Precisamos Falar Sobre Holodomor

Esta é a primeira vez que falo de um livro antes de começar a lê-lo.

Como assim?

É quase como julgar um livro por sua capa. Não se trata de um julgamento, mas da certeza de que seu conteúdo revela trágicas verdades, e uma vergonha infinita àqueles que foram responsáveis por uma catástrofe humana comparável ao holocausto judeu, impetrado pelo nazismo durante a Segunda Guerra Mundial. O massacre ordenado por Adolf Hitler e posto em prática por seus generais à minoria judaica, não apenas na Alemanha, mas em toda a Europa, está fartamente documentada. Além do mais, o cinema e a televisão, acertadamente (e não podia ser diferente), contribuiu bastante para que o drama do povo judeu jamais caísse no esquecimento. Ninguém pode se dar ao luxo de ignorar os atos genocidas contra os judeus, em seus mais diversos métodos, pois, o objetivo da História é impedir que atrocidades não se repitam. Mas, não é bem assim que as coisas acontecem. Tantos outros massacres cometidos contra populações civis desarmadas ao longo do século 20 não tiveram a atenção devida, e os motivos são os mais diversos, pois envolvem toda sorte de interesses, inclusive econômicos e geopolíticos, que enquadram muitas atrocidades nos verbetes das enciclopédias de História.

Em certos casos, alguns casos de genocídio saem da sombra e retornam à luz, para espanto geral e para vergonha de muitos. Neste caso específico, me refiro ao Holodomor, em razão da invasão russa à Ucrânia, em fevereiro de 2022.

A palavra Holodomor significa “deixar morrer de fome”, “terror pela fome”, “morte pela fome”. Simplificando: matar de fome a população para que esta se submeta ao poder político-militar dominante. Simples assim. E, quem foi o maior responsável por esse genocídio? O ditador Josef Stalin, que governou a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas de 1924 a 1953, ano de sua morte. Simples assim, de novo.

“Holodomor, fome provocada pelo homem que convulsionou a república soviética da Ucrânia de 1932 a 1933, atingindo o pico no final da primavera de 1933. Fome soviética (1931–34) que também causou fome em massa nas regiões de cultivo de grãos da Rússia soviética e do Cazaquistão. A fome ucraniana, no entanto, tornou-se mais mortal por uma série de decretos e decisões políticas que visavam principalmente ou apenas a Ucrânia. Em reconhecimento de sua escala, a fome de 1932-33 é frequentemente chamada de Holodomor, um termo derivado das palavras ucranianas para fome (holod) e extermínio ( mor)”.

(…)

As origens da fome estão na decisão do líder soviético Joseph Stalin para coletivizar a agricultura em 1929. Equipes de agitadores do Partido Comunista forçaram os camponeses a ceder suas terras, propriedades pessoais e, às vezes, moradias para fazendas coletivas , e deportaram os chamados kulaks — camponeses mais ricos — bem como quaisquer camponeses que resistissem completamente à coletivização. A coletivização levou à queda da produção, à desorganização da economia rural e à escassez de alimentos. Também desencadeou uma série de rebeliões camponesas, incluindo levantes armados, em algumas partes da Ucrânia.

(…)

O resultado das políticas de Stalin foi a Grande Fome (Holodomor) de 1932-33 – uma catástrofe demográfica sem precedentes provocada pelo homem…

As rebeliões preocupavam Stalin porque se desenrolavam em províncias que, uma década antes, haviam lutado contra o Exército Vermelho durante a Guerra Civil Russa. Ele também estava preocupado com a raiva e a resistência à política agrícola estatal dentro do Partido Comunista Ucraniano. “Se não fizermos um esforço agora para melhorar a situação na Ucrânia”, escreveu ele ao colega Lazar Kaganovich em agosto de 1932, “podemos perder a Ucrânia”. Naquele outono, o Politburo soviético, a liderança de elite do Partido Comunista Soviético, tomou uma série de decisões que ampliaram e aprofundaram a fome no campo ucraniano. Fazendas, aldeias e cidades inteiras na Ucrânia foram colocadas em listas negras e impedidas de receber alimentos. Os camponeses foram proibidos de deixar a república ucraniana em busca de comida. Apesar da fome crescente, as requisições de alimentos aumentaram e a ajuda não foi fornecida em quantidades suficientes. A crise atingiu seu pico no inverno de 1932-33, quando grupos organizados de policiais e apparatchiks comunistas saquearam as casas dos camponeses e levaram tudo que era comestível, desde colheitas até suprimentos pessoais de comida e animais de estimação. A fome e o medo impulsionaram essas ações, mas foram reforçadas por mais de uma década de retórica odiosa e conspiratória emanada dos mais altos níveis do Kremlin”.

https://www.britannica.com/event/Holodomor

Esta é a síntese de um tema extenso e complexo relatado com riqueza de detalhes no livro A Fome Vermelha (Editora Record), da escritora e historiadora norte-americana Anne Applebaum, lançado em 2017. A autora é especializada em assuntos relacionados ao marxismo-leninismo, especialmente ao aplicado na Europa Central e Oriental – entenda-se: países da Cortina de Ferro –. Applebaum foi agraciada, em 2004, com o Prêmio Pulitzer por seu livro Gulag: Uma História. No entanto, o Pulizer não foi o único prêmio que ela ganhou, o que só reforça que a historiadora aborda com profundidade seus temas de interesse. Para a alegria de alguns e vergonha de muitos, Anne Applebaum não faz concessões aos revisionistas (negacionistas?) das políticas soviéticas e dos desmandos dos mandatários comunistas ao logo dos mais de 70 anos em que a União Soviética ditou, com mãos de ferro, os destinos dos povos – russos incluídos – sob seu poder.

Lamentavelmente, ao que presumo, Anne Applebaum não tem, no Brasil, o destaque que merece. Por que será?

Uma das minhas suposições reside no tal marxismo cultural que impregna, desde há muito tempo, as cabeças pensantes da intelectualidade brasileira, acostumada a ignorar, subestimar ou passar pano para os crimes cometidos em nome do marxismo-leninismo, não apenas na Europa, mas em todo o mundo.

Nos tempos que correm, usa-se muito, e sem critérios, os termos “genocídio”, “negacionismo”, “fascismo” como armas de ação política contra adversários políticos ou a qualquer pessoa que possua opinião divergente de uma minoria barulhenta e organizada. O advento da pandemia do vírus chinês turbinou essa espécie de fanatismo vastamente difundido pelas redes sociais e abraçadas, criminosamente, por setores da imprensa. Existe um processo de desinformação coletiva que beneficia mentes com objetivos obscurantistas. Esse processo de desinformação, dirigido ou não, desvia o foco de temas de gravidade histórica não resolvidas para mesquinharias de toda ordem.

Cabe frisar que, do mesmo modo que condenamos os negacionistas do Holocausto judeu, também urge, pelas circunstâncias que se impõem por causa do conflito na Ucrânia, os negacionistas do Holodomor, pois se trata de pessoas a princípio desonestas e ideologicamente comprometidas com o comunismo, sob suas mais diversas formas. É necessário que esse tipo de pessoas seja exposta e responsabilizada por esse tipo de comportamento. É verdade que a liberdade de expressão, tão cara nas democracias, seja exercida pelas pessoas. Por outro lado, dada a gravidade do tema, elas devem ser responsabilizadas por suas falas. A título de exemplo, cito o Youtuber Monark e o deputado federal Kim Kataguiri que, em um bate-papo transmitido pelo Flow Podcast, defenderam a legalização de um partido nazista no Brasil, embora ambos não sejam simpatizantes do nazismo. As consequências vieram de imediato.

https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2022/02/4983875-entenda-o-caso-de-apologia-ao-nazismo-iniciado-pelo-youtuber-monark.html

A Guerra da Ucrânia chama a atenção por sua extensão, difícil de ignorar. Não cabe aqui – por ser desnecessário – explicar os motivos que levaram o autocrata russo Vladimir Putin a ordenar a invasão da Ucrânia, sob o pretexto, entre outros, de “desnazificar” o país. É mais que evidente que a tragédia ucraniana se deve à inação do Ocidente e à falta de visão de seus líderes, que permitiram a Putin mostrar suas garras no momento que ele achou adequado.

Felizmente, para surpresa do ex-oficial da KGB, a Ucrânia está sendo um osso duro de roer, pois seus estrategistas erraram miseravelmente em fazê-lo crer que o segundo maior país da Europa seria dominado em poucos dias. Não foi. Putin está correndo contra o tempo para subjugar os ucranianos aos seus interesses. Torço para que ele fracasse. Cabe lembrar que a União Soviética teve seu “Vietnam” no Afeganistão. A Ucrânia pode se tornar o Vietnam da Rússia pós-soviética.

Não tenho a menor dúvida que o conflito na Ucrânia já esteja na mira da escritora Anne Applebaum, ao passo que o tema relacionado ao Holodomor se fixe na mentalidade da opinião pública mundial, da mesma forma como ocorreu com o Holocausto judeu. Evidentemente, as duas carnificinas possuem características próprias, mas com a mesma raiz: a constante sede de poder de déspotas de todas as cores ideológicas.

Resta a esperança de que, a Guerra da Ucrânia sirva como exemplo para impedir a ascensão de líderes mentalmente deformados, que são admirados, bajulados até o ponto que se revelam genocidas de fato.

Desde já, julgo o livro A Fome Vermelha pela capa: é extraordinário!

24/04/2022

A Fome Vermelha
Anne Applebaum
Editora ‏‎ Record; 2019
560 páginas
23 x 15.4 x 3.2 cm
Comprar: Amazon

Genecy Souza, de Manaus, AM, é Livre Pensador.
Possui textos publicados na revista digital PI Ao Quadrado e na revista impressa Gatos & Alfaces.

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