Atualizado em 26/08/2024 as 19:25:27
“Quando olhamos para um objeto, capturamos seu reflexo em nosso olho, nossa retina. Quando paramos de olhar para ele e mudamos nosso olhar para outro lugar, uma pós-imagem [afterimage] do objeto permanece no olho, capturada na retina. Um traço do objeto com a mesma forma, mas com a cor oposta. Uma pós-imagem. Pós-imagens são as cores do interior do olho com o qual olho para um objeto. Uma pessoa só enxerga aquilo que ela tem consciência”.
Quem é o autor da frase, caro leitor? Não se torture para responder. Deixe comigo.
A frase é de Wladyslaw Strzeminski, pintor vanguardista nascido em 21.11.1893, em Minsk, Bielorrússia, e falecido em Lodz, Polônia, em 26.12.1952, país onde se radicou e nele consolidou sua arte.
Strzeminski é o personagem principal de Afterimage, último filme de Andrzej Wajda, cuja maneira de produzir obras como: Cinzas e Diamantes (1958), Terra Prometida (1975), O Homem de Mármore (1976), O Homem de Ferro (1981), Danton (1983) e Katyn (2007), o consagraram como um dos mais importantes cineastas da História. Não vem ao caso comparar o diretor a outros grandes cineastas. Wajda era único.
Logo de cara se sabe que o propósito de Afterimage não é o de fazer uma biografia corrida, linear, previsível, do personagem, e sim, mostrar um aspecto bastante significativo da vida do artista engajado sobrevivente de agitações, revoluções e duas guerras mundiais. Da primeira, traz como sequelas a falta de uma perna e de um braço, razão pela qual faz uso de muletas, e, ainda assim, mostra seu amadurecimento como artista influenciador de pessoas, sobretudo os jovens, seus alunos, que o vêem não apenas o mestre carismático e aberto ao futuro, mas uma espécie de messias a lhes indicar o caminho para a Terra Prometida da Arte.
E da segunda, o conhecimento de uma nova realidade política, social, econômica e cultural, imposta a todos os cidadãos pelo Partido Operário Unificado Polonês, fundado em 1948, após a fusão do Partido dos Operários Poloneses com o Partido Socialista Polonês. Como era de se esperar, o POUP nada mais era do que um fantoche da União Soviética, que emergiu como potência após a derrota do nazifascismo na Segunda Guerra Mundial, tomando para si o controle com mãos de ferro sobre os países do leste europeu, entre eles, a Polônia.
Em seus filmes Andrzej Wajda sabe como ninguém explorar os diálogos em favor do espectador, não se perdendo em divagações, tampouco em teorias enfadonhas, que transformariam Afterimage em mais um daqueles filmes-cabeça, que só alimentam a vaidade de seus idealizadores. Na obra, tudo é meticulosamente calculado, do roteiro aos figurinos, de maneira a permitir que o ser humano se mostre da maneira como é – bom ou mau – e como ele interage com o ambiente político extremamente duro e hostil às liberdades individuais, em meio às promessas de uma vida melhor, conforme os discursos proselitistas e maniqueístas dos líderes políticos. E é dentro dessa ótica que que o cineasta mapeia os últimos quatro anos da vida de Strzeminski, de 1948 a 1952, tendo como marco um incidente resultante de um rasgo em um enorme estandarte do ditador soviético Josef Stalin, que obstruía a passagem de luz natural em seu estúdio, ato que chama a atenção de dois policiais.
Levado à presença do chefe de polícia, a rebeldia do pintor se mostra evidente e insultosa. A Pintura Construtivista de Strzeminski passaria a funcionar como um corpo estranho ao Realismo Socialista em rápida implantação. A partir desse momento, o monstro que o pintor ajudou a criar com sua ingenuidade revolucionária agora irá devorá-lo, aos poucos. É só uma questão de tempo. Pouco tempo.
Sem conseguir dobrar Strzeminski, o regime lhe tira o emprego, destrói suas obras, persegue seus alunos e amigos; cassa sua dignidade. Na prática, foi o que hoje damos o nome de cancelamento, ainda que por etapas, resultando na morte do artista.
Não cabe aqui pormenorizar o filme, tampouco a vastidão dos pensamentos e obras do personagem. Dou ao leitor desta matéria a missão de sair a campo, a começar pelo última obra-prima de Andrzej Wajda, seguindo pela pesquisa às mais diversas biografias de Strzeminski. Garanto que vale muito a pena.
O maior mérito de Afterimage é a atualidade. A liberdade artística sempre teve como maior algoz o autoritarismo, qualquer que seja a cor ideológica, o que não é diferente com Wladyslaw Strzeminski. O artista é a mosca na sopa do sistema, por não aceitar submeter as suas criações aos padrões impostos pelo chamado Realismo Socialista, para benefício apenas do Estado. Nesse estado de coisas, as opções são: a rendição do artista pelo medo, a adesão por conveniência e afinidade ideológica, e a insubmissão.
Nos dias que correm, a insubmissão da arte a padrões pré-estabelecidos também paga um preço muito alto por causa dessa rebeldia. O autoritarismo agora não é imposto apenas por regimes políticos. Vivemos o advento das redes sociais, fenômeno derivado do milagre da internet. Cada vez mais, a livre criação artística é submetida ao crivo de censores modernos, que determinam o que pode e o que não pode ser exercido como arte livre.
Fico a imaginar como Andrzej Wajda transformaria em filme esse novo padrão comportamental, que cada vez mais cerceia a liberdade de expressão em benefício da correção política, que criou um monstro chamado cultura do cancelamento. Em meio a isso temos milhares de Strzeminskis, que são patrulhados, perseguidos e cancelados por não usarem palavras e expressões adequadas, ou por possuírem opiniões contrárias a interesses obscurantistas, protegidos por um falso anonimato na web.
O melhor de tudo é saber que esses milhares de Strzeminskis rebeldes continuam a rasgar estandartes e topar pagar o preço por isso, um verdadeiro ato de resistência, provando que a arte livre sobrevive a seus algozes.
Afterimage (Powidoki) — Polônia, 2016
Direção: Andrzej Wajda
Roteiro: Andrzej Mularczyk (Baseado Em Uma Ideia de Andrzej Wajda)
Elenco: Boguslaw Linda, Aleksandra Justa, Bronislawa Zamachowska, Zofia Wichlacz, Krzysztof Pieczynski, Mariusz Bonaszewski, Szymon Bobrowski, Aleksander Fabisiak, Paulina Galazka, Irena Melcer, Tomasz Chodorowski, Filip Gurlacz, Mateusz Rusin, Mateusz Rzezniczak, Tomasz Wlosok
Duração: 98 min.
Genecy Souza, de Manaus, AM, é Livre Pensador.
Possui textos publicados na revista digital PI Ao Quadrado e na revista impressa Gatos & Alfaces.