Pintura em Tela, Barata, 2020

The Wall: Conciliando as Boas Lembranças e a Decepção

Atualizado em 27/07/2024 as 19:49:17

Era início da década de 1980. Esse ano redondo prometia, ao que se supunha, uma nova era de profundas transformações, em todas as áreas. Era o que os místicos previam, noves fora uma catástrofe e outra. Como mestres na arte de impressionar as pessoas e, ao mesmo tempo, ganhar dinheiro com isso, esses místicos erraram e acertaram, tal qual os cientistas políticos, os especialistas, os técnicos, os futurólogos. Enfim, todo mundo – inclusive o homem comum – errou e acertou em suas previsões. Obviamente, a classe artística também contribuiu para que os eventos da nova década. Em suma, a década de 80 seria diferente. E foi. Tão diferente quanto as décadas anteriores e posteriores, pois a roda da História nunca para, uma vez que são as ações dos homens que a fazem girar, seja para o bem ou para o mal. Todos tiveram uma década de 80 para chamá-la de sua. E eu, obviamente, tive a minha, mas sem direito a previsões – sou incompetente para isso.

Na “minha” década de 80, as rádios do mundo inteiro tocavam exaustivamente uma canção; não havia parada de sucessos em que ela não estivesse nos primeiros lugares. Vivia-se ainda o fenômeno da febre das discotecas, já em sua fase terminal, por causa da saturação desse ritmo. A música começa em um ritmo lento, com um vocal declamado, sinistro, em meio a ruídos de crianças a brincar e, sobretudo, o de um helicóptero, item que fazia uma diferença enorme. O cantor estava contando uma história, mas ninguém entendia, pois ele falava em inglês. E, entender o que ele dizia era um privilégio para poucos. De qualquer modo, isso não importava muito naquele momento. O que valia era o ritmo, mesmo com aquela longa introdução. Após toques vigorosos de guitarra, baixo e bateria, o cantor, enfim, cantava:

“We don’t need no education
We don’t need no thought control
No dark sarcasm in the classroom
Teachers leave the kids alone
Hey teacher leave us kids alone
All in all it’s just another brick in the wall
All in all you’re just another brick in the wall

We don’t need no education
We don’t need no thought control
No dark sarcasm in the classroom
Teachers leave the kids alone
Hey teacher leaves us kids alone
All in all you’re just another brick in the wall
All in all you’re just another brick in the wall.”

O cantor se chamava Roger Waters, o nome da música era Another Brick in the Wall – Part II, e o nome da banda era Pink Floyd. Na cabeça do povaréu ignorante, o nome do cantor era Pink Floyd. Era o que bastava. Já a “música do helicóptero” era, segundo meu entendimento na época, em ritmo discothéque. E assim foi por um bom tempo.

O sucesso monstruoso de Another Brick in the Wall – Part II me induziu a desejar comprar o disco. Na minha mente de adolescente recém introduzido (atirado ao) mercado de trabalho, o álbum era todo dançante. Na loja, o primeiro choque: The Wall era caríssimo, pois era duplo e de luxo. Desisti. Meu salário de office-boy não permita essa ostentação. O hit permaneceu por meses a fio nas paradas. Ao mesmo tempo, soube que a música estava tendo problemas com a censura na África do Sul, por causa da rebeldia explícita na letra, o que incomodava o asqueroso regime de apartheid que vigorava no país:

“A vida imitou a arte no início de 1980, quando crianças sul-africanas, fartas de um sistema educacional inferior da era do apartheid, começaram a cantar a letra de “Another Brick in the Wall (Part II)” do Pink Floyd. A música, com um verso memorável dizendo “We don’t need no education”, ocupou o primeiro lugar nas paradas locais por quase três meses, um total de sete semanas a mais do que nos Estados Unidos.

Em 2 de maio de 1980, o governo sul-africano proibiu “Outro Tijolo na Parede”, gerando manchetes internacionais. “Aquele governo do apartheid impôs um bloqueio cultural, por assim dizer, em certas músicas – incluindo a minha”, lamentou Roger Waters, do Pink Floyd, em uma conversa com o The Guardian.

Apartheid, que literalmente se traduz do africâner em “aparte” e “capuz”, era um sistema de segregação imposto pelo Partido Nacional branco governante na África do Sul de 1948 a 1994. As leis dividiram as comunidades e, claro, as escolas, em linhas raciais. No início dos anos 80, no entanto, a indignação com esse desequilíbrio começou a se enraizar – tanto internacionalmente quanto na África do Sul.

Os boicotes nas escolas negras começaram no Hanover Park, na Cidade do Cabo, em fevereiro de 1980, assim como “Another Brick in the Wall”, do Pink Floyd, entrou nas paradas sul-africanas. Um mês depois, a música alcançou o primeiro lugar lá, e até então os protestos se espalharam por todo o país – com a letra de Waters como um grito de guerra. O Diretório de Publicações da África do Sul detinha o poder abrangente naquela época para proibir livros, filmes, peças de teatro, pôsteres, artigos de vestuário e, sim, música, que considerava “política ou moralmente indesejável”. “Another Brick in the Wall” rapidamente entrou em sua mira.

“As pessoas foram realmente levadas ao frenesi de raiva por isso”, disse Waters mais tarde. “Eles pensaram que, quando eu disse: ‘Não precisamos de educação’, era um ponto de vista crasso e revolucionário – o que, se você ouvir no contexto, claramente não é. Por outro lado, teve algumas reações estranhas de pessoas que você não esperaria. O Arcebispo de Canterbury foi registrado dizendo que, se é muito popular entre os alunos, então deve de alguma forma estar expressando alguns sentimentos que eles próprios têm. não gosta, ou como quer que se sinta sobre isso, deve-se aproveitar a oportunidade de usá-lo como ponto de partida para discussão – que foi exatamente como eu me senti sobre isso.” (…)

Trecho da matéria publicada em https://ultimateclassicrock.com/pink-floyd-banned-south-africa/

Evidentemente, a controvérsia em torno da música era algo distante para mim, cujo processo de entendimento das cores e formas do mundo ainda estava em estado embrionário. Contudo, sem saber, entrei em um caminho sem volta. The Wall acabaria se tornando um dos formadores da, digamos, minha personalidade política.

Em 1982, The Wall foi adaptado para o cinema, estreando no Brasil em meados de 1983. Na minha cidade, o proprietário do cinema onde o filme foi exibido mandou pintar toda a fachada do prédio, inspirado na arte da capa do álbum. Foi uma ideia simples e bem aceita. Obviamente, não perdi a chance de conferir a razão para tanta audácia. Naquela ocasião, eu (ainda) só conhecia Another Brick in the Wall – Part II, pois o álbum havia saído do meu radar, além de eu não dar a mínima para o nome Pink Floyd. Fui assistir ao filme sem ter a menor ideia do que eu ia encontrar. Foi um choque.

O filme The Wall valeu, não apenas pela pintura extravagante na fachada do cinema, como pela extraordinária experiência sensorial — e sei lá mais o que — que a obra conferiu a mim, sozinho (apesar da sala cheia), numa noite de sábado. Foi meu segundo choque. Foi assustador ver e ouvir um libelo anti-autoritário, que induz o espectador a rever conceitos e inserir-se, guardadas as devidas proporções de tempo e espaço, no drama do personagem principal, um certo Sr. Pink, um astro do rock and roll perdido em seus dramas pessoais, sua (má) relação com a fama, sua dependência das drogas e, o que é mais grave, a sua transmutação em um ser perverso, odioso e desprezível – sim, um ditador! –, decorrentes, entre vários fatores, de uma infância desprovida da figura paterna, substituída pela mãe super protetora e professores carrascos. Em suma, todos os pontos negativos da existência de Mr. Pink o elevaram a um grau de insanidade capaz de erguer um muro para isolar-se do mundo e das pessoas para fechar-se em sua própria loucura.

É desnecessário analisar todos os aspectos de The Wall, pois, dada sua grandeza e as várias opções de análise que vem sendo construídas ao longo de mais de 40 anos. O resultado de tais análises deram margem para várias interpretações, inclusive as esdrúxulas. O que vale nesta matéria são as minhas impressões e lições aprendidas, no álbum e no filme. Isso muito tem a ver com as transformações ocorridas no mundo desde 1979, ano em que a obra-prima foi lançada, gerada na mente inquieta de Roger Waters e aperfeiçoada pelos demais membros da banda.

Evidentemente, Roger Waters, e tampouco Alan Parker, imaginaram que as fantasias autodestrutivas de Mr. Pink se adaptariam aos tempos atuais. Na verdade, o século 21 nos presenteou com ‘zilhares’ de cópias do astro atormentado de The Wall. Os assustadores skinheads neonazistas, os ‘modernos’ métodos educacionais desenhados por uma elite intelectual com objetivos mais que obscuros, a constante sede de fama e de poder, o combate aos que pensam diferente da patota politicamente correta, a censura travestida de nomes bonitos, a constante busca pelo poder a qualquer custo.

Cabe acrescentar, a título de complementação, um aspecto não citado na obra de Roger Waters: no filme, vemos grupos extremistas de direita perseguindo minorias (no caso, negros e homossexuais). Embora esses atos vis continuem a ocorrer no século 21, agora observamos que uma minoria organizada e barulhenta, em sua maioria ligada à esquerda e à extrema-esquerda persegue uma maioria não alinhada com suas ideias. A ordem é que poucos controlem muitos. E isso gera conflitos de toda ordem. Quantos Mr. Pinks teremos que combater? E quantos muros precisarão ser derrubados? A verdade é que o fascismo adaptou-se aos novos tempos, adotando nomes mais fofos, mais moderninhos.

Lamentável e ironicamente, observamos que o arquiteto de uma obra-prima tão forte e abrangente como The Wall, Roger Waters tenha se revelado uma caricatura de seu personagem Mr. Pink. Detalhes da personalidade autoritária, arrogante e beligerante do grande compositor se fazem notar ainda no tempo em que ele era membro do Pink Floyd. Waters, por suas posições políticas pra lá de esdrúxulas. O grande astro do rock não esconde sua predileção por líderes políticos alinhados com a esquerda, ao mesmo tempo que evita criticar outros tantos do mesmo espectro ideológico, seja por medo ou por vergonha. Por outro lado, Waters aloja na caixinha do fascismo todo o líder político à direita de suas ideias. Frise-se que Waters sempre cultivou ideias de esquerda, o que, a princípio, não chega a ser um problema, mas ele despirocou à medida que foi envelhecendo.

Evidentemente, nessa gangorra de contradições, o ex-integrante do Pink Floyd ganha e perde admiradores – entre eles, eu, que sempre reconhecerá a importância das obras do artista, mas condenará o homem desprezível que ele é.

Um certo tempo após a experiência no cinema, finalmente adquiri o álbum, dando início a minha admiração pela banda, até hoje a maior da história da música. The Wall continua a ser a obra-prima como sempre foi, poderosa e irretocável. Disco e filme acabaram se fundindo em uma só peça, sendo impossível dissociar um do outro. O libelo contra o autoritarismo, a loucura e a alienação permanecem atuais. Vale pela revisitá-la sempre que possível. Olhando bem de perto, veremos que Mr. Pink continua a solta, e que certos muros precisam ser derrubados.

08/05/2022

The Wall
Pink Floyd
Lançamento: Reino Unido, 30 de Novembro de 1979, Estados Unidos 8 de Dezembro de 1979
Gravação: Abril a Novembro de 1979
Duração: 81:09
Gravadoras: Reino Unido Harvest Records, Estados Unidos Columbia (1979) / Capitol(1994)
Produção: Bob Ezrin, David Gilmour, James Guthrie e Roger Waters

Pink Floyd – The Wall
Reino Unido, 1982
Lançamento: Reino Unido 14 de Julho de 1982
95 Minutos
Direção: Alan Parker
Produção: Alan Marshall
Produção Executiva: Stephen O’Rourke
Roteiro: Roger Waters
Baseado Em: The Wall, Álbum de Pink Floyd
Elenco: Bob Geldof, Alex McAvoy, Bob Hoskins,
Música: Pink Floyd, Michael Kamen
Diretor de Fotografia: Peter Biziou
Direção de Arte: Chris Burke, Clinton Cavers
Efeitos Especiais: Martin Gutteridge, Graham Longhurst
Edição: Gerry Hambling
Companhia Produtora: Metro-Goldwyn-Mayer, Tin Blue Productions, Goldcrest Films
Distribuição: United International Pictures

Genecy Souza, de Manaus, AM, é Livre Pensador.
Possui textos publicados na revista digital PI Ao Quadrado e na revista impressa Gatos & Alfaces.

COMPARTILHE O CONTEÚDO DO BARATAVERSO!
Assinar
Notificar:
guest

1 Comentário
Mais Recente
Mais Antigo Mais Votado
Inline Feedbacks
Ver Todos os Comentários
Barata Cichetto
Administrador
09/05/2024 22:54

Roger Waters é um lunático, mas não como Barrett, que envergava “o lado escuro da Lua”. ele enxerga fantasmas, que são do do pai e avô, mortos nas guerras mundiais. Se isso é motivo para esse lazarento se tornar um comunista milionário é o que não entendo. Felizmente as merdas que o Senhor Águas tem dito e feito, não conseguiram apagar a Luz intensa que o Pink Floyd jogou sobre mim.

Conteúdo Protegido. Cópia Proibida!

×