Naquela transição entre a Jovem Guarda e o Tropicalismo, muitos artistas emergentes tentaram se enquadrar de alguma forma no panorama musical dito “jovem”, durante o final dos anos sessenta.
Identificados com a breguice suburbana da Jovem Guarda (claro que no seu bojo haviam exceções honrosas, caso de Erasmo Carlos, um Rocker de respeito, sem dúvida), ou com o experimentalismo antropofágico total dos Tropicalistas, muitos transitaram entre esses dois mundos, buscando seu lugar ao Sol.
Já com os ecos Woodstockianos eclodindo nestes rincões tupiniquins, eis que surge uma exótica cantora paranaense, de origem árabe, com um vozeirão e uma presença de palco muito louca, chamada “De Kalafe”.
Denise De Kalafe havia nascido em Ponta Grossa, no Paraná, mas veio de mala & cuia para São Paulo, onde sonhava se firmar no metiér artístico.
Seu nome exótico era grafado de várias formas (“D.Kalafe”, “De Kalafe”, “Dekalaf”), o que aumentava o exotismo em torno de sua figura.
Acompanhada de uma banda de Rock chamada de “A Turma”, cujo um dos guitarristas era o futuro produtor musical, Arnaldo Saccomani, De Kalafe impressionava pelo vozeirão, beleza exótica de uma bela morena de origem do Oriente Médio, e a performance forte no palco. Sua postura lembrava muito a contundência cênica de Maria Bethânia, mas o visual e performance, eram absolutamente Hippies, mais na onda da Gal Costa, bem entendido, a Gal daquela época, como freak Gal-Total e Fa-Tal.
Chamava a atenção e com muitas críticas dos caretas de plantão, é claro, por apresentar-se muitas vezes na TV, descalça e usando vestidos multicoloridos e numa época onde o AI-5 estava no auge, e o público médio da sociedade ainda concebia vestimenta “decente” de artista que se apresentava na TV, um modelo de formalidade cartorária, como se fossem padrinhos de casamento, portanto, claro que chocava…
Entre os anos de 1968 a 1970, De Kalafe e A Turma fez um relativo sucesso radiofônico e televisivo, com o lançamento do compacto simples pelo selo “Rozemblit”, que ousadamente para os padrões da época, apostava em artistas emergentes e do universo do Rock.
Nesse compacto, As músicas “Guerra” e “Quadrado Mundo”, traziam canções coadunadas com o “momentum” sessentista, e sua inerente preocupação dos jovens antenados com a opressão dos sistemas totalitários, guerras estúpidas e demais questões análogas.
Num segundo lançamento, De Kalafe e A Turma saiu com outro compacto, trazendo um cover da música “Bang Bang” gravada pela cantora pop americana, Cher, e “This Boy”, canção dos Beatles.
Outra música que chamou a atenção, “Inch’ Allah”, uma canção pop francesa, com óbvia influência árabe, nunca foi gravada em disco, mas proporcionou uma aparição num filme lançado em 1968, chamado “Bebel, a Garota Propaganda”, aliás uma obra muito interessante e baseada num conto do escritor Ignácio de Loyola Brandão.
De certa forma, e muita gente comentava isso na época, De Kalafe era uma espécie de Mariska Veres brasileira (Mariska era vocalista da banda pop holandesa, “Shocking Blue”, que fez extraordinário sucesso radiofônico no Brasil, por conta da música “Venus”).
De fato, haviam semelhanças entre as duas, que iam do visual, figurino, à questão do timbre vocal, além do fato de que o espectro musical do Shocking Blue no Rock europeu, assemelhava-se bastante à proposta de A Turma, ou seja, ambas praticavam em essência, um Pop Rock estilo Bubblegum de início/meio de anos sessenta, mas no final daquela década, portanto um tanto quanto defasado e démodé em tempos psicodélicos e já partindo para o Hard-Rock, ou para o nascente Progressive Rock.
Mas a barra pesou para De Kalafe e A Turma, no sentido de que não surgiram novas oportunidades com o avançar da década de setenta, e a banda não acompanhou a evolução do Rock brasileiro, pegando carona nos Mutantes, Terço, Bolha e outras bandas que apontavam sua evolução, e portanto, houve a dissolução do trabalho.
Uma tentativa de lançá-la como cantora solo também ocorreu em 1970, com o lançamento do LP “De Kalafe”, com várias canções compostas com letras de Vitor Martins, o grande letrista e parceiro de Ivan Lins, e até com uma regravação de “Aquarela do Brasil”, mas não emplacou, infelizmente.
Determinada, De Kalafe fez as malas de novo e deu uma guinada radical na sua trajetória ao desembarcar na Cidade do México em 1975, e aí iniciar uma carreira sólida como cantora e compositora, com muito sucesso doravante naquele país dos Mariachis.
Compondo e cantando em castelhano com desenvoltura, naturalmente que seu novo foco não era o Rock, mas apostou forte na música “romântica”, esse eufemismo para não dizer “brega”, nesses tempos de politicamente correto, onde tudo ofende e magoa. De Kalafe caiu nas graças do público mexicano e se tornou, já a partir do final da década de setenta, um fenômeno de vendas e um ícone da música popular mexicana e latino-americana em geral, visto que sua popularidade alastrou-se por todos os países de cultura hispânica. Seus discos venderam milhões de cópias, e ela é sempre requisitada, até hoje, para compor trilhas para as novelas mexicanas, portanto, alcançou um status de popularidade naquele país, semelhante ao do Roberto Carlos, por aqui.
Aconselhada por uma numeróloga, acrescentou um “S” a mais no seu prenome, passando a grafar Denisse De Kalafe, mas além da numerologia, a mudança adaptou seu nome a pronuncia hispânica, ficando mais confortável para quem fala catellaño, e não consegue pronunciar o “Z” da língua portuguesa, e muito menos entender porque muitas vezes o “S” tem som de “Z”. Enfim…
Ela mesmo se declara uma “Brasicana”, embora tenha se naturalizado mexicana há muitos anos e raramente vem ao Brasil.
Entre seus discos de sucesso no México, destacam-se: “El Porqué de Mi Canto”; “Cuando Hay amor… no Hay Pecado”; “Amar es”; “Hacer y Deshacer”; “Señora, Señora” e muitos outros.
De Kalafe tinha tudo para ter se firmado no panorama do Rock brasileiro daquele final de década de sessenta e início dos setenta; poderia ter enveredado para a MPB engajada e contracultural que embalou os anos setenta, tranquilamente, também.
Mas música no Brasil não é nada fácil, e sua saída foi o avião para o estrangeiro. Por sorte, lá no México ela teve seu talento como compositora e cantora reconhecidos, ainda que num universo não muito confortável para nós, que é o do mundo brega-hispânico.
Mas, sem nenhum preconceito, fico feliz por ela ter alcançado enfim esse sucesso, pois muito pior teria sido abandonar a música, como foi e tem sido o caso de centenas de artistas que batem com seus respectivos narizes nas portas cerradas do sistema musical brasileiro.
Saudade do vozeirão e da presença forte de De Kalafe naquele caldeirão efervescente dos anos sessenta.
Texto Publicado na 6ª edição da Revista “Gatos & Alfaces“, Junho 2015
Luiz Domingues é músico desde 1976, tendo tocado nas bandas Língua de Trapo, A Chave do Sol, Patrulha do Espaço, etc. Atualmente com Kim Kehl & Os Kurandeiros. Como escritor, tem três livros publicados e outros no prelo. Escreve em diversos blogs e revistas impressas.
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Que preciosidade!
Encantada em conhecer um pouco da história do escritor Luiz Antonio Domingues. Sou fã do Arnaldo Saccomani.
Sencional essas preciosidade trazida ao Agulha xyz.
Tenho a coleção completa da G&F. Confesso que já não lembrava mais dessa matéria. Ao mesmo tempo, apesar de consultar temas sobre o rock brasileiro feito na virada dos anos 60/70, os algoritmos do YouTube não me apresentaram nada sobre De Kalafe. No fundo, a falha parece ser minha.
Ouvi com atenção os áudios anexados à matéria. Realmente, a voz da cantora é muito marcante. Por outro lado, a banda que a acompanha parece não corresponder à psicodelia de DK. A impressão que eu tenho é que falta algum peso sonoro.
Ok. É só uma impressão.
Estou resgatando matérias da G&A, ao menos as mais interessantes. E também convidando o honorável “Gentleman do Rock Brasileiro”, Luiz Domingues, a nos dar o prazer de publicar aqui no Agulha novamente.
E, sim, compartilho com sua sensação de que faltava uma estrutura melódica mais condizente.
Ao menos a mais interessantes?
Bem, será uma escolha difícil. Em todo caso, o que você escolher estará bem escolhido.
Boa sorte.
Tinha coisas que eram datadas demais, ou foram escritas por pessoas que fazem parte da Turma do L, se é que me entende…. (claro que sim….)
Entendo perfeitamente.