Atualizado em: 27/07/2024, as 07:07
Não me recordo bem quando votei pela primeira vez, mas foi quando eu era criança – Não. Não foi para candidatos a cargo político –. O voto foi comprado. Explico: a escola estava promovendo, em meio às festividades alusivas a alguma data comemorativa, um concurso para eleição da aluna mais bonita. Apresentadas as candidaturas, as professoras imprimiram no mimeógrafo as cédulas de votação. É óbvio que o custo desses impressos foi financiado pela caixinha da escola. Até hoje suspeito que a caixinha financiava coisas alheias aos interesses dos alunos. Isso posto, os organizadores estabeleceram o valor a ser pago por cada voto. A lógica era simples: ganha o concurso a candidata que vendesse mais votos. Ato contínuo, ao menos em tese, os lucros eram revertidos em favor da escola. Até onde consigo recordar, a candidata vencedora não foi a menina mais bonita. Lamento que ninguém teve a ideia de promover um concurso para o aluno mais bonito da escola. Talvez eu me candidatasse, e quem sabe, fosse eleito.
Nos anos 1970 o Brasil estava submetido ao regime militar estabelecido em 1964. Não havia eleição direta para presidente da República, governadores dos estados e do Distrito Federal e prefeitos de municípios considerados Áreas de Segurança Nacional. Fora isso, qualquer outro cidadão legalmente apto (entenda-se: não envolvido em “atividades subversivas” ou em atos e palavras que incomodavam os generais) poderia concorrer ao mandato de vereador, deputado estadual, deputado federal e senador. O processo eleitoral era regulado pela Constituição de 1967, que vigeu até a promulgação da Constituição de 1988, apelidada de Constituição Cidadã. Na prática, a Carta Magna é fonte de consulta ou de inspiração para o cometimento de atos que colocaram a sociedade brasileira nesse estado beligerância na qual se encontra.
Ainda pela visão de uma criança, passei a observar o comportamento das campanhas eleitorais. Milhares de santinhos eram jogados de dentro de carros, cartazes eram afixados em postes, muros, paredes e onde mais fosse possível. Tal como acontece hoje, os candidatos percorriam os bairros, praças, favelas e zonas rurais com carros de som. Os comícios eram frequentes. Outra tática bastante utilizada era a visita às residências, as caminhadas em logradouros públicos para “testar” a receptividade dos eleitores, bem como medir quão popular o candidato era.
Nesse contexto, o processo de sedução do eleitor, por meio de promessas que, na melhor das hipóteses, seriam cumpridas apenas em parte, envolvia uma transação, uma troca de favores, cujo objetivo era atender necessidades pessoais e coletivas.
Exemplos:
Para as necessidades pessoais a troca consistia na obtenção de emprego para o eleitor ou para um parente dele, consulta médica, tratamento odontológico, curso profissionalizante, próteses diversas, dentadura, óculos, material de construção, alimentos, roupas, ferramentas, remédios, cadeira de rodas, etc.
Além do mais, um objeto que virava a cabeça do eleitor: o dinheiro. Nessa transação comercial, o voto custa muito barato, em contrapartida ao que o político viria a ganhar, se eleito fosse. De fato, o lucro era extraordinário. Está aí um dos pilares dos centenários clãs políticos e suas ramificações. No século 21, não obstante a legislação eleitoral mais severa, o voto continua saindo muito barato para o comprador. O ex-presidente Luís Inácio da Silva e seus aliados que o digam. Nesse caso, o processo de compra e venda de voto envolvia gente rica e poderosa, além da freguesia ignorante de sempre, por meio de um engenhoso sistema de troca de favores revelado em diversos escândalos, entre eles, o mensalão e o petrolão. Contudo, não nos prendamos apenas na figura dele, um “professor” em matéria de corrupção, pois o leque é muito amplo.
Já no que concernia a necessidades coletivas, entrava no escambo o asfaltamento de ruas, construção de posto médico, melhoria no sistema de transporte coletivo, ampliação da segurança pública, abastecimento de água, eletricidade e rede de esgoto, construção, reforma da escola do bairro e, quem sabe, até mesmo a construção de uma creche.
Os candidatos, fossem eles de primeira viagem ou velhas raposas da política, entendiam essas necessidades e, a depender de sua capacidade de convencimento, as necessidades eram habilmente capitalizadas por meio de uma oratória que seduzia os eleitores. Em meio a tudo isso, não faltavam beijos nas crianças, abraços e apertos de mão nos adultos. A patuleia caía como pato.
Sim. Eu vi tudo isso. Contudo, como eu era, obviamente, ingênuo demais para entender o funcionamento do mecanismo por vezes sinistro que se alimentava da ingenuidade das pessoas em favor de objetivos, salvo exceções, nada nobres. Convém acrescentar que esses vícios existem desde que existe a República. Como agravante, cabe lembrar do odioso sistema de voto de cabresto, o qual foi se adaptando às mudanças de costumes ao logo das décadas. O voto de cabresto ainda existe, mas sob outros nomes e outros métodos, afinal, os currais eleitorais ainda fazem parte da paisagem política brasileira.
A título de exemplo, o bairro onde nasci e morei até o fim da minha adolescência só possuía rede de eletricidade e transporte público de quinta categoria. Já todo o resto: asfalto, esgoto, iluminação pública, posto de saúde, coleta de lixo, e tudo o mais, estavam presentes apenas nos anseios dos moradores. Como não poderia ser diferente, a Lei da Oferta e Procura não estava restrita apenas a questões de mercado. A política também se valia dela. Os lucros – financeiros e patrimoniais, sobretudo — eram líquidos e certos. Lembro de ter visto candidatos prometendo todas essas coisas se eleitos fossem. Os eleitores entendiam a senha: se o candidato fosse eleito todas as dificuldades desapareceriam em um período de quatro anos.
Após eleitos, os candidatos que seduziram os eleitores com promessas de toda ordem, rapidamente as esqueciam. Já os eleitores, por sua vez, e em razão do seu analfabetismo político, esqueciam as propostas que lhe foram feitas, de maneira que, na próxima campanha eleitoral, eles seriam novamente visitados, renovando o círculo vicioso no qual eles sempre saíam perdendo. E muito!
Em 1982, com a advento da Anistia, bem como ao gradativo afrouxamento do regime militar, a eleição de governadores, prefeitos das capitais e de Áreas de Segurança Nacional, voltou a ser direta. Muitos candidatos voltaram do exílio para a vida política. Embora já tivesse idade para exercer o meu direito de votar, preferi não exercê-lo por pura falta de interesse, embora o voto fosse obrigatório. Por outro lado, involuntariamente, me vi envolvido no desprezível processo de escambo que citei parágrafos acima. Na empresa em que eu trabalhava (um depósito de tecidos) fui encarregado de colocar cortes de tecido barato dentro de sacos plásticos, os quais eram lacrados em uma seladora térmica, para posteriormente serem distribuídos aos possíveis eleitores de um candidato a prefeito de uma cidade do interior. O candidato era cunhado de um dos sócios da empresa. Eu não tinha como recusar a tarefa, pois isso resultaria em minha demissão. O candidato, dono de um hotel na cidadezinha, foi eleito, graças, em parte, aos retalhos de tecidos que empacotei com eficiência e rapidez. Acho que cumpri bem meu papel de massa de manobra.
Meu bairro recebeu todos os serviços públicos a que tinha direito. Mas isso aconteceu de modo lento e gradual. E, ao longo desse tempo, outras necessidades foram surgindo. Lamentavelmente e, apesar do avanço da tecnologia da informação, a ignorância política ainda se faz presente, uma vez que esse povo politicamente ignorante ainda possui grande peso eleitoral, o que é fator determinante para que mudanças mais profundas possam ocorrer.
Evidentemente e, guardadas as devidas proporções, hoje vive-se melhor do que nos anos 70 da minha infância. Contudo, observo que ainda estamos muito distantes de ser uma sociedade mais avançada, ciente do seu poder de decisão capaz de reverter o poder do Estado sobre a sociedade. O ideal é que a sociedade controle o Estado. Mas isso é assunto para uma outra matéria.
Voltemos ao voto.
Os eleitores se apresentavam na seção eleitoral na qual estavam inscritos e, após serem identificados por um mesário, que, tal como ocorre hoje, era convocado para a tarefa (meu pai, servidor público, era frequentemente convocado), os votos eram registrados em cédulas de papel dentro de uma cabine. Em seguida, o eleitor o depositava em uma urna de couro ou lona.
As eleições ocorriam no dia 15 de novembro. Era perfeitamente “normal” o transporte de eleitores. Na minha cidade, os candidatos mais endinheirados convocavam taxistas em troca de gasolina e outros mimos para facilitar a ida dos eleitores a suas respectivas zonas eleitorais. Valia tudo para garantir que o eleitor não faltasse ao compromisso cívico. Obviamente, muitos candidatos eram passados para trás, pois, os motoristas armazenavam o combustível em suas casas, para depois voltar a abastecer seus carros. Era difícil o candidato controlar o fluxo. Embora evidente, os prejuízos seriam compensados no decorrer do exercício do mandato do candidato, se eleito fosse.
A apuração era iniciada logo após o encerramento da votação. Então, a contagem era feita manualmente por uma legião de pessoas convocadas para essa finalidade. Todo o processo durava dias a fio. Em alguns lugares, demorava um pouco mais por causa da judicialização movida por algum candidato insatisfeito, problemas de logística, ou por causa da constatação de irregularidades, que não eram poucas. Sabia-se que as urnas eram “emprenhadas” na calada da noite, no transporte e, até mesmo ainda na seção eleitoral; votos desapareciam, bem como as urnas. Na prática, especialmente nos rincões, a apuração dos votos era um jogo de vale-tudo, inclusive com o uso da violência.
Outro fator a considerar eram situações em que o candidato que não conseguia se eleger, frustrado por ter seu investimento, bem como seus interesses políticos reduzidos a pó, tomava de volta as pessoas que haviam lhe prometido votação, dentaduras, dinheiro e outros mimos. Não era raro haver agressões físicas no eleitor.
O tempo passou, muitas reviravoltas políticas aconteceram, até a instituição do voto eletrônico, cujo objetivo era combater a corrupção eleitoral, além de dar celeridade e segurança na apuração dos votos. É verdade que a urna eletrônica extinguiu o demorado processo de contagem dos votos. Os brasileiros passaram a ter conhecimento dos candidatos eleitos no mesmo dia da votação. Quanto avanço!
Muita coisa mudou desde aquela década de 70 da minha infância. Ou não.
A grande mudança (entre tantas outras) foi, sem dúvida, a utilização da urna eletrônica e o respectivo sistema de apuração totalmente eletrônico dos votos, a partir de 1996. Dois anos antes, a Justiça Eleitoral processou eletronicamente o resultado das votações pela primeira vez. Há 25 anos a urna eletrônica mantém sua fama de extremamente confiável, uma vez que todas as etapas da apuração não sofrem influência externa. Será, caro leitor?
Todavia, essa fama de incorruptível vem sendo desconstruída com maior ênfase após a vitória de Jair Bolsonaro no segundo turno da campanha eleitoral de 2018, tendo como cenário o atentado a faca cometido por um ex-militante do PSOL-Partido Socialismo e Liberdade, bem como a grande polarização política que joga brasileiros contra brasileiros. Mesmo vitorioso no pleito, o Presidente jamais engoliu o fato de não ter sido eleito já no primeiro turno. Essa desconfiança é um dos pontos de desgaste com ministros do Supremo Tribunal, entre eles, Roberto Barroso e Alexandre de Moraes. Barroso é também presidente do Supremo Tribunal Federal; Moraes assumirá o cargo nas eleições de 2022. Ambos os ministros são notórios desafetos do Presidente da República. Em contrapartida, o Mito se transformou em um mestre em aplicar saias justas na Suprema Corte, cuja autoridade nunca havia sido desafiada de maneira tão contundente. Cidadãos comuns, e até parlamentares, estão sofrendo as consequências de terem desafiado os supremos ministros.
Não é segredo para ninguém que o STF vem extrapolando suas prerrogativas constitucionais, se transformando em agente político, ignorando a tripartição de poderes da República, interferindo indevidamente nos poderes Legislativo e Executivo. Nisso, alarga-se o fosso entre Suprema Corte e o Chefe do Poder Executivo. Jair Bolsonaro não despreza a urna eletrônica. Na qualidade de inconformado com o resultado do pleito de 2018, Bolsonaro advoga a proposta pelo voto impresso auditável, que nada mais é do que a impressão do voto em uma impressora anexa a urna eletrônica; o eleitor não leva o comprovante para casa. Segundo o Presidente, o voto impresso auditável garante maior lisura e segurança na apuração, não dando margem à dúvida que o persegue há anos. Cabe destacar que a ideia não é nova. Entretanto, a proposta está embasada na PEC-Proposta de Emenda à Constituição no. 135/19, de autoria da deputada federal Bia Kicis:
“(… ) A PEC tem autoria da Deputada Federal Bia Kicis (PSL-DF) e pretende realizar uma mudança significativa no sistema eleitoral brasileiro com a inclusão de cédulas de papel junto às urnas eletrônicas, popularmente debatido hoje como o voto impresso.
O texto da proposta sintetiza a inclusão do parágrafo 12 no Art. 14, da Constituição Federal. Dessa forma, caso a PEC seja aprovada no Legislativo, teremos o seguinte texto na CF:
“Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
(…)
§ 12 No processo de votação e apuração das eleições, dos plebiscitos e dos referendos, independentemente do meio empregado para o registro do voto, é obrigatória a expedição de cédulas físicas conferíveis pelo eleitor, a serem depositadas, de forma automática e sem contato manual, em urnas indevassáveis, para fins de auditoria.”
Em razão da sensibilidade do tema, a PEC foi encaminhada para análise da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), que tem por finalidade avaliar se a proposta não fere algum princípio constitucional ou cláusula pétrea (norma inalterável da Constituição Federal).
Importante destacar que a CCJC, que irá discutir a PEC 135/19, é composta por deputados federais que dispõem suas considerações na comissão, pelos convidados que fazem o depoimento, pelo Relator Deputado Federal Filipe Barros (PSL-PR), pelo presidente da comissão, Deputado Paulo Eduardo Martins (PSC-PR), e pela vice-presidência, na pessoa de Pompeo de Mattos (PDT-RS).
Qual a modificação proposta pela PEC 135/19?
Como mencionamos, a proposta busca incluir o parágrafo 12, no Art. 14 da CF, para o processo eleitoral. Isso significa que o eleitor, assim que realizar o voto na urna eletrônica, irá visualizar um documento impresso confirmando seu voto – em seguida, a cédula é depositada automaticamente em uma urna lacrada que será utilizada para fins de auditoria. Dessa maneira, a urna eletrônica não seria descartada, haveria uma inclusão de outra urna com cédulas impressas depositadas pelos eleitores.
A deputada federal Bia Kicis defende que dentro do sistema eleitoral eletrônico é essencial ao eleitor ver e conferir com seus próprios recursos o conteúdo inalterável que registre seu voto, criticando decisões tomadas pelo Tribunal Superior Eleitoral no decorrer dos anos. Importante destacar que a cédula impressa não irá associar o voto a cada eleitor, mas sim, evidenciar o candidato que recebeu o voto.
Mas, afinal, a urna eletrônica é segura?
Nesse debate, outra discussão importante é quanto à segurança das urnas eletrônicas. O Tribunal Superior Eleitoral, inclusive, já alegou inúmeras vezes que a seguridade da urna é garantida, isto pois: a urna eletrônica utiliza o sistema operacional Linux; não utiliza conexões bluetooth e wi-fi (o que impossibilita ataques cibernéticos) e é conectada apenas ao cabo de energia; a segurança das urnas é realizada em diversas camadas ou barreiras; e os softwares são assinados e desenvolvidos digitalmente pelo TSE exclusivamente para as eleições.
Por fim, o Tribunal garante a aplicação de diversas auditorias para realizar o levantamento de eventuais falhas e melhorias no processo eleitoral. O processo de auditorias é sucintamente feito em três etapas principais, que são:
Testes públicos de segurança (testes técnicos nos quais atuam desenvolvedores, PF, técnicos e demais interessados);
Inspeção dos programas eleitorais (verificação do programa eleitoral, avaliando sua estabilidade e segurança);
Cerimônia de assinaturas e lacração (etapa de recolhimento das assinaturas das entidades públicas).
O teste público de segurança realiza, durante uma semana, vários testes (ataques legais) ao sistema eleitoral das urnas onde atuam desenvolvedores, Polícia Federal, hackers, técnicos da computação e demais interessados. Após a certificação dos testes e inspeção dos programas eleitorais, ocorre a cerimônia pública de assinaturas e, por fim, o processo denominado como Lacração. Essa etapa garante que o documento físico assinado pelas autoridades públicas seja guardado em uma sala cofre no TSE, que está disponível para consulta a qualquer momento (…).”
A queda de braço envolvendo o Presidente Jair Bolsonaro e ministros do STF é uma novela que está longe de acabar. Parlamentares que eram favor a implementação do voto eletrônico auditável, nos últimos tempos mudaram de posição, graças ao lobby do ministro Roberto Barroso. A cruzada de Barroso tem apoio de parte significativa da grande imprensa, artistas, empresários e intelectuais. Por outro lado, Jair Bolsonaro vem ganhando apoio popular, acirrando ainda mais os ânimos. Como se isso não bastasse, o Presidente denunciou, em uma live divulgada no YouTube em 29.07.2021, a denúncia de que um hacker transitou livremente no TSE por meses a fio, deixando claro que a “inviolabilidade” do sistema que apura os votos não é tão inviolável assim.
(Vídeo Removido do Youtube Por “Violar as Diretrizes da Comunidade”) – N. do E., em 08/03/2024
Ante os fatos que ocorrem concernentes ao voto, volto às minhas observações eleitorais. Noves fora as mudanças ocorridas nestes mais de 40 anos, observo que velhos vícios ainda se mantém, talvez com outros nomes. A vontade do eleitor continua sendo alvo da manipulação de terceiros. De minha parte, não tenho como acreditar em uma tecnologia tida e havida como à prova de tudo, como se ele tivesse vida própria. Nesse imbróglio, o eleitor continua sendo tratado como sempre foi: massa de manobra.
Eu voto na minha desconfiança. Nela eu confio.
09/08/2021
Genecy Souza, de Manaus, AM, é Livre Pensador.
Possui textos publicados na revista digital PI Ao Quadrado e na revista impressa Gatos & Alfaces.