Imagem Cria Com I.A. (SeaArt)

Cavando Livros

Quando me sento à frente da tela branca do computador, aciono o “qwertick”, aplicativo que simula o som de uma máquina de escrever enquanto digito. Esse som é música para meus ouvidos. Quando sonhava em ser escritor, me imaginava num quarto cheio de livros, iluminado por um abajur, bebendo muito café, fumando cigarro ou cachimbo, varando a madrugada e martelando uma máquina de escrever (Remington, Olivetti, Underwood, tanto faz), criando um mundo só meu, que seria depois bisbilhotado por algum leitor. Imagens de escritores escrevendo em velhas máquinas são minhas favoritas nos filmes a que assisto, assim como gosto de ler obras em que um personagem é escritor. A literatura é um grande tema, por mais que alguns críticos não gostem dessa escrita autorreferente.

Agora me acomodo na minha toca para escrever minha colaboração com o site “Barata Verso” (há meses não escrevo nada), ponho a xícara de café ao lado, muito café (faz parte do ritual) e fico na dúvida sobre qual livro escrever. A propósito, sobre a denominação para a garagem da minha casa que transformei em biblioteca e é o meu local de escrita (David Foster Wallace também fez da garagem o seu lugar de trabalho, mas foi onde, no entanto, acabou se enforcando), chamava antes de “meu cantinho” ou “meu quartinho”. Reluto em chamá-lo de biblioteca, escritório ou gabinete. É pomposo demais. Pensei em denominar “bunker”, caverna, paraíso e tantos outros nomes que minha pouca memória me impede de referir. Optei por “toca”, que dialoga com uma novela de Franz Kafka, A Construção, que conta com uma edição recente por estas bandas, pela Ubu Editora, com nova tradução de Sofia Mariutti (com a escolha de períodos longos, diferente da tradução de Modesto Carone) e posfácio do psicanalista Christian Dunker. O narrador-protagonista do meu último romance, Desvarios entre quatro paredes, também chama o lugar em que escreve e vive de “toca”, mas não vem ao caso.

O narrador de A Construção é, curiosamente, uma espécie de toupeira. O animal mesmo. É o que se presume através de um monólogo em que a personagem relata a construção de vários túneis no subsolo, tentando escapar de inimigos do exterior e do interior da terra. Para tanto, estoca víveres para se alimentar em momentos de fuga e cava falsos buracos para enganar os adversários.

Comparo a minha atividade amadora com a traça, que faz “túneis” em livros, assim como eu grifo o que há de mais importante nas leituras. É comparável também à atividade da personagem kafkiana. Nessa minha toca onde leio e escrevo, cavo túneis e mais túneis, fugindo de coisas externas que podem não me fazer bem ou que atrapalhem minha paixão pelos livros. Fujo também dos meus monstros interiores. Ao menos tento derrotá-los ou somente ludibriá-los através da literatura. As minhas provisões são os livros, estocados por todos os cantos e que me servem de alimento. Aqui vivo, como a toupeira de Kafka, “em paz, aquecido, bem alimentado, senhor, único senhor de grande número de corredores e praças”. Isso enquanto alguém nas proximidades não resolve pôr o volume de seu som nas alturas. “Mas a melhor coisa da minha construção é seu silêncio; claro que ele é ilusório, de repente pode ser rompido e tudo acaba, mas por ora ainda está aí […].”

Mais um texto (resenha, crônica?) está pronto. Penso em parar de escrever. Bate às vezes aquela frustração aqui dentro da toca, meus inimigos externos e internos me desestimulam. As leituras vão se acumulando, não mais, porém, do que a pilha de livros que não foram lidos ainda. “Comprar livros seria uma coisa boa se a pessoa também pudesse comprar o tempo para lê-los”, teria dito Arthur Schopenhauer. Não apenas compro livros como também os recebo ainda de alguns escritores. Por isso, ainda continuo a cavar páginas e páginas e compartilhar com os leitores minhas leituras. Se ainda houver um leitor, continuarei cavando, cavando…

Cassionei Niches Petry, Santa Cruz do Sul, RS, é Mestre em Letras e professor de Língua Espanhola e Literatura, além de escrever crônicas e críticas literárias para jornais e sites diversos, é autor de livros de contos e romances. É também um Livre Pensador.

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