra vez. E FUI, mas poderia NÃO TER IDO… O tempo passou…
O tempo passou e ainda existem os sonhos, ainda existe o que eu queria ter sido, mas sobra apenas o que sou. E as oportunidades…? E o que sou é o que eu NÃO TERIA SIDO. E não sou nada daquilo que poderia ter sido e nem sequer aquilo que querem que eu tenha sido. Mas sou o que FUI, sem nunca TER SIDO. O tempo…
26/09/2012
Barata Cichetto, 1958, Araraquara – SP, é poeta, escritor. Criador e Editor do Agulha.xyz e Livre Pensador.